A realidade fundamental capaz de mediar essas distâncias é a linguagem. Nela o intérprete (ou tradutor!) traz novamente à fala o que compreendeu. Teólogos e poetólogos chegam a falar inclusive de acontecimentos de linguagem. Em certo sentido, a hermenêutica aproxima-se com isso, por seu próprio caminho, da filosofia analítica, provinda da crítica metafísica do neopositivismo. Desde que essa filosofia já não se atém a resolver de uma vez por todas o “feitiço da linguagem”, mediante a análise dos modos de falar e trazendo todos os enunciados ao padrão da univocidade com a ajuda de linguagens simbólicas artificiais, ela tampouco pode evitar defrontar-se com o funcionar da linguagem nos jogos de linguagem, como mostraram as Investigações filosóficas de Wittgenstein. K.O. Apel assinalou com razão que o conceito de “jogo de linguagem” só permite descrever, de modo descontínuo, a continuidade da tradição. À medida que a hermenêutica supera a ingenuidade positivista presente no conceito do dado (Gegebenes), através da reflexão sobre os condicionamentos da compreensão (compreensão prévia, prioridade da pergunta, história da motivação de cada enunciado), ela faz também uma crítica da reflexão metodológica positivista. Até que ponto ela segue o esquema da teoria transcendental (K.O. Apel) ou antes a dialética histórica (J. Habermas) é um assunto controverso. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
A partir desse contexto, fica claro que um enunciado jamais tem seu pleno conteúdo de sentido a partir de si mesmo. Na lógica, essa questão ficou conhecida como o problema da ocasionalidade. A característica especial das chamadas expressões “ocasionais”, recorrentes em todos os idiomas, é não conterem seu pleno sentido em si mesmas, como ocorre com outras expressões. Quando digo, por exemplo, “aqui”, essa palavra não é compreensível para todos pelo simples fato de ser pronunciada ou escrita. É preciso saber onde ocorreu ou onde ocorre. Para sua própria significação, a palavra “aqui” deve ser complementada pela ocasião, a occasio, em que foi pronunciada. A análise lógico-fenomenológica interessou-se de modo especial por expressões desse gênero, porque se pode demonstrar que esses significados incluem a situação e a ocasião em seu próprio conteúdo significativo. O problema específico das assim chamadas expressões “ocasionais” em muitos aspectos ainda carece de exploração. Foi o que fez Hans Lipps em suas Untersuchungen zur hermeneutischen Logik (Investigações sobre a lógica hermenêutica). Algo similar ocorre na moderna filosofia analítica inglesa, como nos chamados “austinianos”, os seguidores de [196] Austin. Austin expôs um importante questionamento do seguinte modo: “How to do things with words” (Como fazer coisas com palavras?). São exemplos de modos de falar que na sua execução transcendem a si próprios, que se destacam e distanciam nitidamente do puro conceito de enunciado. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.
Quando em 1959 concluí o presente livro, estava em dúvida se este não tinha vindo “tarde demais”, ou seja, se o balanço do pensamento sobre a história da tradição empreendido nele já não se havia tornado quase supérfluo. Multiplicavam-se os sinais de uma nova onda de inimizades tecnológicas à história. Correspondia também a essa onda a crescente recepção da teoria da ciência e da filosofia analítica anglo-saxônicas assim como o novo impulso que tomaram as ciências sociais. E entre elas sobretudo a psicologia social e a linguística social não prometiam nenhum futuro para a tradição humanista das ciências românticas do espírito. Mas era essa a tradição da qual eu havia partido. Ela representava o solo experimental de meu trabalho teórico, mesmo que não representasse seu limite nem seu objetivo. Mas mesmo no âmbito das ciências histórico-clássicas do espírito já não se podia deixar de reconhecer uma mudança de estilo na direção dos novos meios metodológicos da estatística, da formalização, uma urgência no sentido de um planejamento científico e uma organização técnica de pesquisa. Estava-se abrindo caminho para uma nova autocompreensão “positivista”, estimulada pela adoção de métodos e questionamentos americanos e ingleses. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.