Gadamer (VM): essência da hermenêutica

1.1.1. A transformação da essência da hermenêutica entre o Aufklärung e o Romantismo 943 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Mesmo assim, a tarefa que ele se impõe é, precisamente, a de separar o procedimento do compreender. Trata-se de torná-lo autônomo, como uma metodologia própria. A isso estará unida também, para Schleiermacher, a necessidade de libertar-se das proposições de tarefas redutoras, que tinham determinado em seus predecessores, Wolf e Ast, a essência da hermenêutica. Não aceita nem a restrição às línguas estrangeiras nem sequer a restrição aos escritores, “como se isso mesmo não pudesse ocorrer igualmente na conversação e no discurso apreendido imediatamente”. 1007 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A tensão entre o motivo estético-hermenêutico e o motivo da filosofia da história na escola histórica alcança seu ponto culminante em Wilhelm Dilthey. Seu status se deve a que reconhece realmente o problema epistemológico que implica a concepção histórica do mundo face ao idealismo. Como biógrafo de Schleiermacher, como historiador que, ante a teoria romântica da compreensão, coloca a pergunta histórica sobre gênese e a essência da hermenêutica e que escreve a história da metafísica ocidental, Dilthey até se movimenta no horizonte de problemas do idealismo alemão — porém como aluno de Ranke e da nova filosofia da experiência, própria de seu século, encontra-se simultaneamente num solo tão diferente, que já não pode aceitar a validez nem da filosofia da identidade estético-panteísta, de Schleiermacher, nem da metafísica hegeliana integrada histórico-filosoficamente. Indubitavelmente, também em Ranke e Droysen se dá uma discrepância análoga de sua atitude entre idealismo e pensamento empírico, mas em Dilthey essa discrepância tornou-se particularmente aguda. Pois nele já não se trata de uma mera continuação do espírito clássico-romântico dentro de uma reflexão empírica de investigação, mas sim que essa tradição continuada é abafada por uma retomada consciente das ideias primeiro de Schleiermacher e depois de Hegel. 1204 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Outro exemplo da influência da compreensão prévia na investigação da história da hermenêutica é a distinção introduzida por L. Geldsetzer entre hermenêutica dogmática e hermenêutica cética. Com a ajuda dessa distinção entre uma interpretação ligada aos dogmas e apoiada pelas instituições e sua autoridade, que busca sempre a defesa consequente das normas dogmáticas, e uma interpretação de textos adogmática, aberta, heurística, que leva às vezes a um non liquet, a história da hermenêutica adota uma figura que denuncia a compreensão prévia cunhada pela teoria da ciência moderna. Nessa perspectiva aparece a hermenêutica recente, na medida em que apoia interesses teológico-dogmáticos, numa inquietante proximidade com uma hermenêutica jurídica que se compreende, de forma muito dogmática, como imposição da ordem estabelecida pelas leis. Quando no trabalho de busca jurídica ignoramos o elemento cético na exposição da lei e consideramos a essência da hermenêutica jurídica como uma mera subsunção do caso particular sob a lei geral dada, devemos perguntar se não estamos deformando o conhecimento da hermenêutica jurídica. As ideias mais recentes sobre a relação dialética entre lei e caso particular, com os recursos decisivos que oferece Hegel, parecem modificar nossa compreensão prévia da hermenêutica jurídica. O papel da jurisprudência sempre restringiu o modelo da subsunção. Na verdade, a jurisprudência está a serviço da interpretação correta da lei (e não somente de sua aplicação correta). Algo parecido vale, e com mais razão ainda, para a interpretação da Bíblia, à margem de toda tarefa prática, ou, mutatis mutandis, para a interpretação dos clássicos. Se nesse caso a “analogia da fé” não representa nenhum dado dogmático fixo para a interpretação da Bíblia, a linguagem que permite o acesso do leitor a um texto clássico tampouco pode ser concebida adequadamente se nos orientarmos pelo conceito (279) científico da objetividade e mantivermos o caráter de exemplaridade desse texto para um estreitamento dogmático da compreensão. Creio que a própria distinção entre hermenêutica dogmática e hermenêutica cética é dogmática e deveria desaparecer na análise hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.