Gadamer (VM): historicidade da compreensão

2.1. A elevação da historicidade da compreensão a um princípio hermenêutico VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Heidegger somente entra na problemática da hermenêutica e das críticas históricas com a finalidade ontológica de desenvolver, a partir delas, a pré-estrutura da compreensão. Já nós, pelo contrário, perseguimos a questão de como, uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão. A autocompreensão tradicional da hermenêutica repousava sobre seu caráter de teoria da arte. Isso vale inclusive para a extensão diltheyana da hermenêutica como organon das ciências do espírito. Pode até parecer duvidoso que exista uma tal teoria da arte da compreensão; sobre isso voltaremos mais tarde. Em todo caso, cabe indagar pelas consequências que tem para a hermenêutica das ciências do espírito o fato de Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular da compreensão a partir da temporalidade da pre-sença. Essas consequências não necessitam ser tais, como se aplicasse uma nova teoria à práxis e esta fosse exercida por fim, de uma maneira diferente, de acordo com sua arte. Poderiam também consistir em que a autocompreensão da compreensão exercida constantemente fosse corrigida e depurada de adaptações inadequadas; um processo que mormente se optimalizaria por meio da arte do compreender. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Talvez aqui seja o lugar para se fazer algumas observações às ampliações e apresentações autônomas do problema hermenêutico, do modo como foram apresentadas de um lado por Hans-Robert Jauss e Manfred Frank e, por outro, por Jacques Derrida. É sem dúvida incontestável que a estética da recepção, desenvolvida por Jauss, enfocou sob uma nova luz toda uma dimensão da pesquisa literária. No entanto, será justo seu posicionamento contra o que tenho em mente com minha hermenêutica filosófica? Parece-me que a ilustração da historicidade da compreensão, que apresentei no exemplo do conceito do clássico, é mal-entendida, toda vez que atribuímos a palavra aqui ao classicismo e ao conceito vulgar de platonismo. Dá-se exatamente o contrário. O exemplo do clássico, em Verdade e método I, quer ilustrar o quanto a mobilidade histórica está incluída na atemporalidade daquilo que se chama de clássico (e que contém, todavia, um componente normativo, mas nenhuma caracterização de estilo), de tal forma que a compreensão se transforma e se renova constantemente. O exemplo do clássico, portanto, nada tem a ver com o ideal de estilo clássico e nem com o conceito vulgar de platonismo, que [14] considero uma deformação das reais intenções de Platão. Neste ponto, Oskar Becker viu melhor do que Jauss, quando me acusou, em sua crítica, de estar sendo tomado pela história, e arrolou contra mim o pitagorismo do número, do som e do sonho. Não me senti atingido, neste particular. Mas não vamos tratar disso aqui. A estética da recepção de Jauss seria, ela própria, truncada, segundo me parece, se quisesse dissolver a obra que subjaz em cada configuração receptiva em meras facetas. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

A escola histórica, porém, sobretudo na forma decisiva que Droysen, seu metodologista mais arguto, reivindica para a tarefa [124] do historiador, não aceitou de modo algum essa total alienação objetivista do objeto da história. Pelo contrário, Droysen perseguiu essa “objetividade eunuca” com um sarcasmo mordente, e caracterizou a pertença às grandes forças morais, que regem a história, como a condição prévia de toda compreensão histórica. Sua célebre fórmula, segundo a qual a tarefa do historiador consiste em compreender pela via da investigação, contém um aspecto teológico. Os planos da Providência estão ocultos para o homem. Contudo, mediante a investigação das estruturas da história do mundo, o espírito histórico pode adquirir uma ideia do sentido oculto da totalidade. Compreender, aqui, é mais do que um método universal apoiado ocasionalmente na afinidade ou congenialidade do historiador com seu objeto histórico. Não é só uma questão de casual simpatia pessoal. Na escolha dos objetos e dos pontos de vista sob os quais se apresenta um objeto como um problema histórico, já está atuando um elemento da própria historicidade da compreensão. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.