E assim, surge a questão de se saber até que ponto a superioridade dialética da filosofia da reflexão corresponde a uma verdade pautada na coisa ou até que ponto gera tão-somente uma aparência formal. Pois a argumentação da filosofia da reflexão não pode acabar ocultando que a crítica contra o pensamento especulativo, que é exercida do ponto de vista da limitada consciência humana, contém algo de verdade. Isso se mostra muito particularmente nas formas epigônicas do idealismo, por exemplo, na crítica neokantiana da filosofia da vida e da FILOSOFIA EXISTENCIAL. Em 1920, Heinrich Rickert, argumentando fundamentalmente a “filosofia da vida”, não conseguiu alcançar o efeito de Nietzsche e de Dilthey, que então começava a exercer sua grande influência. Mesmo que se mostre claramente a contraditoriedade interna de qualquer relativismo, as coisas não deixam de ser como as descreve Heidegger: todas essas argumentações triunfais têm sempre algo de uma tentativa de ataque de surpresa. Por mais convincentes que pareçam, passam ao largo face ao verdadeiro núcleo das coisas. Servindo-se delas se tem razão, e, no entanto, não expressam nenhuma evidência superior, que fosse fecunda. É uma argumentação irrefutável que a tese do ceticismo ou do relativismo pretende ser verdade e, por conseguinte, se auto-suprime. Mas, o que se consegue com isso? O argumento da reflexão, que alcança esse fácil triunfo, ricocheteia contra aquele que o emprega, na medida em que torna suspeito o valor de verdade da reflexão. O que se alcança através dessa argumentação não é a realidade do ceticismo ou de um relativismo capaz de dissolver qualquer verdade, mas a pretensão de verdade do argumentar formal em geral. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Passando pelo historicismo radical e sob o impulso da teologia dialética (Barth, Thurneysen) e desembocando no tema da desmitologização, foi a reflexão hermenêutica de R. Bultmann que fundamentou uma autêntica mediação entre a exegese histórica e a exegese dogmática. Isso representou, sem dúvida, um marco histórico. O dilema entre a análise histórico-individualizante e o anúncio do querigma permanece, do ponto de vista teórico, insolúvel; o conceito de “mito” usado por Bultmann mostrou desde logo ser [102] uma construção carregada de pressupostos, baseada no Iluminismo moderno. Não obstante, o debate sobre a desmitologização, apresentado com muito acerto por G. Bornkamm, continua a despertar um grande interesse hermenêutico geral, visto reapresentar a antiga tensão entre dogmática e hermenêutica numa versão contemporânea. Bultmann distanciou sua auto-reflexão teológica do idealismo para aproximá-la do pensamento de Heidegger. Isso evidencia a influência direta do postulado de Karl Barth e da teologia dialética que tornaram consciente a problemática humana e teológica do “falar sobre Deus”. Bultmann procurava uma solução “positiva”, isto é, passível de ser legitimada metodologicamente, sem renunciar a nenhuma das conquistas da teologia histórica. A FILOSOFIA EXISTENCIAL de Heidegger, presente em Sere tempo, parecia-lhe oferecer nesse caso uma posição antropológica neutra, a partir da qual a autocompreensão da fé poderia encontrar uma fundamentação ontológica. O caráter de devir da pre-sença no modo da autenticidade e, no seu lado oposto, a decadência no mundo, podiam ser interpretados teologicamente com os conceitos de fé e pecado. Mas essa interpretação não seguia a linha da exposição heideggeriana da questão do ser, sendo uma reinterpretação antropológica. Não obstante, a relevância universal da questão de Deus para a existência humana, fundamentada por Bultmann na “autenticidade” do poder-ser, alcançou um ganho hermenêutico real. Consistia, sobretudo, no conceito da compreensão prévia — sem falar nas abundantes contribuições exegéticas dessa consciência hermenêutica. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.
O novo impulso filosófico de Heidegger não fez sentir seus efeitos positivos apenas na teologia, mas rompeu sobretudo com a rigidez relativista e tipológica reinantes na escola de Dilthey. Deve-se a G. Misch ter liberado novamente os impulsos filosóficos de Dilthey confrontando-o com Husserl e Heidegger. Não obstante a sua construção do princípio filosófico que rege a filosofia da vida de Dilthey estabeleça uma oposição com relação a Heidegger, o retorno de Dilthey à perspectiva da “vida”, ultrapassando a “consciência transcendental”, representou um importante apoio para a elaboração filosófica de Heidegger. A publicação de diversos tratados dispersos de Dilthey, realizada por G. Misch e outros, nos volumes V-VIII, [103] assim como as instrutivas introduções de Misch, trouxeram a público pela primeira vez, nos anos 20, a obra filosófica de Dilthey, que havia sido encoberta por seus trabalhos históricos. O problema hermenêutico alcançou sua radicalização filosófica quando as ideias de Dilthey (e Kierkegaard) passaram a fundamentar a FILOSOFIA EXISTENCIAL. Foi quanto Heidegger formulou o conceito de uma “hermenêutica da facticidade”, impondo — em contraposição à ontologia fenomenológica da essência, de Husserl — a tarefa paradoxal de interpretar a dimensão “imemorial” (Schelling) da “existência” e inclusive a própria existência como “compreensão” e “interpretação”, ou seja, como um projetar-se para possibilidades de si próprio. Nesse momento, alcançou-se um ponto no qual o caráter instrumentalista do método, presente no fenômeno hermenêutico, teve de reverter-se à dimensão ontológica. “Compreender” não significa mais um comportamento do pensamento humano dentre outros que se pode disciplinar metodologicamente, conformando assim a um procedimento científico, mas perfaz a mobilidade de fundo da existência humana. A caracterização e ênfase que Heidegger atribui à compreensão como a mobilidade de fundo da existência culmina no conceito de interpretação, desenvolvido em sua significação teórica sobretudo por Nietzsche. Esse desenvolvimento está fundamentado na dúvida frente aos enunciados da autoconsciência, dos quais se deve duvidar melhor do que o fez Descartes, como diz expressamente Nietzsche. Em Nietzsche, o resultado dessa dúvida é uma modificação do sentido de verdade em geral. Com isso, o processo de interpretação transforma-se numa forma de vontade de poder, adquirindo assim uma significação ontológica. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.
