Naturalmente que a demonstração husserliana da idealidade do significado era o resultado de investigações puramente lógicas. O que Dilthey faz disso é algo completamente diferente. Para ele o significado não é um conceito lógico, mas é entendido como expressão da vida. A própria vida, essa temporalidade em constante fluir, está voltada à configuração de unidades de significado duradouras. A própria vida se auto-interpreta. Tem estrutura hermenêutica. É dessa forma que a vida constitui a verdadeira base das ciências do espírito. A hermenêutica não é uma herança romântica no pensamento de Dilthey, mas dá-se consequentemente a partir da fundamentação da filosofia na “vida”. Dilthey pensa que com isso superou fundamentalmente o “intelectualismo” de Hegel. Igualmente não podia satisfazer-lhe o conceito de individualidade romântico-panteísta de origem leibniziana. A fundamentação da filosofia na vida distancia-se também de uma metafísica da individualidade e sabe-se muito distante da monada sem janelas que desenvolve sua própria lei, segundo o aspecto destacado por Leibniz. Para ela a individualidade não é uma ideia originária enraizada no fenômeno. Antes, Dilthey insiste em que toda “vitalidade da alma” se encontra “sob circunstâncias”. Não há uma força originária da individualidade. Esta é o que é na medida em que se impõe. A limitação pelo decurso dos efeitos pertence à essência da individualidade — como é próprio de todos conceitos históricos. Também conceitos como objetivo e significado não fazem referência, em Dilthey, a ideias no sentido do platonismo ou da escolástica. Também eles são conceitos históricos, na medida em que estão referidos a uma limitação pelo decurso dos efeitos: eles têm que ser conceitos de energia. Para isso, Dilthey se reporta a Fichte, que também havia exercido uma influência determinante sobre Ranke. Nesse sentido, sua hermenêutica da vida procura permanecer sobre o solo da concepção histórica do mundo. A filosofia lhe proporciona unicamente as possibilidades conceituais de expressar a verdade daquela. 1250 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Como se sabe, mais tarde Heidegger abandonou o conceito de hermenêutica porque viu que por essa via não poderia romper o feitiço da reflexão transcendental. Seu filosofar, que procurou separar-se do conceito do transcendental sob o signo da “virada”, levou-o a uma crescente penúria no âmbito da linguagem até o ponto de muitos leitores crerem encontrar na nova linguagem de Heidegger mais poesia do que pensamento filosófico. Essa interpretação parece-me um erro. Em função disso, um dos temas que abordo tem sido a busca de maneiras para explicitar a linguagem de Heidegger sobre o ser, um ser que não é o ser do ente. Isso me aproximou mais da história da hermenêutica clássica e me obrigou a afirmar o novo na crítica da mesma. Minha ideia é que nenhuma linguagem conceitual, nem sequer o que Heidegger chama “linguagem da metafísica”, significa um feitiço irremediável para o pensamento, supondo que o pensador se confie à linguagem, isto é, entre em diálogo com outros pensadores e com pessoas que pensam de maneira diferente. Por isso, aceitando totalmente a crítica ao conceito de subjetividade feita por Heidegger, conceito no qual demonstrou a sobrevivência da ideia de substância, busquei detectar no diálogo o fenômeno originário da linguagem. Isto significou, por sua vez, uma reorientação hermenêutica da dialética, desenvolvida pelo idealismo alemão como método especulativo, até a arte do diálogo vivo, no qual se havia realizado o movimento intelectual socrático-platônico. Essa arte não pretendia ser uma dialética meramente negativa. Embora sempre tivesse tido consciência de sua radical insuficiência, ainda não significa que a dialética grega pretendesse ser uma mera dialética negativa. Mas mesmo assim ela apresenta uma correção ao ideal metodológico da dialética moderna, que havia culminado no idealismo do absoluto. O mesmo interesse me levou a indagar a estrutura hermenêutica, não primeiramente na experiência elaborada pela ciência mas na experiência da arte e da historia, que são os objetos das denominadas ciencias do espírito. A obra de arte, embora se apresente como um produto histórico e portanto como possível objeto de investigação científica, nos diz algo por si mesma, de modo que o que enuncia nunca pode ser esgotado pelo conceito. O mesmo podemos afirmar a respeito da experiencia da historia: o ideal de objetividade na [333] investigação da historia é apenas uma vertente, e uma vertente secundária da questão em causa, enquanto que o que caracteriza realmente a experiência histórica é nos encontrarmos num acontecer sem saber como isso nos acontece, e somente na reflexão nos darmos conta do que aconteceu. Nesse sentido a historia deve cada vez de novo ser reescrita a partir de cada presente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
