Semelhantemente universal é a função epistemológica que possui o conceito de vivência na fenomenologia de Husserl. Na 5â investigação lógica (22 capítulo) diferencia-se expressamente o conceito de vivência fenomenológica da popular. A unidade da vivência não é entendida como uma parte da corrente real da experiência de um eu, mas como uma relação intencional. A unidade de sentido chamada “vivência” é também aqui uma unidade teleológica. Somente existem vivências na medida em que nelas algo se experimenta ou é intencionado. É verdade que Husserl reconhece também vivências não-intencionais, mas essas restringem-se, como momentos materiais, à unidade de sentido de vivências intencionais. Desse ponto de vista, o conceito de vivência, em Husserl, transforma-se num título abrangente para todos os atos do consciente, cuja estrutura essencial é a intencionalidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Vê-se assim que, em Dilthey, como em Husserl, na filosofia da vida, tal como na fenomenologia, o conceito da vivência se mostra, de início, como um conceito puramente epistemológico. Em ambos ele é reivindicado com a sua significação teleológica, mas não é determinado conceitualmente. Que é a vida que se manifesta na vivência, significa apenas que é a última coisa a que tornamos a voltar. Para essa cunhagem conceitual, do ponto de vista do desempenho, a história da palavra forneceu uma certa legitimação. Pois vimos que uma significação condensadora e intensiva faz parte da formação da palavra vivência. Quando algo é denominado ou avaliado como uma vivência, isso ocorre através de sua significação associada à unidade de sentido total. O que vale como vivência é realçado tanto por outras vivências — nas quais se experimenta algo diferente — bem como pelo restante do decurso da vida — no qual “nada” é experimentado. O que vale como uma vivência não é mais meramente uma fugaz torrente passageira na torrente da vida consciente — é vista como unidade e ganha, através disso, uma nova maneira de ser una. Nesse sentido é muito compreensível que a palavra apareça na literatura biográfica e que se origine, ao final das contas, do uso autobiográfico. O que se pode denominar vivência constitui-se na lembrança. Aludimos com isso ao conteúdo significante que, para quem teve a vivência, fica como uma posse duradoura. É isso o que ainda legitima o discurso da vivência intencional e da estrutura teleológica, que o consciente possui. Por outro lado, porém, há no conceito da vivência também a contraposição da vida para com o conceito. A vivência possui uma acentuada imediaticidade, que se subtrai a todas as opiniões sobre o seu significado. Tudo o que foi vivenciado é auto-vivência e colabora para perfazer seu significado o fato de que este pertence à unidade do “auto”, contendo assim uma correlação insubstituível e imprescindível com o todo dessa vida. Nesse sentido e de acordo com a natureza da coisa, não desabrocha nele o que se pode obter por intermédio dele e se pode fixar como seu significado. A reflexão autobiográfica ou biográfica, em que se determina seu conteúdo significante, fica fundida no todo do movimento da vida e continua acompanhando-a ininterruptamente. Ser assim tão determinada, a ponto de a gente não conseguir dar conta dela, é, por assim dizer, a maneira de ser da vivência. Nietzsche diz: “Nos homens profundos as vivências duram longo tempo”. Com isso ele quer dizer o seguinte: elas não são esquecidas rapidamente, sua elaboração é um longo processo e justamente nisso reside seu ser específico e seu significado e não somente no conteúdo, como tal, experimentado originariamente. O que denominamos enfaticamente de vivência significa pois algo inesquecível e insubstituível, que é basicamente inesgotável para uma determinação compreensível de seu significado. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Não obstante, se se quisesse tentar uma autodeterminação da existência estética, que construísse a mesma coisa fora da continuidade hermenêutica da existência humana, ignorar-se-ia, pelo que acredito, o direito da crítica feita por Kierkegaard. Mesmo que se possa reconhecer que no fenômeno estético são visíveis os limites da auto-evidência histórica da existência (Dasein), limites que correspondem aos apresentados pelo que é [102] natural, o qual, colocado também no espírito como sua condição, penetra no que é espiritual nas mais diversas formas, como mito, como sonho, como pré-formação da vida consciente. Mesmo assim não nos é dado nenhum posto que nos permita ver a partir de si próprio o que assim nos limita e condiciona e, a partir de fora, ver-nos como os assim limitados e condicionados. Inclusive aquilo que está fechado à nossa compreensão é experimentado por nós mesmos como algo que limita e pertence, assim, à continuidade da auto-evidência, na qual a existência humana se movimenta. Com o reconhecimento da “debilidade do belo e da eventualidade do artista” não se caracteriza, na verdade, uma estruturação de ser fora da “fenomenologia hermenêutica” da existência, mas antes, se formula a tarefa de preservar a continuidade hermenêutica que perfaz o nosso ser, em face de tal descontinuidade do ser estético e da experiência estética. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Ao contrário, quanto mais clarividente se nos torna o lento desenvolvimento do pensamento husserliano, através da evolução de sua grande tarefa, vai se tornando mais claro que, com o tema da intencionalidade, institui-se uma crítica cada vez mais radical ao “objetivismo” da filosofia anterior — incluindo a Dilthey — que deveria culminar na exigência de “que a fenomenologia intencional, pela primeira vez, fez do espírito enquanto espírito, um campo de experiência sistemática e uma [248] ciência, dando, com isso, uma reviravolta total à tarefa do conhecimento. A universalidade do espírito absoluto abarca todo o ente numa historicidade absoluta, na qual se inclui a natureza como uma construção do espírito”. Não é por acaso que, aqui, o espírito se oponha como o único absoluto, isto é, não relativo, à relatividade de tudo que se lhe manifesta; sim, o próprio Husserl reconhece a continuidade entre a sua fenomenologia e o questionamento transcendental de Kant e de Fichte: Mas é preciso que se acrescente que o idealismo alemão que parte de Kant já estava apaixonadamente preocupado em superar a ingenuidade que já era bem visível (sc. do objetivismo). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Com isso é que se ganhou a ideia da “fenomenologia”, ou seja, a desvinculação de toda suposição do ser e a investigação dos modos subjetivos de estarem dadas as coisas, fazendo-se disso um programa universal de trabalho, o que teria que tornar compreensível toda objetividade, todo sentido do ser. Agora, também a subjetividade humana possui validez ôntica. Nessa perspectiva, deve também ser vista como “fenômeno”, ou seja, também ela deve ser examinada em toda a variedade de seus modos de encontrar-se dada. Essa investigação do eu como fenômeno não é “percepção interna” de um eu real, mas tampouco é mera reconstrução da “consciencialidade”, isto é, remissão dos conteúdos da consciência a um pólo transcendental ao eu (Natorp), mas um tema altamente diferenciado, próprio da reflexão transcendental. Face a um mero estar dado dos fenômenos da consciência objetiva, de um estar dado em vivências intencionais, essa reflexão representa o acréscimo de uma nova dimensão da pesquisa. Pois há também dados que, de sua parte, não são objeto de atos intencionais. Toda vivência implica os horizontes do anterior e do posterior e se funde, em última análise, com o continuum das vivências presentes no anterior e posterior na unidade da corrente vivencial. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Se acompanharmos essas e outras indicações linguísticas e conceituais parecidas, que se encontram de quando em quando em Husserl, sentimo-nos próximos do conceito especulativo da “vida” do idealismo alemão. O que Husserl pretende dizer é, sem dúvida, que não se deve pensar a subjetividade como oposta à objetividade, porque esse conceito de subjetividade estaria então sendo pensado de maneira objetivista. Sua fenomenologia transcendental pretende ser, ao contrário, uma “investigação de correlações”. Mas isso quer dizer que o primário é a relação, e que os “pólos” nos quais se desenrola estão circunscritos por ela, da mesma forma que o ser vivo circunscreve todas as suas manifestações vitais na unidade do seu ser orgânico. “A ingenuidade do discurso que fala da ‘objetividade’, que deixa totalmente fora de questão a subjetividade, a qual experimenta e conhece e é a única que produz de uma maneira [254] verdadeiramente concreta; a ingenuidade do cientista da natureza e do mundo em geral, que é cego para o fato de que todas as verdades que ele ganha como objetivas, e mesmo o próprio mundo objetivo que é o substrato de suas fórmulas, é a sua própria configuração de vida, que se tornou nele mesmo — essa ingenuidade deixa de ser possível na medida em que se coloca a vida como objeto de consideração”. É o que escreve Husserl com relação a Hume. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Com isso, o conde Yorck eleva à categoria de um princípio metódico o que Husserl, mais tarde, irá desenvolver amplamente na sua fenomenologia. Compreende-se, dessa maneira, como foi possível que se encontrassem, no geral, dois pensadores tão diversos como Husserl e Dilthey. O retorno a posições anteriores à abstração do neokantismo torna-se comum a ambos. Yorck concorda com ambos, e no entanto, ele oferece ainda mais que isso. Pois não retrocede até a vida apenas com intenção epistemológica, senão que retém também a relação metafísica de vida e autoconsciência, da forma como Hegel a havia elaborado. E é nisso que Yorck se mostra superior a Husserl e a Dilthey. As reflexões epistemológicas de Dilthey, como vimos, acabaram errando o alvo no momento em que derivou a objetividade da ciência, num raciocínio excessivamente curto, a partir do comportamento vital e sua busca do estável. A Husserl faltou, de modo absoluto, uma determinação mais próxima do que é a vida, embora o núcleo da fenomenologia, a investigação das correlações acompanhem, segundo a coisa em causa, o modelo estrutural da relação vital. O conde Yorck, porém, estende a ponte que sempre fazia falta entre a Fenomenologia do espírito de Hegel e a Fenomenologia da subjetividade transcendental de Husserl. Não obstante, os fragmentos que nos legou não mostram como pensava evitar a metafisização dialética da vida, que ele mesmo reprova em Hegel. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
1.3.2. O projeto de Heidegger de uma fenomenologia hermenêutica VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Também Heidegger está determinado, inicialmente, por aquela tendência comum a Dilthey e a Yorck, que um e outro formularam como “conceber a partir da vida”, tendência que, em Husserl, encontrou expressão como retorno a uma posição anterior à objetividade da ciência. Entretanto, ele não ficou mais submetido às implicações epistemológicas, segundo as quais o retorno à vida (Dilthey), tal como a redução transcendental (o caminho de Husserl da auto-reflexão absolutamente [259] radical), encontram seu fundamento metódico no fato de as vivências darem-se por si mesmas. Antes, tudo isso torna-se o objeto de sua crítica. Sob o termo-chave de uma “hermenêutica da facticidade” Heidegger opõe à fenomenologia eidética de Husserl, e à distinção entre fato e essência, sobre que ela repousa, uma exigência paradoxal. A facticidade da pre-sença, a existência, que não é passível de fundamentação nem de dedução, deveria representar a base ontológica do questionamento fenomenológico, e não o puro “cogito”, como estruturação essencial de uma generalidade típica: uma ideia tanto audaz como difícil de ser cumprida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
O aspecto crítico dessa ideia não era, certamente, totalmente novo. Sob a forma de uma crítica ao idealismo, esse aspecto já havia sido pensado pelos neo-hegelianos, e, nesse sentido, não é por acaso que tanto os demais críticos do idealismo neokantiano como o próprio Heidegger acolham nesse momento um Kierkegaard procedente da crise espiritual do hegelianismo. Porém, de outra parte, essa crítica ao idealismo, tanto naquele tempo como agora, vê-se confrontada com a ampla pretensão do questionamento transcendental. Na medida em que a reflexão transcendental não queria deixar impensado nenhum dos possíveis motivos do pensamento no desenvolvimento do conteúdo do espírito — e desde Hegel, essa foi a pretensão da filosofia transcendental — esta já inclui sempre toda objeção possível na reflexão total do espírito. E isso vale igualmente para o questionamento transcendental, sob o qual Husserl colocou a tarefa universal da fenomenologia: a constituição de toda validez ôntica. É evidente que essa tarefa tem de incluir em si também a facticidade a que Heidegger deu validade. Husserl pode, assim, reconhecer o ser-no-mundo como um problema da intencionalidade de horizonte da consciência transcendental, e a historicidade absoluta da subjetividade transcendental teria de poder mostrar também o sentido da facticidade. Por isso Husserl pôde, em seguida, objetar contra Heidegger, mantendo-se consequente na sua ideia central do eu-originário, que o próprio sentido da facticidade é um eidos e pertence, portanto, essencialmente à esfera eidética das generalidades essenciais. Se examinarmos nesse rumo os esboços contidos nos últimos trabalhos de Husserl, sobretudo os trabalhos a respeito da “Crise”, no VII tomo, neles encontraremos realmente numerosas análises da “historicidade absoluta”, continuando a desenvolver de modo consequente a problemática das “Ideias”, as quais correspondem ao novo, revolucionário e polêmico ponto de partida de Heidegger. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Gostaria de relembrar que o próprio Husserl já havia colocado [260] a problemática dos paradoxos que surgem do desenvolvimento de seu solipsismo transcendental. Por isso não é fácil assinalar objetivamente o ponto a partir do qual Heidegger pode colocar sua ofensiva ao idealismo fenomenológico de Husserl. Deve-se admitir, inclusive, que o projeto heideggeriano de Ser e tempo não escapa por completo ao âmbito da problemática da reflexão transcendental. A ideia da ontologia fundamental, sua fundamentação sobre a pre-sença, que coloca sua importância no ser, assim como a analítica dessa pre-sença, pareciam de fato tão-somente colocar as medidas a uma nova dimensão de questionamento dentro da fenomenologia transcendental. O fato de que todo sentido do ser e da objetividade só se torna compreensível e demonstrável a partir da temporalidade e historicidade da pre-sença — uma fórmula perfeitamente possível para a tendência de Ser e tempo — eis algo que também Husserl reivindicou em seu sentido, ou seja, a partir da base da historicidade absoluta do eu-originário. E se o programa metódico de Heidegger se orienta criticamente contra o conceito da subjetividade transcendental a que Husserl reportava toda fundamentação última, Husserl podia ter qualificado isso de ignorância da radicalidade da redução transcendental e já teria superado e excluído toda implicação de uma ontologia da substância e, com isso, também o objetivismo da tradição. Pois também Husserlse sentia em oposição ao todo da metafísica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Seja como for, é característico o fato de que, para Husserl, essa oposição alcançava o seu ponto menos agudo, aí onde se trata do questionamento transcendental empreendido por Kant, por seus verdadeiros precedentes e precursores. A auto-reflexão radical, que constituiu seu mais profundo impulso e que ele considerava como a essência da filosofia moderna, permitiu-lhe apelar a Descartes e aos ingleses e seguir o modelo metódico da crítica kantiana. Sua fenomenologia “constitutiva” caracterizava-se, no entanto, por uma universalidade na colocação de suas tarefas que era estranha a Kant e que tampouco o neokantismo alcançou, o qual deixou inquestionado o “factum da ciência”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Era claro, portanto, que o projeto heideggeriano de uma ontologia fundamental tinha como pano de fundo o problema da história. Todavia, em breve se perceberia que, nem a solução do problema do historicismo, nem uma fundamentação originária das ciências, e até nem mesmo uma autofundamentação ultra-radical da filosofia de Husserl corresponderiam ao sentido dessa ontologia fundamental; é a própria ideia da fundamentação que experimenta agora uma inversão total. O questionamento já não é mais igual ao dé Husserl, quando Heidegger empreende a interpretação do ser, verdade e história a partir da temporalidade absoluta. Pois essa temporalidade já não era mais a da “consciência” ou a do eu-originário transcendental. E verdade que na linha de pensamentos de Ser e tempo soa, todavia, como uma intensificação da reflexão transcendental, como a conquista de uma etapa mais elevada da reflexão, quando o tempo se revela como o horizonte do ser. Pois é a carência de uma base ontológica da subjetividade transcendental, que já Heidegger havia reprovado na fenomenologia de Husserl, o que parece ficar superado na ressurreição do ser. O que o ser significa terá de ser determinado a partir do horizonte do tempo. A estrutura da temporalidade aparece assim como a determinação ontológica da subjetividade. Porém ela era mais do que isso. A tese de Heidegger era: o próprio ser é tempo. Com isso se rompe todo o subjetivismo da mais recente filosofia — sim, como logo se mostraria todo o horizonte de questionamento da metafísica, assumindo no ser como o presente (Anwesende). O fato de que à pre-sença importe o seu ser, e o fato de que se distinga de todo outro ente por sua compreensão do ser, isso não representa, como dá a entender em Ser e tempo, o fundamento último de que deve partir um questionamento transcendental. O que está em questão é um fundamento completamente diferente, o qual é o último que possibilita toda compreensão do ser, é o próprio fato de que exista um “pré” (“dá”), uma clareira no ser, isto é, a [262] diferença entre ente e ser. A indagação que se orienta para esse fato básico de que “há” tal coisa, pergunta, na verdade, ser, mas numa direção que ficou necessariamente impensada em todos os questionamentos anteriores sobre o ser dos entes, e que inclusive foi encoberta e ocultada pela indagação metafísica pelo ser. Sabe-se que Heidegger manifesta esse esquecimento essencial do ser que domina o pensamento ocidental desde a metafísica grega, apontando a confusão ontológica que o problema do nada provoca nesse pensamento. E, enquanto deixa manifesto que essa indagação pelo ser é ao mesmo tempo a indagação pelo nada, une o começo e o final da metafísica. O fato de que a indagação pelo ser pode ser colocada a partir da indagação pelo nada já pressupõe o pensamento do nada, ante o qual havia fracassado a metafísica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