Foi a FILOSOFIA EXISTENCIAL, hoje tão menosprezada, que defendeu algumas dessas verdades. Sobretudo o conceito de situação desempenhou um papel muito importante no afastamento da metodologia cientificista da escola neokantiana. De fato, nesse conceito, analisado sobretudo por Karl Jaspers, encontra-se uma motivação lógica, cuja complexidade supera a simples relação entre universal e particular ou entre lei e caso concreto. Encontrar-se numa situação possui sempre um momento inalcançável para o conhecimento objetivante. Não é por acaso que, em contextos semelhantes, usamos expressões metafóricas como a da necessidade de colocar-se na situação, a fim ultrapassar o conhecimento genérico e descobrir o que é realmente factível e possível. A situação não tem caráter de objeto e refuta a premissa de que bastaria o conhecimento dos dados objetivos para alcançar o seu saber. Mesmo um conhecimento suficiente de todos os dados objetivos, como ocorre na ciência, não seria capaz de antecipar a perspectiva daquele que está vinculado à situação. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.
Mas justamente quando se reconhece a problemática da relevância ficará difícil permanecer fiel ao lema da liberdade dos valores desenvolvido por Max Weber. Não é suficiente manter um deci-sionismo cego com relação aos últimos objetivos, em favor do qual falou abertamente Max Weber. Aqui o racionalismo metodológico desemboca num irracionalismo tosco. Conjugar nele a assim chamada FILOSOFIA EXISTENCIAL seria desconhecer as coisas por completo. A verdade, porém, é exatamente o seu contrário. Mas a intenção do conceito de clarificação da existência proposto por Jasper era justamente submeter as decisões últimas a uma clarificação racional; não é por acaso que ele considerava os conceitos de “razão e existência” como sendo inseparáveis. Heidegger, por sua vez, tirou consequências ainda mais radicais. Ele buscou esclarecer a falácia ontológica da distinção entre valor e realidade e dissolver o conceito dogmático do “fato”. Nesse sentido, a questão dos valores não desempenha nenhum papel nas ciências da natureza. É verdade que, no contexto próprio de sua investigação, essas ciências estão submetidas a nexos que podem ser esclarecidos hermeneuticamente. Mas com isso ainda não extrapolam o círculo de sua competência metodológica. Mas nelas o que se questiona é algo parecido, pelo menos em um único ponto. Em sua investigação científica, as ciências são real e totalmente independentes da imagem de mundo que guardam pela linguagem, onde vivem os investigadores enquanto tais? E serão independentes sobretudo do esquema de mundo de sua própria língua materna? Mas, em outro sentido, também aqui está sempre em jogo a hermenêutica. Mesmo que, usando uma linguagem normatizada pela ciência, se conseguisse filtrar todas as conotações que provêm da língua materna, ainda assim permaneceria o problema da “tradução” dos conhecimentos científicos para a linguagem comum, único meio de as ciências da natureza alcançarem sua universalidade comunicativa e com isso sua relevância social. Mas isso já não afetaria a investigação como tal. Apenas mostraria que a mesma não é “autônoma”, mas está inserida em um contexto social. Isso vale para toda e qualquer ciência. Nesse caso, não é necessário reservar uma autonomia especial para as ciências “compreensivas”, e tampouco se pode deixar de perceber que nelas o saber pré-científico desempenha um papel muito importante. Decerto, tudo aquilo que nessas ciências possui esse modo de ser pode ser classificado como “acientífico”, como cientificamente incomprovável etc. Mas é exatamente por isso que se reconhece a estrutura dessas ciências. Então devemos objetar também que é justamente o saber pré-científico, remanescente nessas ciências como um resto lamentável de acientificidade, que constitui seu modo próprio de ser e determina a vida prática e social das pessoas — inclusive as condições para que estas possam fazer ciência — mais decisivamente que tudo que se pode conseguir e até querer por meio de uma crescente racionalização dos contextos humanos de vida. Será realmente possível e desejável que confiemos a um especialista todas as questões decisivas tanto da vida social e política quanto da vida privada e pessoal? E, afinal de contas, na aplicação concreta de sua ciência, o próprio especialista não empregaria sua ciência, mas apenas sua razão prática. E mesmo que esse fosse um engenheiro social ideal, por que razões sua razão prática deveria ser melhor que a das outras pessoas? VERDADE E METODO II ANEXOS 29.