Gadamer (VM): conversação

Para desenvolver uma CONVERSAÇÃO é necessário, em primeiro lugar, que os interlocutores não passem ao largo um do outro na CONVERSAÇÃO. É por isso que possui, necessariamente, a estrutura de pergunta e resposta. A primeira condição da arte da CONVERSAÇÃO é nos assegurarmos de que o interlocutor nos acompanhe no mesmo passo. Isso nos é bem conhecido pelas constantes respostas afirmativas dos interlocutores do diálogo platônico. O lado positivo dessa monotonia é a correctura sequencial interna com a qual no diálogo prossegue o desenvolvimento do tema. Levar uma CONVERSAÇÃO quer dizer pôr-se abaixo da direção do tema, acerca do qual se orientam os interlocutores. Requer não abafar o outro com argumentos, mas, pelo contrário, sopesar realmente o peso objetivo da opinião contrária. Por isso, é uma arte do ir experimentando. No entanto, a arte de ir experimentando é a arte de perguntar; pois já vimos que perguntar quer dizer colocar aberto e postar no aberto. Contra a firmeza das opiniões, o perguntar põe em suspenso o assunto com suas possibilidades. Aquele que possui a “arte” de perguntar sabe defender-se do modo de perguntar repressor que a opinião dominante mantém. Aquele que possui esta arte irá, ele próprio, buscar tudo o que possa ser a favor de uma opinião. A dialética consiste não na tentativa de buscar o ponto fraco do que foi dito, mas, antes, em encontrar sua verdadeira força. Por consequência não entende, com isso, aquela arte de falar e argumentar que é capaz de tornar forte uma coisa fraca, mas a arte de pensar que é capaz de reforçar o que foi dito, a partir da própria coisa. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A esta arte de reforçar é que os diálogos platônicos devem sua surpreendente atualidade. Pois nela, o que foi dito transforma-se sempre nas possibilidades extremas de seu direito e de sua verdade, e sobrepuja toda contra-argumentação que pretenda pôr limites à vigência de seu sentido. Evidentemente, que aí não se trata de um mero deixar as coisas como estão. Pois aquele que quer conhecer não pode deixar o assunto na versão de simples opiniões, isto é, não lhe é permitido distanciar-se das opiniões que estão em questão. Aquele que fala é sempre, ele mesmo, aquele que se põe a falar até que apareça por fim a verdade daquilo de que se fala. A produtividade maiêutica do diálogo socrático, sua arte de parturiente da palavra orienta-se, obviamente, às pessoas humanas que constituem os companheiros do diálogo, porém limita-se a manter-se nas opiniões que estes exteriorizam e cuja consequência imanente e objetiva desenvolve-se no diálogo. O que vem à tona, na sua verdade, é o logos, que não é nem meu nem teu, e que por isso sobrepuja tão amplamente a opinião subjetiva dos companheiros de diálogo, que inclusive aquele que o conduz permanece sempre como aquele que não sabe. A dialética, como arte de conduzir uma CONVERSAÇÃO, é ao mesmo tempo a arte de olhar juntos na unidade de uma perspectiva (auvopav eia ev a Soa) isto é, a arte da formação de conceitos como elaboração da intenção comum. O que caracteriza a CONVERSAÇÃO, face à forma endurecida das proposições que urgem sua fixação escrita, é precisamente que, aqui, em perguntas e respostas, no dar e tomar, no passar ao largo de outro na conversa e no pôr-se de acordo, a língua realiza aquela comunicação de sentido cuja elaboração artística face à tradição literária, é a tarefa da hermenêutica. Por isso, quando a tarefa hermenêutica é concebida como um entrar em diálogo com o texto, isso é algo mais que uma metáfora, é uma verdadeira recordação do originário. O fato de que a interpretação que produz isso se realiza linguisticamente, não quer dizer que se veja deslocada a um médium estranho, mas, ao contrário, que se restabelece uma comunicação de sentido originário. O que foi transmitido em forma literária é assim recuperado, a partir do alheamento em que se encontrava, ao presente vivo do diálogo cuja realização originária é sempre perguntar e responder. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Assim, podemos apelar a Platão, quando colocamos em primeiro plano a referência à pergunta também para o fenômeno hermenêutico. Podemos fazê-lo tanto mais, pelo fato de que no próprio Platão já se mostra o fenômeno hermenêutico de uma certa forma. Sua crítica à escrita deveria ser analisada, uma vez, também sob o ponto de vista de que nela aparece uma conversão da tradição poética e filosófica de Atenas em literatura. Nos diálogos de Platão vemos como a “interpretação” de textos, cultivada nos discursos sofísticos, especialmente a interpretação da poesia para fins didáticos, atrai sobre si a repulsa platônica. Vemos também como Platão tenta superar a debilidade dos logoi, e sobretudo a dos escritos, através de sua própria poesia dialogada. A forma literária do diálogo devolve linguagem e conceito ao movimento originário da CONVERSAÇÃO. Com isso a palavra se protege de qualquer abuso dogmático. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O caráter originário da CONVERSAÇÃO se mostra também naquelas formas derivadas nas quais a correlação de pergunta e resposta fica oculta. A própria correspondência epistolar representa um interessante fenômeno de transição: é uma espécie de CONVERSAÇÃO por escrito, que, de algum modo, dilata o movimento do falar que passa ao largo do outro e de se pôr de acordo. A arte epistolar consiste em não deixar que a palavra escrita degenere em tratado, mas em dispô-la à contraposição do interlocutor. Mas também consiste, inversamente, em manter e satisfazer corretamente a medida de caráter definitivo que possui tudo quanto se diz por escrito. Pois a distância temporal que separa o envio de uma carta da recepção de sua resposta não é somente um fato externo, mas um fato que [375] cunha a forma de comunicação da correspondência de uma forma essencial, como uma forma especial da escrita. É significativo que o encurtamento dos prazos postais não somente não tenham conduzido a uma intensificação dessa forma de comunicação, mas que, pelo contrário, tenha favorecido a decadência da arte de escrever cartas. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O caráter original da CONVERSAÇÃO, como mútua referência de pergunta e resposta, mostra-se inclusive num caso tão extremo como o que representa a dialética hegeliana em sua condução de método filosófico. O desenvolvimento da totalidade da determinação do pensar como era o interesse da lógica hegeliana é também a tentativa de abranger, no grande monólogo do “método” moderno, a continuidade de sentido que se realiza particularmente, a cada vez, na CONVERSAÇÃO dos que falam. Quando Hegel impõe a tarefa de tornar fluidas e de dar alma às determinações abstratas do pensar, isso significa refundir a lógica na forma de realização da linguagem, o conceito da força de sentido da palavra que pergunta e responde; mesmo no seu fracasso, isso foi uma grandiosa recordação do que era e é a dialética. A dialética hegeliana é um monólogo do pensar que procura produzir, adiantadamente, o que pouco a pouco vai amadurecendo em cada CONVERSAÇÃO autêntica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Voltemos, pois, à comprovação de que também o fenômeno hermenêutico encerra em si o caráter original da CONVERSAÇÃO e da estrutura da pergunta e da resposta. O fato de que um texto transmitido se converta em objeto da interpretação quer dizer, para começar, que coloca uma pergunta ao intérprete. A interpretação contém, nesse sentido, sempre uma referência essencial constante à pergunta que foi colocada. Compreender um texto quer dizer compreender essa pergunta. Mas isso ocorre, como já mostramos, quando se ganha o horizonte hermenêutico. Nós reconhecemo-lo agora como o horizonte do perguntar, no qual se determina a orientação de sentido do texto. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A dialética de pergunta e resposta que descobrimos na estrutura da experiência hermenêutica nos permitirá agora determinar mais detidamente a classe de consciência que é a consciência da história efeitual. Pois a dialética de pergunta e resposta que pusemos a descoberto permite que a relação da compreensão se manifeste como uma relação recíproca, semelhante à de uma CONVERSAÇÃO. É verdade que um texto não nos fala como o faria um tu. Somos nós, os que o compreendemos, os que temos de trazê-lo à fala, a partir de nós. No entanto, já vimos que este trazer-à-fala, próprio da compreensão, não é uma intervenção arbitrária, nascida de origem própria, mas está referida, enquanto pergunta, à resposta latente no texto. A latência de uma resposta pressupõe, por sua vez, que aquele que pergunta é alcançado e interpelado pela própria tradição. Esta é a verdade da consciência da história efeitual. A consciência com experiência histórica, na medida em que nega o fantasma de um esclarecimento total, justo por isso, está aberta para a experiência da história. Descrevemos sua maneira de realizar-se como a fusão de horizontes do compreender que faz a intermediação entre o texto e seu intérprete. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O pensamento-guia das discussões que se seguem é o de que a fusão dos horizontes que se deu na compreensão é o genuíno desempenho da linguagem. O certo é que, o que é linguagem é uma das coisas mais obscuras que há para a reflexão humana. O caráter linguístico está tão extraordinariamente próximo de nosso pensar e na sua realização é tão pouco objetivo, que ele esconde, a partir de si próprio, o seu verdadeiro ser. No entanto, na nossa análise do pensamento espiritual-científico, nós alcançamos uma tal proximidade desse obscuro geral e que pesa sobre todas as coisas, que podemos nos sentir confiantes da orientação adquirida pela coisa em causa nesse caminho. A partir da CONVERSAÇÃO que nós mesmos somos, buscamos nos aproximar da obscuridade da linguagem. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Se tentamos considerar o fenômeno hermenêutico, segundo o modelo da CONVERSAÇÃO que tem lugar entre duas pessoas, o caráter de unidade e o de orientação entre essas duas situações aparentemente tão diversas, como são a compreensão de um texto e o chegar a um acordo numa CONVERSAÇÃO consiste sobretudo no fato de que toda compreensão e todo acordo têm presente alguma coisa que está postada diante de nós. Da mesma forma que nos pomos de acordo com o nosso interlocutor sobre uma coisa, também o intérprete entende a coisa que lhe diz seu texto. Esta compreensão da coisa ocorre necessariamente em forma linguística, mas não no sentido de revestir secundariamente com palavras uma compreensão já feita. Antes, a realização da compreensão, quer se trate de textos ou de interlocutores que nos apresentam o tema, consiste justamente neste vir-à-fala da própria coisa. Rastrearemos, pois, de início, a estrutura da verdadeira CONVERSAÇÃO, com o fim de dar realce, a partir dela, à peculiaridade daquela outra CONVERSAÇÃO que é o compreender textos. Assim como antes havíamos destacado o significado constitutivo da pergunta para o fenômeno hermenêutico, e o fizemos pela mão da CONVERSAÇÃO, que subjaz, por sua vez, à pergunta, como um momento hermenêutico. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Teremos de afirmar, em primeiro lugar, que a linguagem, na qual algo vem à fala, não é possessão disponível de um ou outro dos interlocutores. Toda CONVERSAÇÃO pressupõe uma linguagem comum ou, melhor dito, constitui, a partir de si, uma linguagem comum. Há, ali, algo postado no meio, como dizem os gregos, onde participam os interlocutores e sobre o que eles criam um intercâmbio mútuo. O acordo sobre o assunto, que deve surgir na CONVERSAÇÃO, significa necessariamente que se elabora uma linguagem comum apenas na CONVERSAÇÃO. Este não é um processo externo de ajustamento de ferramentas, e nem sequer é correto dizer que os companheiros de diálogo se adaptam uns aos outros, mas que ambos vão entrando, à medida que se estabelece a CONVERSAÇÃO, sob a verdade da própria coisa, e é esta a que os reúne numa nova comunidade. O acordo na CONVERSAÇÃO não é uma mera representação e impor o próprio ponto de vista, mas uma transformação rumo ao comum, de onde já não se continua sendo o que se era. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Costumamos dizer que “levamos” uma CONVERSAÇÃO, mas a verdade é que, quanto mais autêntica é a CONVERSAÇÃO, menos possibilidade têm os interlocutores de “levá-la” na direção que desejariam. De fato, a CONVERSAÇÃO autêntica não é nunca aquela que teríamos querido levar. Antes, em geral, seria até mais correto dizer que chegamos a uma CONVERSAÇÃO, quando não nos enredamos nela. Como uma palavra puxa a outra, como a CONVERSAÇÃO dá voltas para cá e para lá, encontra seu curso e seu desenlace, tudo isso pode ter talvez alguma espécie de direção, mas nela os dialogantes são menos os que dirigem do que os que são dirigidos. O que “sairá” de uma CONVERSAÇÃO ninguém pode saber por antecipação. O acordo ou o seu fracasso é como um acontecimento que tem lugar em nós mesmos. Por isso, podemos dizer que algo foi uma boa CONVERSAÇÃO, ou que os astros nos foram favoráveis. São formas de expressar que a CONVERSAÇÃO tem seu próprio espírito e que a linguagem que nela discorre leva consigo sua própria verdade, isto é, “revela” ou deixa aparecer algo que desde este momento é. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

São as situações em que se conturba ou se dificulta o pôr-se de acordo, nas que com mais facilidade se tornam conscientes as condições sob as quais se realiza qualquer entendimento. Por exemplo, acaba sendo particularmente esclarecedor o processo linguístico, no qual, por tradução e translação, se torna possível uma CONVERSAÇÃO em duas línguas diferentes. Aqui o tradutor tem de transladar o sentido que se há de compreender ao contexto em que vive o outro interlocutor. Mas isso não quer dizer, evidentemente, que lhe seja permitido falsear o sentido a que se referia o outro. Antes, é o sentido que precisamente se tem de manter, [388] mas como ele deve ser compreendido num mundo linguístico novo, tem de se fazer valer nele de uma forma nova. Toda tradução já é, por isso, uma interpretação, e inclusive pode-se dizer que é a consumação da interpretação, a qual o tradutor deixa amadurecer na palavra que se lhe oferece. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Onde há acordo não se traduz, pois aí se fala. Entender uma língua estrangeira quer dizer justamente não ter de traduzi-la para a nossa própria língua. Quando alguém domina de verdade uma língua, não somente já não necessita de traduções, mas inclusive qualquer tradução lhe parece impossível. Compreender uma língua não é, por si mesmo, nenhum compreender real, e não encerra nenhum processo interpretativo, mas é uma realização vital. Pois, compreende-se uma língua quando se vive nela — uma frase que vale tanto para as línguas vivas como para as mortas. O problema hermenêutico não é, pois, um problema de correto domínio da língua, mas o correto acordo sobre um assunto, que ocorre no médium da linguagem. Podemos aprender qualquer língua, de maneira que seu uso pleno implique já não termos de traduzir a partir da nossa própria língua ou à nossa própria língua, mas que se possa pensar na língua estrangeira. Para que possa haver acordo numa CONVERSAÇÃO, este gênero de domínio da língua é, na realidade, uma condição prévia. Toda CONVERSAÇÃO implica. Para que possa haver acordo numa CONVERSAÇÃO, este gênero de domínio da língua é, na realidade, uma condição prévia. Toda CONVERSAÇÃO implica o pressuposto evidente de que seus membros falem a mesma língua. Só quando é possível pôr-se de acordo linguisticamente, pelo fato de uns falarem com os outros, é que se pode converter em problema a compreensão e o possível acordo. A dependência da tradução de um intérprete é um caso extremo que duplica o processo hermenêutico, [389] a CONVERSAÇÃO: É a CONVERSAÇÃO do intérprete com a parte contrária, e a própria CONVERSAÇÃO com o intérprete. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