O que Heidegger, finalmente, chama de “conversão” não é uma nova guinada no movimento da reflexão transcendental, mas justamente a liberação e a realização dessa tarefa. Embora Ser e tempo ponha criticamente a descoberto a deficiente determinação ontológica do conceito husserliano da subjetividade transcendental, a sua própria exposição da questão do ser encontra-se formulada segundo os meios da filosofia transcendental. Na verdade, a renovação da questão do ser, que Heidegger tomou como tarefa, significa, no entanto, que, em meio ao “positivismo” da fenomenologia, ele reconheceu o problema fundamental da metafísica, ainda não resolvido, problema que, na sua culminação extrema, ocultou-se no conceito do espírito tal como foi pensado pelo idealismo especulativo. Por isso, a tendência de Heidegger é orientar a sua crítica ontológica contra o idealismo especulativo, passando pela crítica a Husserl. Em sua fundamentação da hermenêutica da “facticidade”, sobrepassa tanto o conceito do espírito, desenvolvido pelo idealismo clássico, como o campo temático da consciência transcendental, purificado pela redução fenomenológica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
A fenomenologia hermenêutica de Heidegger e a análise da historicidade da pre-sença buscavam uma renovação geral da questão do espírito ou uma superação das aporias do historicismo [263]. Tratava-se meramente de problemas atuais, nos quais se pudesse demonstrar as consequências de sua renovação radical da questão do ser. Mas graças precisamente à radicalidade de seu questionamento pôde sair do labirinto em que se haviam deixado apanhar as investigações de Dilthey e Husserl sobre os conceitos fundamentais das ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Nesse sentido, também nós nos reportamos ao sentido transcendental do questionamento heideggeriano. Através da interpretação transcendental da compreensão de Heidegger o problema da hermenêutica ganha uma feição universal, e até, o surgimento de uma dimensão nova. A pertença do intérprete ao seu objeto, que não conseguia encontrar uma legitimação correta na reflexão da escola histórica, obtém agora, por fim, um sentido concretamente demonstrável e é tarefa da hermenêutica demonstrar este sentido. Também para a realização da compreensão que se dá nas ciências do espírito, vale a ideia de que a estrutura da pre-sença é um projeto lançado, e de que a pre-sença é, segundo a realização de seu próprio ser, compreender. A estrutura geral da compreensão atinge a sua concreção na compreensão histórica, na medida em que na própria compreensão tornam-se operantes as vinculações concretas de costume e tradição e as correspondentes possibilidades de seu próprio futuro. A pre-sença, que se projeta para seu poder-ser, é já sempre “sido”. Este é o sentido do existencial do estar-lançado. O fato de que todo comportar-se livremente com respeito ao ser careça da possibilidade de retroceder para trás da facticidade deste ser, constitui a finesse da hermenêutica da facticidade e de sua oposição à investigação transcendental da constituição na fenomenologia de Husserl. A pre-sença já encontra [269] como uma premissa insuperável, o que torna possível e limita todo seu projetar. Essa estrutura existencial da pre-sença tem de encontrar sua cunhagem também na compreensão da tradição histórica, e por isso seguiremos em primeiro lugar a Heidegger. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
A consciência da história efeitual é em primeiro lugar consciência da situação hermenêutica. No entanto, o tornar-se [307] consciente de uma situação é uma tarefa que em cada caso reveste uma dificuldade própria. O conceito de situação se caracteriza pelo fato de não nos encontrarmos diante dela e, portanto, não podemos ter um saber objetivo dela. Nós estamos nela, já nos encontramos sempre numa situação, cuja iluminação é a nossa tarefa, e esta nunca pode se cumprir por completo. E isso vale também para a situação hermenêutica, isto é, para a situação em que nos encontramos face à tradição que queremos compreender. Também a iluminação dessa situação, isto é, a reflexão da história efeitual, não pode ser plenamente realizada, mas essa impossibilidade não é defeito da reflexão, mas encontra-se na essência mesma do ser histórico que somos. Ser histórico quer dizer não se esgotar nunca no saber-se. Todo saber-se procede de um dado histórico prévio, que chamamos, com Hegel, “substância”, porque suporta toda opinião e comportamento subjetivo e, com isso, prefigura e delimita toda possibilidade de compreender uma tradição em sua alteridade histórica. A partir disso a tarefa da hermenêutica filosófica pode ser caracterizada como segue: tem de refazer o caminho da fenomenologia do espírito hegeliana, até o ponto em que, em toda subjetividade, se mostra a substancialidade que a determina. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Entre fenomenologia e dialética — Tentativa de uma [3] autocrítica (1985) VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
A fenomenologia da consciência do tempo explicita a fundamentação temporal da validade objetiva. Esta é a intenção indubitável de Husserl que acaba sendo convincente. Segundo me parece, não se consegue suprimir a identidade quando se refuta a ideia da fundamentação transcendental última de Husserl e com isso também o reconhecimento do ego transcendental e de sua autoconstituição temporal como última instância de fundamentação das Investigações lógicas. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Heidegger, porém, não ficou preso ao esquema transcendental, que ainda determinava o conceito de autocompreensão em Ser e tempo. Já em Ser e tempo a verdadeira questão não era de que maneira se pode compreender o “ser”, mas de que maneira a compreensão é “ser”. A compreensão de ser constitui a caracterização existencial da pre-sença humana. Já aqui não se compreende ser como o resultado de uma produção objetivadora da consciência, como ainda era o caso na fenomenologia de Husserl. Quando a pergunta pelo ser visa o ser da pre-sença que compreende a si própria, assume-se uma dimensão inteiramente diversa. Nessa pergunta, o esquema transcendental acaba fracassando. Assume-se no questionamento ontológico a contraposição infinita do ego transcendental. Nesse sentido, já em Ser e tempo se começa a superar aquele esquecimento do ser que Heidegger caracterizou mais tarde como a essência da metafísica. O que ele chama de “virada” (die Kehre) nada mais é que o reconhecimento da impossibilidade de superar o esquecimento do ser na reflexão transcendental. Nesse sentido, todos os conceitos posteriores, o “acontecer do ser”, o “pré” como a “clareira” do ser etc. são consequências implícitas no primeiro enfoque de Ser e tempo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.
