O trabalho que se realizou até agora, nesse terreno, determinado sobretudo pela fundamentação hermenêutica das ciências do espírito de Wilhelm Dilthey e suas investigações sobre a gênese da hermenêutica, fixou as dimensões do problema hermenêutico, a seu modo. Nossa tarefa atual poderia ser a de tentar subtrair-nos da influência dominante do questionamento diltheyano e dos preconceitos da “história do espírito”, fundada por ele. 917 VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
1.2.1. Do problema epistemológico da história à fundamentação hermenêutica das ciências do espírito 1202 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Não se pode afirmar que, sobre esse ponto, no qual Dilthey vê o problema decisivo, as suas ideias não tivessem alcançado completa clareza. O que apresenta o ponto decisivo, aqui, é o problema do passo a ser dado da fundamentação psicológica para a fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. Nisso Dilthey não passou nunca de simples esboços. Na mencionada passagem do Aufbau, a autobiografia e a biografia — dois casos especiais de experiência e conhecimento históricos — conservam uma preponderância não inteiramente fundamentada. Pois já vimos que o problema da história não é saber como pode ser vivido e conhecido o nexo geral, mas como devem ser conhecíveis também aqueles nexos que nenhum indivíduo pôde viver como tal. Seja como for, não há muitas dúvidas sobre o modo como Dilthey imaginava o esclarecimento desse problema, partindo do fenômeno da compreensão. Compreender é compreender uma expressão. Na expressão o que é expressado está presente de uma maneira distinta do que [229] a causa no efeito. Ele está presente na expressão e é compreendido quando se compreende esta. 1242 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Seguindo essa temática universal, aberta por Schleiermacher e sobretudo sua contribuição mais própria, a introdução da interpretação “psicológica”, destinada a complementar a interpretação “gramatical” tradicional, a hermenêutica evoluiu no século XIX para uma metodologia. Seu novo objeto são os “textos”, uma entidade anônima, que o investigador deve enfrentar. Na linha de Schleiermacher, Wilhelm Dilthey levou a cabo a fundamentação hermenêutica das ciências do espírito, estabelecendo as bases para sua equiparação com as ciências naturais e ampliando o acento que Schleiermacher dera à interpretação psicológica. Segundo Dilthey, o verdadeiro triunfo da hermenêutica estaria na interpretação das obras de arte, que traz à consciência uma produção genial inconsciente. Frente à obra-de-arte, todos os métodos psicológicos tradicionais — gramatical, histórico, estético e psicológico — , só representam uma suprema realização do ideal da compreensão na medida em que todos esses recursos e métodos se põem a serviço da compreensão da obra concreta. Aqui, e sobretudo no campo da crítica literária, o aperfeiçoamento da hermenêutica romântica deixa um legado que denuncia sua origem remota, mesmo no uso da linguagem: o de ser crítica. Crítica significa preservar a obra individual em sua validade e conteúdo e diferenciá-la de tudo que não satisfaz seu critério. O esforço de Dilthey serviu para estender o conceito metodológico da ciência moderna também à “crítica” e desdobrar cientificamente a “expressão” poética partindo de uma psicologia compreensiva. Foi tomando o caminho que passa pela “história da literatura” que ele inaugurou o termo “ciência da literatura”. Reflete o ocaso de uma consciência da tradição na época 314] do positivismo científico do século XIX, que no espaço da língua alemã elevou a equiparação com o ideal da ciência natural moderna a ponto de modificar o nome. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.
Pois bem, essa filosofia neokantiana dos valores constituía uma base muito frágil. Muito mais influente seria o legado romântico do espírito alemão, o legado de Hegel e de Schleiermacher, administrado especialmente pelo trabalho de Dilthey em torno a uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. O pensamento de Dilthey teve um horizonte mais amplo do que o da teoria do conhecimento do neokantismo, uma vez que assumiu toda a herança de Hegel: a teoria do espírito objetivo. Segundo essa teoria, o espírito não ganha corpo apenas na subjetividade de sua realização atual, mas também na objetivação de instituições, sistemas de ação e sistemas de vida como a economia, o direito e a sociedade, e assim, enquanto “cultura”, convertem-se em objeto de possível compreensão. A tentativa diltheyana de renovar a hermenêutica de Schleiermacher, demonstrando, por assim dizer, como fundamento das humaniora o ponto de identidade entre o que compreende e o compreensível, foi condenada ao fracasso porque a história apresenta um estranhamento e uma heterogeneidade demasiado profundos para que possam ser considerados tão confiadamente a partir da perspectiva de sua compreensibilidade. Um sintoma característico de ausência da “facticidade” do acontecer no pensamento de Dilthey é este ter considerado a autobiografia, portanto, o caso em que alguém expõe uma trajetória de vida, vivenciando-a retrospectivamente, como modelo de compreensão histórica. Na verdade, uma autobiografia é mais uma história das ilusões privadas do que a compreensão do acontecimento histórico real. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
Em seu esforço para construir uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito, Dilthey encontrou uma forte oposição da escola epistemológica, que naquele momento também buscava fundamentar as mesmas ciências, partindo do ponto de vista neokantia-no, ou seja, da filosofia dos valores desenvolvida por Windelband und Rickert O sujeito epistemológico pareceu-lhe ser uma abstração anêmica. Por mais que ele próprio estivesse entusiasmado pela busca de objetividade nas ciências do espírito, não poderia abstrair do fato de o sujeito conhecente, o historiador que compreende, não estar simplesmente postado frente ao seu objeto, a vida histórica, mas ser sustentado, ele próprio, pelo mesmo movimento da vida histórica. Sobretudo em seus últimos anos, Dilthey buscou cada vez mais fazer justiça à filosofia idealista da identidade, uma vez que no conceito idealístico do espírito estava pensada a mesma generalidade substancial entre sujeito e objeto, entre eu e tu, como ocorria em seu próprio conceito de vida. Aquilo que Georg Misch defendeu de modo tão agudo como ponto de vista da filosofia da vida contra Husserl e Heidegger partilhou com a fenomenologia tanto a crítica a um objetivismo histórico ingênuo quanto a sua justificação epistemológica através da filosofia dos valores vinda do sudoeste da Alemanha. Por mais evidente que tenha sido, a constituição do fato histórico, através da referência aos valores, não fez justiça às implicações do conhecimento histórico no acontecer histórico. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.