O estado atual da discussão hermenêutica nos permite devolver a esse ponto de vista sua significação de princípio. Para começar, podemos apelar à história esquecida da hermenêutica. Antes era coisa lógica e natural que a tarefa da hermenêutica fosse a de adaptar o sentido de um texto à situação concreta a que este fala. O intérprete da vontade divina, aquele que sabe interpretar a linguagem dos oráculos, representa seu modelo originário. Mas ainda hoje em dia o trabalho do intérprete não é simplesmente reproduzir o que realmente diz o interlocutor, ao qual ele interpreta, mas ele tem de fazer valer a opinião daquele assim como lhe parece necessário, tendo em conta como é autenticamente a situação dialogai na qual somente ele se encontra como conhecedor das duas línguas que estão em comércio. 1705 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Creio que a discussão atual sobre o problema hermenêutico em parte alguma é tão acirrada quanto no âmbito da teologia protestante. Em certo sentido, também aqui, como ocorre na hermenêutica jurídica, estão em questão interesses que ultrapassam a ciência. O que significa dizer, interesses de fé e de sua correta proclamação. Como consequência temos que a discussão hermenêutica se vê envolta em questões exegéticas e dogmáticas, frente às quais o leigo não pode tomar posição. Mas como ocorre na hermenêutica jurídica, também aqui mostra-se claramente a primazia dessa situação: O “sentido” dos textos a serem compreendidos não pode ser restrito à opinião imaginativa de seu autor. Em toda a grandiosa e monumental obra de Karl Barth, sua Kirchliche Dogmatik (Dogmática eclesial), encontramos contribuições implícitas ao problema hermenêutico, mesmo que nunca apareçam de forma expressa. Com Rudolf Bultmann, as coisas se dão de maneira um pouco diferente, visto que demonstra grande interesse pelas considerações metodológicas e em suas obras completas tomou posição expressa, por diversas vezes, frente ao problema da hermenêutica. Mas, mesmo no caso de Bultmann, o centro de gravidade de todo questionamento conserva um cunho eminentemente teológico, não somente no sentido de que seu trabalho exegético representa o solo experimental e o âmbito de aplicação de seus princípios hermenêuticos, mas também e sobretudo no sentido de que a grande discussão teológica atual, a questão da desmitologização do Novo Testamento, contém muito mais tensões dogmáticas do que o que seria conveniente a reflexões metodológicas. Estou convencido de que o princípio da desmitologização contém um aspecto puramente hermenêutico. Segundo Bultmann, esse esquema não serve para se decidir previamente sobre questões dogmáticas, por exemplo, sobre quantos conteúdos dos escritos bíblicos são essenciais para o anúncio cristão e com isso para a fé, e o que, por exemplo, poderia ser eliminado. Trata-se, porém, do problema da compreensão do próprio anúncio cristão, do sentido em que este deve ser compreendido, se é que deve ser “compreendido”. Talvez, e até certamente, seja possível compreender no Novo Testamento “mais” do que o compreendeu Bultmann. O que só poderá [404] acontecer se compreendermos esse “rnais” corretamente, i. é, realmente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
A atual discussão hermenêutica que se apoia em Bultmann parece querer superá-lo apenas numa certa direção. Se para Bultmann o apelo do anúncio cristão se dirige ao homem, no sentido de que deve renunciar à vontade de dispor de si mesmo, a própria convocação desse apelo é de certo modo uma experiência privada que o homem faz enquanto dispõe de si mesmo. Nesse sentido, Bultmann interpretou o conceito heideggeriano da inautenticidade da pre-sença de uma maneira eminentemente teológica. Em Heidegger, porém, a inautenticidade não está ligada à autenticidade no mesmo sentido em que a decadência é tão própria à existência humana quanto a “decisibilidade”, e que o pecado (a falta de fé) lhe é tão próprio quanto a fé. Em Heidegger, a origem comum de autenticidade e inautenticidade ultrapassa o ponto de partida baseado na autocompreensão. É a primeira forma sob a qual, no pensamento de Heidegger, o próprio ser veio à fala em sua polaridade de desvelamento e velamento. Assim como Bultmann se apoia na analítica existencial da pre-sença, de Heidegger, para explicitar a existência escatológica do homem entre fé e falta de fé, pode-se também tomar esta dimensão da questão do ser a partir do ponto de vista teológico, na medida em que se traz para a “linguagem da fé” o significado central que possui a linguagem nesse acontecimento do ser. Essa dimensão aparece melhor explicitada no Heidegger tardio. Já na discussão hermenêutica feita por Ott, marcada por um tom altamente especulativo, encontramos uma crítica dirigida a Bultmann, muito próxima à Carta sobre o humanismo de Heidegger. Corresponde à sua própria tese positiva, p. 107: “A linguagem, na qual ‘vem à fala’ a realidade, na qual e com a qual se realiza a reflexão sobre a existência humana, essa linguagem acompanha a existência em todas as épocas de seu acontecer”. Creio que também as ideias hermenêuticas do teólogo Fuchs e Ebeling têm sua origem no Heidegger tardio, na medida em que priorizam decisivamente o conceito da linguagem. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.