Neste ponto Hegel aponta para além da dimensão global em que se havia colocado o problema da compreensão em Schleiermacher. Hegel o eleva à base, sobre a qual ele fundamenta a filosofia como a forma mais alta do espírito absoluto. No saber absoluto da filosofia leva-se a cabo aquela autoconsciência do espírito que, como diz o texto, abrange, “de um modo superior”, também a verdade da arte. Desse modo, para Hegel é a filosofia, isto é, a auto-imposição histórica do espírito, que domina a tarefa hermenêutica. Nela o comportamento histórico da imaginação se transforma em um comportamento pensante com respeito ao passado. Hegel expressa assim uma verdade categórica, dizendo que a essência do espírito histórico não consiste na restituição do passado, mas na mediação de pensamento com a vida atual. Hegel tem razão quando se nega a pensar essa mediação de pensamento como uma relação externa e posterior, e a coloca no mesmo nível que a verdade da arte. Com isso ele ultrapassa fundamentalmente a ideia da hermenêutica de Schleiermacher. Também para nós a questão da verdade da arte obrigou a uma crítica da consciência tanto estética como histórica, ao mesmo temo em que indagamos pela verdade que se manifesta na arte e na história. 933 VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Lendo um testemunho como este, pode-se medir como teria de ser forte o passo que deveria conduzir da hermenêutica de Schleiermacher a uma compreensão universal das ciências históricas do espírito. Por mais universal que fosse a hermenêutica desenvolvida por Schleiermacher, tratava-se de uma universalidade limitada por uma barreira muito sensível. Sua hermenêutica tinha em mente, na verdade, textos cuja autoridade estava firme. Representa obviamente um passo importante [201] no desenvolvimento da consciência histórica o fato de que, com isso, a compreensão e interpretação tanto da Bíblia como da literatura da antiguidade clássica foram liberadas inteiramente do interesse dogmático. Nem a verdade salvadora da Escritura Sagrada, nem o caráter modelar dos clássicos deviam influenciar o procedimento que era capaz de compreender a expressão de vida de todo texto, deixando de lado a verdade do que diz. 1066 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Teremos de nos indagar, como pôde tornar-se compreensível aos historiadores o seu próprio trabalho, partindo de sua teoria hermenêutica. Seu tema não é um texto avulso, individual, mas a história universal. O que perfaz o historiador é o fato de que ele quer compreender a totalidade dos nexos da história da humanidade. Todo texto individual não possui, para ele, um valor próprio, mas serve-lhe meramente como fonte. Isto significa, porém, unicamente como um material mediador para o conhecimento do nexo histórico, não diverso de todas as ruínas mudas do passado. Esta é a razão por que a escola histórica não pode, na realidade, continuar edificando sobre a hermenêutica de Schleiermacher. 1074 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Enquanto a hermenêutica de Schleiermacher repousava sobre uma abstração metodológica artificial, que procurava produzir uma ferramenta universal para o espírito, mas que se propunha, como objetivo, trazer à fala com a ajuda dessa ferramenta, à força salvadora da fé cristã, para a fundamentação das ciências do espírito de Dilthey a hermenêutica representava mais do que um instrumento. É o médium universal da consciência histórica, para a qual não existe nenhum outro conhecimento da verdade do que compreender a expressão e, na expressão, a vida. Na história tudo é compreensível. E isso porque tudo é texto. “Tal qual as letras de uma palavra têm vida e a história, um sentido”. Assim a investigação de Dilthey sobre o passado histórico acaba sendo pensada como um deciframento e não como uma experiência histórica. 