A palavra também não pode ser definida pela “unidade ideal” da significação verbal de signos ou de outros fenômenos expressivos [197]. De certo, uma das contribuições lógicas e fenomenológicas mais importantes do princípio do século XX foi dada pela fenomenologia, sobretudo por Husserl em suas Investigações lógicas, ao elaborar a distinção entre o significado das palavras e o restante de todos os signos. Ele mostrou corretamente que o significado de uma palavra nada tem a ver com as imagens de representação real-psíquicas, que aparecem no uso de uma palavra. A idealização que adquire uma palavra por ter um significado, e sempre esse significado a distingue de todos os outros sentidos de “significado”, como por exemplo o significado de signo. Por mais fundamental que seja a visão de que o significado de uma palavra não é simplesmente de natureza psíquica, ainda não basta dizer que se trata da unidade ideal de um significado verbal. A linguagem consiste em que, apesar de seu significado determinado, as palavras não são unívocas, mas possuem uma amplitude de significação sempre oscilante e é justamente essa oscilação que constitui o atrevimento característico do dizer. Só na realização do dizer, no prosseguimento do dizer, na construção de um contexto de linguagem é que se fixam os momentos significativamente importantes do discurso, ajustando-se uns aos outros. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.
Mas, para não falarmos sempre apenas desse sentido mais extremo e profundo de diálogo, devemos também considerar diversas formas de diálogo que ocorrem em nossa vida, agora ameaçados como discutimos em nosso tema. O primeiro é o diálogo pedagógico. Não que merecesse por si uma primazia especial, mas nele mostra-se de modo especial o que pode estar por trás da experiência da incapacidade para o diálogo. O diálogo entre professor e alunos é certamente uma das formas mais primitivas de experiência de diálogo, e aqueles carismáticos do diálogo de que falamos acima são todos mestres e professores que ensinam seus discípulos ou alunos através do diálogo. Na situação do professor reside uma dificuldade peculiar em manter firme a capacidade para o diálogo, na qual a maioria sucumbe. Aquele que tem que ensinar acredita dever e poder falar, e quanto mais consistente e articulado por sua fala, tanto [212] mais imagina estar se comunicando com seus alunos. É o perigo da cátedra que todos conhecemos. Recordo-me de meu tempo de estudante de um seminário que fiz com Husserl. Sabemos que o exercício do seminário costuma conter o máximo de diálogo investigativo possível e o mínimo possível de diálogo pedagógico. Husserl, que nos primeiros vinte anos como mestre de fenomenologia em Friburgo sentia-se movido por um profundo impulso missionário e exercia na realidade uma atividade filosófica de ensino muito significativa, não era nenhum mestre do diálogo. Ele abria aqueles seminários com uma questão inicial, recebia uma resposta curta e movido por essa prosseguia seu monólogo por duas horas seguidas. Quando ao final da reunião saía da sala junto com seu assistente, Heidegger, dizia a este último: “hoje, sim, tivemos realmente um debate animado”. São experiências desse tipo que nos dias de hoje colocaram em crise as preleções acadêmicas. A incapacidade para dialogar dá-se principalmente por parte do professor, e sendo o professor o autêntico transmissor da ciência, essa incapacidade radica-se na estrutura de monólogo da ciência moderna e da formação teórica. Em escolas superiores têm-se feito repetidas tentativas de animar as preleções através do debate, fazendo-se também a experiência contrária de que a passagem da posição receptiva de ouvinte para a iniciativa da pergunta e da oposição é extremamente difícil e raras vezes alcança êxito. Por fim, na situação de ensino, quando esta ultrapassa a intimidade de um pequeno círculo, reside uma dificuldade intransponível para o diálogo. Platão já sabia disso: o diálogo jamais se torna possível com muitas pessoas, nem pela simples presença de muitos. Nossas experiências com os chamados fóruns de conversação, esses diálogos em mesas semi-redondas, são também diálogos semimortos. Há também outras situações de diálogo autênticas, isto é, individualizadas, onde o diálogo conserva sua verdadeira função. Gostaria de distinguir três tipos diferentes: O diálogo para negociação, o diálogo terapêutico e o diálogo familiar. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 16.