A CONVERSAÇÃO é um processo pelo qual se procura chegar a um acordo. Faz parte de toda verdadeira CONVERSAÇÃO o atender realmente ao outro, deixar valer os seus pontos de vista e pôr-se em seu lugar, e talvez não no sentido de que se queira entendê-lo como esta individualidade, mas sim no de que se procura entender o que diz. O que importa que se acolha é o direito de sua opinião, pautado na coisa, através da qual podemos ambos chegar a nos pôr de acordo com relação à coisa. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Portanto, não referimos sua opinião a ele, mas ao próprio opinar e supor. Quando temos em mente realmente o outro como individualidade, como ocorre na CONVERSAÇÃO terapêutica ou no interrogatório de um acusado, realmente não se pode falar de uma situação de possível acordo (a este deslocar-se ao lugar do outro, que se refere ao outro e não à sua razão objetiva, responde a inautenticidade das perguntas colocadas em tais conversações, o que já tivemos ocasião de caracterizar). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Tudo isso, que caracteriza a situação do pôr-se de acordo na CONVERSAÇÃO toma sua versão propriamente hermenêutica, onde se trata de compreender textos. Voltamos a lembrar o caso extremo da tradução a partir de uma língua estrangeira. Neste caso é indubitável que por mais que o tradutor tenha conseguido entrar na vida e nos sentimentos do autor, a tradução de um texto não é uma simples ressurreição do processo anímico original do escrever, mas uma reconstituição do texto guiada pela compreensão do que se diz nele. Não há dúvida de que se trata de uma interpretação e não de uma simples co-realização. Projeta-se sobre o texto uma outra e nova luz, procedente da nova língua e destinada ao leitor da mesma. A exigência de fidelidade que se coloca numa tradução não pode neutralizar a diferença fundamental entre as línguas. Por mais fiéis que queiramos ser, encontrar-nos-emos colocados diante de decisões errôneas. Se quisermos destacar, na nossa tradução, um traço importante do original, somente podemos fazê-lo deixando em segundo plano outros aspectos ou inclusive reprimindo-os de todo. Mas este é precisamente o comportamento que chamamos de interpretação. Como toda interpretação, a tradução implica uma reiluminação. Quem traduz tem de assumir a responsabilidade dessa reiluminação. Evidentemente, não pode deixar em aberto nada que para ele mesmo seja obscuro. Tem de conhecer nuances. É verdade que há casos extremos nos quais no original (e para o “leitor originário”) há algo que realmente não está claro. Mas são precisamente esses casos hermenêuticos extremos nos quais no original (e para o “leitor originário”) há algo que realmente não está claro. Mas são precisamente esses casos hermenêuticos extremos nos quais no original (e para o “leitor originário”) há algo que realmente não está claro. Mas são precisamente esses casos hermenêuticos extremos os que mostram com mais clareza a situação de tensão e obrigatoriedade na qual sempre se encontra o tradutor. Aqui ele tem de resignar-se. Ele deve dizer claramente como compreende. Mas como se encontra regularmente em situação de não poder dar verdadeira expressão a todas as dimensões de seu texto, isso significa para ele uma constante renúncia. Toda tradução que leve a sério sua tarefa torna-se [390] mais clara e mais fluente que o original. Ainda que seja uma reprodução magistral, faltar-lhe-ão alguns dos sobretons que vibravam junto ao original. (Em alguns poucos casos de recriação verdadeiramente magistral, esta perda pode ser compensada e inclusive ser origem de um novo ganho; penso, por exemplo, nas Flores do mal de Baudelaire que, em sua recriação por Stefan George, parecem respirar uma estranha e nova saúde.) VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