1338 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Entretanto, nos vemos obrigados a indagar se essa é uma maneira adequada de entender o movimento circular da compreensão. Teremos de nos reportar aqui ao resultado de nossa análise hermenêutica de Schleiermacher. O que este desenvolve sob o nome de interpretação subjetiva pode muito bem ser deixado de lado. Quando procuramos entender um texto, não nos deslocamos até a constituição psíquica do autor, mas, se quisermos falar de deslocar-se, o fazemos tendo em vista a perspectiva sob a qual o outro ganhou a sua própria opinião. E isso não quer dizer outra coisa, senão que procuramos fazer valer o direito objetivo do que o outro diz. Quando procuramos entender, fazemos inclusive o possível para reforçar os seus próprios argumentos. Isso acontece já na conversação. Mas onde se torna mais patente é na compreensão do escrito. Aqui nos movemos numa dimensão de sentido que é compreensível em si mesma e que, como tal, não motiva um retrocesso à subjetividade do outro. É tarefa da hermenêutica explicar esse milagre da compreensão, que não é uma comunhão misteriosa das almas, mas uma participação num sentido comum. 1609 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Foi só Schleiermacher que, incitado por F. Schlegel, desvencilhou a hermenêutica, enquanto teoria universal da compreensão e do interpretar, de todos os momentos dogmáticos e ocasionais. Para ele, esses momentos só se justificam secundariamente, numa versão bíblica específica. Com sua teoria hermenêutica, defende a cientificidade da teologia, sobretudo contra a teologia da inspiração, que colocava radicalmente em questão a verificabilidade metodológica da compreensão da Sagrada Escritura com os recursos da exegese textual, da teologia histórica, da filologia etc. Mas por trás dessa concepção de Schleiermacher sobre uma hermenêutica geral não havia apenas um interesse teológico, científico e político, mas uma motivação filosófica. Um dos mais profundos impulsos da época romântica foi a fé no diálogo como uma fonte de verdade não dogmática, insubstituível por qualquer dogmática. Se Kant e Fichte privilegiaram como supremo princípio de toda filosofia a espontaneidade do “eu penso”, na geração romântica de Schlegel e [98] Schleiermacher, caracterizada por um forte cultivo da amizade, esse princípio transformou-se numa espécie de metafísica da individualidade. A inefabilidade do individual já fora a base para a virada em direção ao mundo histórico, que surge para a consciência quando a era revolucionária rompe com a tradição. Capacidade para a amizade, capacidade para o diálogo, para a relação epistolar, para a comunicação em geral, todos esses traços do sentimento vital romântico vinham de encontro ao interesse pela compreensão e pela incompreensão. Essa experiência humana originária constitui o ponto de partida metodológico para a hermenêutica de Schleiermacher. A partir disso, a compreensão de textos, de vestígios espirituais estranhos, longínquos, obscurecidos, petrificados em escritos, isto é, a interpretação viva da literatura e sobretudo da Sagrada Escritura, apresentou-se como aplicação específica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