Nas áreas iniciais de meus estudos hermenêuticos, as ciências da arte e as ciências da história da filologia, é fácil demonstrar como a reflexão hermenêutica torna-se efetiva. Basta lembrar o abalo que a reflexão hermenêutica sobre o conceito de arte — ou sobre o conceito das épocas singulares ou de estilo — impingiu à autonomia que gozava a história dos estilos na consideração das ciências da arte; como a iconografia passou de uma posição marginal para uma posição de destaque, como a reflexão hermenêutica sobre os conceitos de vivência e expressão teve consequências na ciência da literatura — mesmo que apenas no sentido de dar um impulso mais consciente às tendências de investigação presentes de há muito (A ação recíproca também é ação). É óbvio e [248] natural que o abalo de preconceitos bem estabelecidos prometa progresso científico. Possibilita novas perguntas, e nós experimentamos constantemente o que pode alcançar a investigação histórica através da consciência da história dos conceitos. Nessas áreas, creio ter demonstrado como se intermedeia o estranhamento histórico pela figura da “fusão de horizontes”. Devo ao lúcido trabalho de Habermas ter-me feito ver a contribuição hermenêutica no campo das ciências sociais, sobretudo pela confrontação da compreensão prévia da teoria positivista da ciência, mas também a de uma fenomenologia apriorística e de uma linguística geral, com a dimensão hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
É também o motivo que me leva a crer que o conceito de “emancipação” não está em condições para descrever o curso gradual das formas que percorre o espírito em devir na fenomenologia de Hegel. De certo que a experiência da dialética em Hegel atua como mudança produzida pela conscientização. Parece-me que Bubner destaca, com razão e muita objetividade, na dialética fenomenológica de Hegel, que uma figura do espírito que procede de outra, na verdade não procede desta, mas desenvolve uma nova imediatez. O curso gradual das figuras do espírito é de certo modo projetado a partir de sua conclusão. Não é deduzido a partir de seu início. Foi o que me levou à formulação de que a “Fenomenologia do espírito” deve ser lida de trás para frente, como na verdade foi concebida: partindo do sujeito em direção à substância expandida nele e que ultrapassa sua consciência. Essa tendência de inversão comporta uma crítica radical à ideia do saber absoluto. A transparência absoluta do saber equivale a um encobrimento idealista da infinitude ruim, na qual o ser finito chamado homem faz suas experiências. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
Quando Heidegger elevou o tema da compreensão de uma metodologia das ciências do espírito à condição de um existencial e fundamento de uma ontologia da “pre-sença”, a dimensão hermenêutica já não representou um estrato superior na investigação da intencionalidade fenomenológica, baseada na percepção física, mas fez aflorar sobre uma base europeia e dentro da orientação da fenomenologia o que na lógica anglo-saxônica aparecia quase simultaneamente como a linguistic turn. No desenvolvimento originário da investigação fenomenológica levada a efeito por Husserl e Scheler, a linguagem permaneceu na penumbra, apesar da guinada que se deu rumo à Lebenswelt (“mundo da vida”). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Na fenomenologia repetira-se o abissal esquecimento da linguagem que já havia caracterizado o idealismo transcendental e que parecia encontrar respaldo na infeliz crítica de Herder à guinada transcendental kantiana. A linguagem não encontrou um lugar de honra nem sequer na dialética e na lógica hegelianas. Por outro lado, Hegel mencionou ocasionalmente o instinto lógico da linguagem, cuja antecipação especulativa do absoluto impôs a tarefa da obra genial da Lógica hegeliana. Na verdade, por trás da germanização da linguagem escolar da metafísica, imposta por Kant no estilo rococó, a contribuição de Hegel à linguagem da filosofia foi de inegável relevância. Hegel destacou formalmente a grande energia de Aristóteles na formação da linguagem e dos conceitos, e seguiu de perto seu egrégio exemplo ao procurar salvar na linguagem do conceito muito do espírito de sua língua materna. Essa circunstância acarretou-lhe o inconveniente da intradutibilidade, uma barreira que tem sido insolúvel durante mais de um século e que hoje continua constituindo um obstáculo difícil de ultrapassar. Mas o certo é que tampouco Hegel outorgou à linguagem um posto central. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Em Heidegger repetiu-se uma irrupção parecida, e até mais vigorosa, do impulso originário da linguagem na esfera do pensamento. O que contribuiu muito para isso foi seu recurso consciente à originalidade da linguagem filosófica grega. Assim, em virtude da força intuitiva de suas raízes plantadas no mundo da vida, a “linguagem” retomou toda sua virulência e penetrou decisivamente no sutil artifício descritivo da fenomenologia husserliana. Era [362] inevitável que a própria linguagem se convertesse em objeto de sua auto-compreensão filosófica. Quando já em 1920, como eu mesmo posso testemunhar, partindo de uma cátedra alemã, um jovem pensador — Heidegger — começou a meditar sobre o significado de “mundear” (es weltet), isso representou uma brecha aberta na linguagem escolar da metafísica, que se pautava por uma linguagem sólida, mas inteiramente distanciada de suas origens. Esse fato representou ao mesmo tempo um acontecimento no âmbito da linguagem e a conquista de uma compreensão mais profunda da própria linguagem. A atenção que a tradição do idealismo alemão dedicou ao fenômeno da linguagem, desde Humboldt, os irmãos Grimm, Schleiermacher, Schlegel e por último Dilthey, e que deu um claro impulso à nova ciência da linguagem, sobretudo à linguagem comparada, permaneceu no âmbito da filosofia da identidade. A identidade do subjetivo e o objetivo, de pensamento e ser, de natureza e espírito se manteve até a filosofia das formas simbólicas inclusive, entre as quais destaca-se a linguagem. Como o ponto extremo desse fenômeno, encontramos a obra sintética da dialética hegeliana, que através de todas as contradições e diferenciações imagináveis, buscava restabelecer a identidade e elevar a originária ideia aristotélica do noesis noeseos a sua perfeição mais apurada. Foi assim que o parágrafo final da Enciclopédia de ciências filosóficas de Hegel o formulou, de um modo um tanto insolente. Como se a longa história do espírito tivesse dirigido todo seu esforço a uma única meta: tantae molis erat se ipsam cognoscere mentem, conclui Hegel evocando um verso de Virgílio. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