O tradutor tem, muitas vezes, dolorosa consciência da distância que o separa necessariamente do original. Seu trato com o texto tem também algo dos esforços do pôr-se de acordo numa CONVERSAÇÃO. Somente que aqui a situação é a de um acordo particularmente penoso, porque se reconhece que, em última análise, a distância entre a opinião contrária e a própria não é superável. E, tal como na CONVERSAÇÃO, onde se coloca essa classe de diferenças insuperáveis, pode-se alcançar talvez, no vaivém do desenrolar de uma conversa, algum tipo de compromisso, também o tradutor encontrará no vaivém do pesar e sopesar a melhor solução, que será sempre somente um compromisso. Tal como na CONVERSAÇÃO, com o fim de alcançar este objetivo, nos pomos no lugar do outro para compreender seu ponto de vista, também o tradutor procura pôr-se por completo no lugar do autor. Mas isso não proporciona, por si somente, nem o acordo na CONVERSAÇÃO nem o êxito na reprodução da tradução. As estruturas são claramente muito parecidas. O pôr-se de acordo numa CONVERSAÇÃO implica que os interlocutores estejam dispostos a isso e que procurem fazer valer em si mesmos o estranho e o adverso. Quando isto ocorre reciprocamente e cada interlocutor sopesa os contra-argumentos, ao mesmo tempo que mantém suas próprias razões, pode-se chegar finalmente, através de uma transferência recíproca, imperceptível e não arbitrária dos pontos de vista (o que chamamos de intercâmbio de pareceres) a uma linguagem e uma sentença comum. Do mesmo modo, o tradutor tem que manter, por sua vez, o direito de sua língua materna à qual traduz e, no entanto, deixar valer junto a si o estranho e inclusive o adverso do texto e sua expressão. Todavia, esta descrição do fazer do tradutor talvez esteja muito resumida. Mesmo nas situações extremas, nas quais deve-se traduzir de uma língua a outra, o tema mal se pode separar da língua. Somente o reproduzirá de verdade aquele tradutor que consiga trazer à fala o tema que o texto lhe mostra, e isto quer dizer que venha a encontrar uma linguagem que não somente seja a sua, mas também a adequada ao original. A situação do tradutor e a do intérprete vêm a ser, pois, no fundo a mesma. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

O exemplo do tradutor que tem de superar o abismo das línguas mostra, com particular clareza, a relação recíproca que se desenvolve entre o intérprete e o texto, que corresponde à reciprocidade do acordo na CONVERSAÇÃO. Pois, todo tradutor é intérprete. O fato de que algo esteja numa língua estrangeira significa somente um caso elevado de dificuldade hermenêutica, isto é, de estranheza ,e de superação da mesma. Na verdade, nesse sentido determinado igual e inequivocamente, todos os “objetos” com os quais tem a ver a hermenêutica tradicional são estranhos. A tarefa de reprodução, própria do tradutor, não se distingue qualitativa, mas somente gradualmente da tarefa hermenêutica geral que qualquer texto coloca. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

É claro que isto não quer dizer que a situação hermenêutica, face aos textos, seja idêntica à que se coloca entre duas pessoas numa CONVERSAÇÃO. No caso de textos, trata-se de “manifestações vitais fixadas duradouramente”, que devem ser entendidas, o que significa que um parceiro da CONVERSAÇÃO hermenêutica, o texto, só pode chegar a falar através do outro, o intérprete. Somente por ele se reconvertem os signos escritos de novo em sentido. Ao mesmo tempo, e em virtude dessa reconversão à compreensão, o próprio tema, de que fala o texto, vem à linguagem. Tal como nas conversações reais, é o assunto comum que une as partes entre si, nesse caso o texto e o intérprete. Tal como o tradutor somente torna possível, na qualidade de intérprete, o acordo numa CONVERSAÇÃO, em virtude do fato de participar na coisa de que está tratando, também face ao texto, é pressuposto ineludível do intérprete que ele participe de seu sentido. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Por consequência, está plenamente justificado falar de uma CONVERSAÇÃO hermenêutica. Segue-se daí, que a CONVERSAÇÃO hermenêutica tem de elaborar uma linguagem comum, em condição de igualdade com a CONVERSAÇÃO real, e que esta elaboração de uma linguagem comum tampouco consistirá na preparação de um instrumento com vistas ao acordo, mas que, tal como na CONVERSAÇÃO, coincide com a realização mesma do compreender e do chegar a um acordo. Entre as partes dessa “CONVERSAÇÃO” tem lugar uma comunicação, como se dá entre duas pessoas, e que é mais que mera adaptação. O texto traz um tema à fala, mas quem o consegue é, em última análise, o desempenho do intérprete. Nisso os dois tomam parte. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Antes, pensamos compreender o próprio texto. Mas isso quer dizer que, na ressurreição do sentido do texto já se encontram sempre implicadas as ideias próprias do intérprete. O próprio horizonte do intérprete é, desse modo, determinante, mas ele também, não como um ponto de vista próprio que se mantém ou se impõe, mas antes, como uma opinião e possibilidade que se aciona e coloca em jogo e que ajuda a apropriar-se de verdade do que diz o texto. Mais acima descrevemos isso como fusão de horizontes. Agora podemos reconhecer nisso a forma de realização da CONVERSAÇÃO, na qual um tema chega à sua expressão, não na qualidade de coisa minha ou de meu autor, mas de coisa comum a ambos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Nós devemos ao romantismo alemão a pressuposição para o significado sistemático que possui a linguisticidade da CONVERSAÇÃO para todo compreender. Ela nos ensinou que, em última instância, compreender e interpretar são uma e a mesma coisa. Foi só através desse conhecimento que o conceito de interpretação, como vimos, se desvinculou da significação pedagógico-ocasional que ele recebeu no século XVIII, e alcançou um lugar sistemático. Este caracteriza-se por representar o ponto-chave que alcançou o problema da linguagem, para o questionamento filosófico. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Com isto, o fenômeno hermenêutico se mostra como um caso especial da relação geral entre pensar e falar, cuja enigmática intimidade motiva a ocultação da linguagem no pensamento. Assim como na CONVERSAÇÃO, a interpretação é um círculo fechado na dialética de pergunta e resposta. E uma verdadeira relação vital histórica, que se realiza no médium da linguagem e que também, no caso da interpretação de textos, podemos denominar “CONVERSAÇÃO“. A linguisticidade da compreensão é [393] a concreção da consciência da história efeitual. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Em si, todo escrito levanta a pretensão de ser alentado por si mesmo no linguístico, e esta pretensão de autonomia de sentido vai tão longe que inclusive uma leitura autêntica, por exemplo, a de um poema pelo seu autor se torna questionável, no momento em que a intenção dos ouvintes se afasta do ponto a que nós, como aqueles que compreendem, realmente estamos orientados. Posto que o que importa é a comunicação do verdadeiro sentido de um texto, sua interpretação se encontra submetida a uma norma que se pauta no assunto em questão. E esta a exigencia que coloca a dialética platônica, quando procura fazer valer o logos como tal, e deixa, às vezes, para trás o seu companheiro real de diálogo no curso desse empenho. E mais, a debilidade específica da escrita, sua maior necessidade de auxílio, em comparação com o falar vivo, tem como reverso o fato de que faz sobressair a tarefa hermenêutica da compreensão com dobrada clareza. Tal como na CONVERSAÇÃO, também aqui a compreensão tem que tentar fortalecer o sentido do que foi dito. O que se diz no texto tem de ser despojado de toda a contingência que — lhe é inerente, e entendido na plena idealidade em que unicamente tem seu valor. Por isso a fixação por escrito permite que o leitor compreensivo possa erigir-se em advogado de sua pretensão de verdade, precisamente porque separa por completo o sentido do enunciado aquele que enuncia. É assim como o leitor experimenta, em sua validez, o que lhe fala e o que ele compreende. Por sua vez, aquilo que ele compreendeu será sempre mais que uma opinião estranha: já será sempre uma possível verdade. Isto é o que emerge em virtude da liberação do dito com respeito a quem o disse e em virtude do status de duração que lhe confere a escrita. E o fato de que pessoas pouco acostumadas à leitura nunca cheguem inteiramente à suspeita de que algo escrito possa ser falso, tem, como já vimos , uma razão hermenêutica profunda, pois para eles todo escrito é uma espécie de documento que se avaliza a si mesmo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