O certo é que tanto a hermenêutica de Schleiermacher não está totalmente livre do ar escolástico, um tanto empoeirado, da literatura hermenêutica anterior, como sua obra propriamente filosófica se encontra um pouco à sombra dos outros grandes pensadores idealistas. Ele não tem a força impositiva da dedução fichtiana, nem a elegância especulativa de Scheling e nem a obstinação seminal da arte conceptual de Hegel. Foi um orador, mesmo quando filosofava. Seus livros são antes de tudo anotações de um orador. Suas contribuições à hermenêutica são, em particular, muito fragmentárias e o que tem mais interesse do ponto de vista hermenêutico, ou seja, suas observações sobre pensar e falar não se encontram na “hermenêutica” mas nas preleções sobre dialética. Ainda aguardamos uma edição crítica da Dialética, que seja utilizável. O sentido normativo básico dos textos, aquilo que originariamente confere sentido ao esforço hermenêutico, em Schleiermacher encontra-se em segundo plano. Compreender é a repetição da produção originária de ideias, com base na congenialidade dos espíritos. O ensinamento de Schleiermacher tem como pano de fundo sua concepção metafísica da individualização da vida universal. Desse modo, destaca-se o papel da linguagem, e isso numa forma que superou radicalmente a limitação erudita ao escrito. A fundamentação da compreensão feita por Schleiermacher sobre a base do diálogo e do entendimento inter-humano significou no seu conjunto um aprofundamento dos fundamentos da hermenêutica, que no entanto acabou permitindo a edificação de um sistema científico com base hermenêutica. A hermenêutica tornou-se a base de todas as ciências históricas do espírito e não só da teologia. Desaparece então o pressuposto dogmático do caráter “paradigmático” do texto, sob o qual a atividade hermenêutica, tanto a do teólogo como a do filólogo humanista [99] (para não falar do jurista), tinha a função originária de mediação. Com isso liberou-se o caminho para o historicismo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
A hermenêutica teológica característica da época inaugurada com a fundamentação geral de Schleiermacher acabou igualmente enredada em suas aporias dogmáticas. Já o próprio editor do curso de hermenêutica de Schleiermacher, Lucke, sublinhou de modo decisivo seu momento teológico. Toda a dogmática teológica do século XIX retornou à problemática da hermenêutica dos primórdios do protestantismo, dada com a regula fidei. O postulado histórico da teologia liberal, que criticava toda dogmática, enfrentou-se com ela, resultando numa crescente indiferença com relação à tarefa específica da teologia. Por isso, na época da teologia liberal, não houve fundamentalmente nenhuma problemática hermenêutica especificamente teológica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Assim, quando proponho o desenvolvimento da consciência hermenêutica como uma possibilidade mais abrangente, como contraponto a essa consciência estética e histórica, minha intenção imediata é buscar superar a redução teórico-científica que sofreu o que chamamos tradicionalmente de “ciência da hermenêutica” pela sua inserção na ideia moderna de ciência. Na hermenêutica de Schleiermacher fez-se ouvir tanto a voz do romantismo histórico quanto os interesses do teólogo cristão, na medida em que enquanto uma teoria geral da compreensão sua hermenêutica deveria favorecer a tarefa específica da interpretação da Sagrada Escritura. E, quando nos detemos a analisar essa hermenêutica, a perspectiva de Schleiermacher para essa disciplina mostra-se peculiarmente restringida pelo pensamento moderno de ciência. Schleiermacher define a hermenêutica como a arte de evitar mal-entendidos. Decerto, essa não é uma descrição totalmente errônea do esforço hermenêutico. O estranho induz facilmente mal-entendidos, produzidos pela distância temporal, pela mudança dos costumes de linguagem, a modificação do significado das palavras e dos modos de representação. Deve-se evitar o mal-entendido pela reflexão controlada por métodos. Mas também aqui devemos perguntar do seguinte modo: Quando afirmamos que compreender significa evitar mal-entendidos, estaremos definindo adequadamente o fenômeno da compreensão? Será que todo mal-entendido não pressupõe uma espécie de “acordo latente”? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.