O fato de a mediação dialética ao estilo de Hegel já ter realizado a seu modo a superação do subjetivismo moderno permaneceu um desafio constante para o novo pensamento pós-metafísico do século XX. O conceito hegeliano de espírito objetivo dá um testemunho eloquente a esse respeito. A mediação total da dialética pôde absorver inclusive a própria crítica de raiz religiosa que o lema kierkegaardiano “ou isso ou aquilo” exerceu sobre o lema “tanto isso quanto aquilo”, próprio da auto-superação dialética de todas as teses. A própria crítica de Heidegger ao conceito de consciência, que, mediante uma radical destruição ontológica, demonstrou que todo o idealismo da consciência não passa de uma alienação do pensamento grego e que atinge em cheio a fenomenologia de Husserl, revestida de neokantismo, tampouco isso representou uma ruptura total. O que se chamou de ontologia fundamental da pre-sença, apesar de todas as análises temporais sobre o caráter de [363] “cura” da presença, não pôde superar sua auto-referência e com isso a posição fundamental ocupada pela autoconsciência. Por isso, não pôde produzir uma verdadeira ruptura que pudesse se libertar da imanência da consciência de cunho husserliano. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Quando chamo de dialética à situação inicial da qual Heidegger tenta percorrer seu caminho de volta, não o faço pela razão extrema segundo a qual Hegel fez sua síntese secular do legado da metafísica mediante uma dialética especulativa que pretendia recolher e assimilar toda a verdade do começo grego. Faço-o sobretudo porque Heidegger foi realmente aquele que não ficou preso às modificações e perpetuações do legado da metafísica realizadas pelo neokantismo de Marburgo e pela reformulação neokantiana da fenomenologia de Husserl. O que ele buscou como superação da metafísica não se esgotou no gesto de protesto, como é o caso da esquerda hegeliana e de figuras como Kierkegaard e Nietzsche. Ele empreendeu essa tarefa pelo árduo trabalho do conceito, [369] aprendido em Aristóteles. Dialética significa, pois, em meu contexto o amplo conjunto da tradição ocidental da metafísica, tanto o “lógico” em sentido hegeliano quanto o logos do pensamento grego, que marcou já os primeiros passos da filosofia ocidental. Nesse sentido, a tentativa de Heidegger de renovar a pergunta pelo ser, ou melhor, de formulá-la pela primeira vez em sentido não metafísico, portanto, o que ele chamou de “o passo para trás” foi um distanciamento da dialética. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Em seu esforço para construir uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito, Dilthey encontrou uma forte oposição da escola epistemológica, que naquele momento também buscava fundamentar as mesmas ciências, partindo do ponto de vista neokantiano, ou seja, da filosofia dos valores desenvolvida por Windelband und Rickert O sujeito epistemológico pareceu-lhe ser uma abstração anêmica. Por mais que ele próprio estivesse entusiasmado pela busca de objetividade nas ciências do espírito, não poderia abstrair do fato de o sujeito conhecente, o historiador que compreende, não estar simplesmente postado frente ao seu objeto, a vida histórica, mas ser sustentado, ele próprio, pelo mesmo movimento da vida histórica. Sobretudo em seus últimos anos, Dilthey buscou cada vez mais fazer justiça à filosofia idealista da identidade, uma vez que no conceito idealístico do espírito estava pensada a mesma generalidade substancial entre sujeito e objeto, entre eu e tu, como ocorria em seu próprio conceito de vida. Aquilo que Georg Misch defendeu de modo tão agudo como ponto de vista da filosofia da vida contra Husserl e Heidegger partilhou com a fenomenologia tanto a crítica a um objetivismo histórico ingênuo quanto a sua justificação epistemológica através da filosofia dos valores vinda do sudoeste da Alemanha. Por mais evidente que tenha sido, a constituição do fato histórico, através da referência aos valores, não fez justiça às implicações do conhecimento histórico no acontecer histórico. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Mas o que diz Betti a respeito disso? Afirma que estou restringindo o problema hermenêutico à quaestio facti (“fenomenologicamente”, “descritivamente”), e que não coloco a quaestio iuris. Como se a tematização kantiana da quaestio iuris quisesse prescrever como deveria ser realmente a ciência pura da natureza, e não procurasse, antes, justificar a possibilidade transcendental da mesma, como ela era. No sentido dessa diferenciação kantiana, o pensamento que ultrapassa o conceito de método das ciências do espírito, como procuro apresentar em meu livro, coloca a questão pela “possibilidade” das ciências do espírito (o que não significa dizer como elas propriamente deveriam ser!). Nesse caso, o que confunde o louvável investigador é um estranho ressentimento contra a fenomenologia. Mostra-se no fato de ele só conseguir pensar o problema da hermenêutica como um problema de método, e isto profundamente emaranhado no subjetivismo que se trata de superar. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
[411] Foi nesse ponto que o trabalho da escola fenomenológica mostrou-se fecundo. Hoje, uma vez tendo ganho uma visão de conjunto das diversas fases de desenvolvimento da fenomenologia de Husserl, parece-me claro que foi ele quem deu o primeiro passo radical nessa direção, ao demonstrar o modo de ser da subjetividade como historicidade absoluta, ou seja, como temporalidade. A obra a que se costuma referir nesse contexto e que marcou época, Ser e tempo de Heidegger, tinha uma intenção bem diferente e muito mais radical: colocar a descoberto a inadequação da concepção ontológica prévia que domina a compreensão moderna da subjetividade e da “consciência”, incluindo ainda sua formulação extrema como fenomenologia da temporalidade e da historicidade. Essa crítica serviu à tarefa positiva de recolocar a questão do “ser”, à qual os gregos deram uma primeira resposta com a metafísica. Mas Ser e tempo não foi compreendido nessa sua intenção autêntica, mas no que Heidegger tinha em comum com Husserl, uma vez que se viu nessa obra a defesa