O intérprete deve superar o elemento estranho que impede a inteligibilidade de um texto. Faz-se mediador quando o texto (o discurso) não pode realizar sua missão de ser escutado e compreendido. O intérprete não tem outra função que a de desaparecer uma vez alcançada a compreensão. O discurso do intérprete não é um texto, mas serve ao texto. Isso não significa, porém, que a contribuição do intérprete se esgote no modo de escutar o texto. Essa contribuição não é temática, não é objetivável como texto, mas está incorporada ao texto. Essa figura caracteriza a relação entre texto e interpretação em seus aspectos mais gerais. Aqui aparece um momento da estrutura hermenêutica que convém ressaltar. Essa linguagem mediadora possui, ela própria, uma estrutura dialogai. O intérprete que faz a intermediação entre as duas partes do diálogo nada pode fazer a não ser considerar sua distância frente ao emaranhado de ambas as posições como uma espécie de superioridade. Por isso, sua ajuda no entendimento não se limita ao plano de linguagem, mas passa sempre por uma intermediação real que busca equilibrar o direito e os limites de ambas as partes. O “intermediador do discurso” converte-se em “negociador”. Creio que se dá uma relação muito parecida entre o texto e o leitor. Após superar o elemento estranho de um texto, ajudando assim o leitor a compreendê-lo, a retirada do intérprete não significa desaparecimento em sentido negativo. Significa antes sua entrada na comunicação, resolvendo assim a tensão entre o horizonte do texto e o horizonte do leitor. É que chamo de fusão de horizontes. Os horizontes separados como pontos de vista diferentes fundem-se num. Por isso a compreensão de um texto tende a integrar o leitor no que diz o texto. É justamente aí que o texto desaparece. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
O que tem me ocupado nos últimos anos e o que tenho buscado em diversas conferências ainda não publicadas (Bild und Wort; Das Sein des Gedichteten; Von der Wahrheit des Wortes; Philo-sophical, poetical, religious speaking = Imagem e palavra; O ser do poético; Sobre a verdade da palavra; Diálogo filosófico, poético e religioso) são os problemas hermenêuticos especiais dos textos eminentes. Esse tipo de texto fixa a pura ação de linguagem, e tem com isso um eminente relacionamento com o escrito. Nele, a linguagem está presente de tal modo que sua relação cognitiva com o dado está tão suspensa como a referência comunicativa no sentido da interpelação. Então, a situação hermenêutica geral básica da constituição e fusão de horizontes, a que dei um desenvolvimento conceitual expresso, deverá ser aplicada também a esses textos eminentes. Estou longe de afirmar que o modo como uma obra de arte fala à sua época e ao seu mundo (o que H.R. Jauss chama de sua “negatividade”) não ajuda a determinar seu significado, ou seja, o modo como ela nos fala. Este era realmente o núcleo da consciência da história dos efeitos, a saber, pensar a obra (Werk) e seu efeito (Wirkung) como a unidade de um sentido. O que descrevi como fusão de horizontes representa a forma como essa unidade se realiza. Esta não permite ao intérprete falar de um sentido originário de uma obra sem que na compreensão da mesma já não esteja sempre implicado o sentido próprio do intérprete. Toda vez que se pensar, por exemplo, que é possível “romper” o círculo da compreensão, através do método histórico-crítico (como pensou recentemente Kimmerle), se está ignorando essa estrutura hermenêutica fundamental. O que Kimmerle descreve, assim, é simplesmente o que Heidegger caracterizava como “entrar no círculo de maneira correta”, ou seja, não é uma atualização anacrônica e nem um acrítico puxar brasas para a sardinha das próprias opiniões prévias. A elaboração do horizonte histórico de um texto já é sempre uma fusão de horizontes. O horizonte histórico não pode ser erigido primeiramente por si. Isso é conhecido na hermenêutica mais recente como a problemática da compreensão prévia. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.