A história da compreensão não é menos antiga e honorável. Se quisermos reconhecer a hermenêutica onde ela aparece como uma verdadeira arte de compreender, então, se não quisermos começar com o Nestor da Ilíada, temos de começar com Ulisses. Poderíamos apelar para o fato de que o novo movimento de educação da sofística impulsionou de fato a interpretação de frases poéticas famosas, adornando-as artificialmente como exemplos pedagógicos. Junto com Gundert, poderíamos até contrapor a esta hermenêutica uma hermenêutica socrática. Mas isso está longe de ser uma teoria da compreensão, e parece ser característico para o surgimento do problema hermenêutico a eliminação de um distanciamento, a superação de uma alteridade e a construção de uma ponte entre o outrora e o agora. Nesse sentido, seu momento característico foi a época moderna, que ganhou consciência de sua distância em relação aos tempos passados. Algo disso já se encontrava na pretensão teológica de compreensão da Bíblia, própria da Reforma, e de seu princípio da sola scriptura, mas encontrou um real desenvolvimento na medida em que o Iluminismo e Romantismo geraram uma consciência histórica, que estabeleceu uma relação cindida com toda tradição. Outra consequência se deu pelo fato de a história da teoria hermenêutica ter-se orientado na tarefa da interpretação das “manifestações vivas expressas por escrito”, mesmo que a elaboração teórica da hermenêutica de Schleiermacher tenha incluído a compreensão no modo como se dá no trato oral da conversação. A retórica, ao contrário, voltava-se para a imediaticidade do efeito do discurso, e mesmo tendo trilhado também os caminhos da escrita artística e desenvolvido a teoria do estilo e os estilos, sua verdadeira realização não se dá na leitura mas no dizer. A posição intermédia do discurso proclamado já denuncia a tendência de basear a arte do discurso em recursos artísticos fixados por escrito, desligando-os da situação originária. Aqui se inicia a influência recíproca com a poética, cujos objetos de linguagem alcançam um tal grau de pureza artística que sua transformação da oralidade para a escritura e vice-versa se dá sem perdas. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
Pois bem, essa filosofia neokantiana dos valores constituía uma base muito frágil. Muito mais influente seria o legado romântico do espírito alemão, o legado de Hegel e de Schleiermacher, administrado especialmente pelo trabalho de Dilthey em torno a uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. O pensamento de Dilthey teve um horizonte mais amplo do que o da teoria do conhecimento do neokantismo, uma vez que assumiu toda a herança de Hegel: a teoria do espírito objetivo. Segundo essa teoria, o espírito não ganha corpo apenas na subjetividade de sua realização atual, mas também na objetivação de instituições, sistemas de ação e sistemas de vida como a economia, o direito e a sociedade, e assim, enquanto “cultura”, convertem-se em objeto de possível compreensão. A tentativa diltheyana de renovar a hermenêutica de Schleiermacher, demonstrando, por assim dizer, como fundamento das humaniora o ponto de identidade entre o que compreende e o compreensível, foi condenada ao fracasso porque a história apresenta um estranhamento e uma heterogeneidade demasiado profundos para que possam ser considerados tão confiadamente a partir da perspectiva de sua compreensibilidade. Um sintoma característico de ausência da “facticidade” do acontecer no pensamento de Dilthey é este ter considerado a autobiografia, portanto, o caso em que alguém expõe uma trajetória de vida, vivenciando-a retrospectivamente, como modelo de compreensão histórica. Na verdade, uma autobiografia é mais uma história das ilusões privadas do que a compreensão do acontecimento histórico real. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
No início do desenvolvimento do século XIX encontra-se a Hermenêutica de Schleiermacher, que fundamenta sistematicamente a homogeneidade essencial no procedimento de interpretação da Sagrada Escritura e de todos os demais textos, exatamente como tinha em mente Semler. Nesse sentido, a contribuição mais marcante de Schleiermacher foi sua interpretação psicológica, segundo a qual cada pensamento de um texto, enquanto um momento de vida, deve ser referido ao contexto pessoal de vida de seu autor, se quiser ser compreendido plenamente. Nesse entremeio, alcançamos uma visão mais apurada da gênese do pensamento de Schleiermacher sobre a hermenêutica, depois que Academia das Ciências de Heidelberg publicou os manuscritos berlinenses, a partir de onde Lucke, a seu tempo, compôs a outra edição. Os resultados dessa retomada dos manuscritos originais não são revolucionários, mas tampouco são irrelevantes. Em sua introdução, H. Kimmerle mostra como os primeiros escritos colocam em primeiro plano a identidade do pensar e do falar, enquanto que os trabalhos posteriores consideram o falar como uma exteriorização individualizadora. Acrescenta-se a isso o incremento paulatino do ponto de vista psicológico, que acaba tendo predomínio sobre o ponto de vista da interpretação “técnica” (“estilo”), genuinamente baseada na linguagem. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.