radical da absoluta historicidade da “pre-sença”, tal como essa procedia já da análise husserliana da fenomenalidade originária da temporalidade (“fluir” = Strömen). Argumentava-se assim, por exemplo: O modo de ser da pre-sença ganha agora uma determinação ontologicamente positiva. Não é um ser simplesmente dado, mas tem o caráter do porvir. Não há verdades eternas. Verdade é a abertura do ser que se dá juntamente com a historicidade da pre-sença. Aqui poder-se-ia encontrar o fundamento para justificar a crítica ao objetivismo histórico que se dava nas próprias ciências. É, por assim dizer, um historicismo de segunda ordem, que não apenas contrapõe a relatividade histórica de todo conhecimento à reivindicação absoluta de verdade, mas também pensa seu fundamento, a historicidade do sujeito conhecente [412], e por isso não pode mais considerar a relatividade histórica como uma restrição da verdade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.Tampouco a fundamentação do conceito de consciência em uma rigorosa fenomenologia da temporalidade, como a que persegue Husserl no esforço de toda sua vida, transcende esse conceito grego de presença. Daí, o problema da linguagem não alcançar no pensamento da tradição o lugar central que hoje lhe outorgamos. Nem Hegel nem Husserl abordaram expressamente esse problema, e mesmo as fundamentações modernas do conhecimento com os recursos da semântica e de uma semiótica universal não conferem o lugar central que deve ser atribuído ao acontecimento da linguagem como tal. O debate hermenêutico moderno colocou o fenômeno do diálogo no centro das discussões, porque a linguagem só se dá, se forma, se amplia e atua no diálogo. Em todo caso, o fenômeno da compreensão sustenta-se no caráter de linguagem desse processo, sem implicar por isso a unilateralidade da teoria psicológica da interpretação de Schleiermacher. A dimensão hermenêutica permanece caracterizada, antes, justamente pelo caráter escrito de todo fenômeno de linguagem. Se há um modelo que pode ilustrar realmente as tensões presentes na compreensão, esse é o modelo da tradução. Na tradução apropria-se o estranho enquanto tal, o que não significa deixá-lo estar como estranho nem incorporá-lo na própria língua pela mera reprodução de seu caráter estranho. Nela fundem-se, antes, os horizontes do passado e do presente num constante movimento, como o que constitui a essência da compreensão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
Também na escola de Marburgo, abriu caminho esse novo sentimento da época. Era impressionante ver o entusiasmo sensível com que o astuto metodólogo da escola de Marburgo, Paul Natorp, se lançou em idade avançada para a inefabilidade mística do inconcreto e, além de Platão e Dostoievski, conjurou a Beethoven e a Rabindranath Tagore, à tradição mística de Plotino e do Mestre Eckhart — até os Quakers. Não menos impressionante era a energia selvagem com que Max Scheler — como conferencista convidado para Marburgo — demonstrou seu penetrante talento fenomenológico em campos sempre novos e inesperados. A isso acrescenta-se a fria nitidez com que Nicolai Hartmann tentou apagar seu próprio passado idealista com uma argumentação crítica; um pensador e mestre de uma tenacidade impressionante. Quando eu escrevi [483] minha dissertação sobre Platão e me doutorei em 1922, muito jovem ainda, estava sob a influência dominante de Nicolai Hartmann, que enfrentou o sistematismo idealista de Natorp. O que havia de vivo em nós era a esperança de uma reorientação filosófica ligada sobretudo à obscura palavra mágica “fenomenologia”. Mas depois que o próprio Husserl, que com todo seu gênio analítico e sua inegável paciência descritiva buscava sempre uma evidência última, não encontrou um melhor apoio filosófico do que o do idealismo transcendental de cunho neokantiano, donde poderia surgir algum amparo intelectual? Foi Heidegger quem o trouxe. Alguns aprenderam dele o que foi Marx, outros o que foi Freud, e todos nós, definitivamente, o que foi Nietzsche. O que me interessou em Heidegger foi que podíamos “repetir” a filosofia dos gregos, uma vez que a história da filosofia escrita por Hegel e reescrita pela “historia dos problemas” do neokantismo havia perdido seu fundamentum inconcussum: a autoconsciência. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.
Mas Platão continuou sendo o centro de meus estudos. Meu primeiro livro sobre ele, Platos dialektische Ethik (Ética dialética platônica), que surgiu a partir de meu trabalho de habilitação, foi na verdade um livro abortado sobre Aristóteles. Meu ponto de partida foram os dois trabalhos aristotélicos sobre o “prazer”. Sendo insolúvel do ponto de vista genético, o problema deveria ser abordado pela via fenomenológica, isto é, se não fosse possível “explicar” essa coexistência pela via histórico-genética, pelo menos deveria ser possível justificá-la. Isso não podia ser feito sem relacionar ambas as passagens com o Filebo de Platão. E, com essa intenção, fiz uma interpretação fenomenológica desse diálogo. Na época, eu ainda não estava em condições de avaliar o que o Filebo significava para a teoria platônica dos números e, sobretudo, para o problema das relações entre ideia e “realidade”. Tinha dois objetivos, ambos sob o mesmo signo metodológico: esclarecer a função da dialética platônica a partir da fenomenologia do diálogo e a doutrina do prazer e suas formas de manifestação mediante uma análise fenomenológica dos dados da vida real. A arte da descrição fenomenológica, que tentara aprender com Husserl (em Friburgo, 1923) e com Heidegger, deveria ser capaz e idônea para uma interpretação dos textos antigos, buscando as “coisas, elas mesmas”. Isso alcançou sucesso tolerável e foi reconhecido, mas não pelo simples historiador, que persiste sempre na ilusão de que compreender o que se encontra ali, o que está presente, seja algo muito trivial. Segundo este, o que vale a pena é investigar o que há por trás. Foi assim que Hans Leisegang, em seu relato sobre a investigação de Platão na atualidade (Archiv für Geschichte der Philosophie = Arquivo sobre história da filosofia, 1923), pôde relegar meu trabalho com desdém, citando essas palavras de meu prólogo: “Sua relação com a crítica histórica já será positiva se essa — na suposição de que não contribua para nada — considerar isso que ela afirma como sendo algo óbvio e evidente”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.