A pergunta que nos guia é, pois, a da conceitualidade de toda compreensão. Somente na aparência se trata de um questionamento secundário. Já vimos que a interpretação conceitual é a maneira de se realizar a própria experiência hermenêutica. Esta é a razão pela qual o problema que nos colocamos agora é tão difícil. O intérprete não sabe que em sua interpretação traz consigo a si mesmo, com seus próprios conceitos. A formulação linguística é tão inerente à opinião do intérprete, que não se torna objetiva para ele em nenhum caso. Por isso, é compreensível que esse aspecto da realização hermenêutica fique completamente despercebido. Mas a isso se acrescenta, de modo especial, que esse conjunto de fatos tenha sido desvirtuado amplamente por teorias linguísticas inadequadas. É claro que uma teoria instrumentalista dos signos, que entenda as palavras e os conceitos como instrumentos disponíveis ou que se tem de pôr à disposição, fica aquém do fenômeno hermenêutico. Se nos ativermos ao que ocorre na palavra e na fala e sobretudo em qualquer CONVERSAÇÃO com a tradição, levada a cabo pelas ciências do espírito, teremos que reconhecer que em tudo isso se produz uma continuada formação de conceitos. Isto não quer dizer que o intérprete faça uso de palavras novas ou insólitas. Mas o uso das palavras habituais não tem sua origem num ato de subsunção lógica pelo fato de que algo individual é submetido à generalidade do conceito. Recordaremos, pelo contrário, que a compreensão traz em si sempre um momento de aplicação e leva a cabo, desse modo, um constante e progressivo desenvolvimento da formação dos conceitos. E algo que temos de ter presente também agora, se quisermos que a linguisticidade própria da compreensão se liberte do domínio da chamada filosofia da linguagem. O intérprete não se serve das palavras e dos conceitos como o artesão que apanha e deixa de lado suas ferramentas. É forçoso reconhecer, antes, que toda compreensão está intimamente penetrada pelo conceitual e rechaçar qualquer teoria que se negue a aceitar a unidade interna de palavra e coisa. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

[414] Não obstante isso, a argumentação socrática contra Crátilo, na medida em que se mantém fiel ao esquema do encontrar e impor nomes, contém uma série de perspectivas que não conseguem se impor. O fato de que a palavra seja um instrumento que se erige para o trato docente e diferenciador das coisas, portanto, que seja um ente que pode adequar-se e corresponder mais ou menos a seu próprio ser, fixa a questão da essência das palavras de uma maneira que não carece de problemas. O trato com as coisas de que se fala aqui é a revelação da coisa intencionada. A palavra é correta quando representa a coisa, isto é, quando é uma representação (mimesis). Não se trata, naturalmente, de uma representação imitadora, no sentido de uma cópia direta, de modo que se reproduzisse o fenômeno audível e visível, mas é o ser (ousia), aquilo que se honra com a designação de “ser” (einai), que tem de ser revelado pela palavra. Mas então, temos que indagar se os conceitos que são empregados na CONVERSAÇÃO, os conceitos da mimema, ou os da deloma, compreendidos como mimema são corretos para isso. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Claro que então se coloca a questão de saber, se nesse ponto não se está explicando o incompreensível com o incompreensível. Que palavra pode ser essa que se mantém como CONVERSAÇÃO interior do pensamento e não ganha uma forma sonora: Será que pode existir tal coisa? Todo nosso pensamento não se produz sempre na trilha de uma determinada língua, e não nos é claro que, se quisermos realmente falar uma língua, temos que pensar nela? Por mais que recordemos a liberdade que a nossa razão guarda face à vinculação linguística de nosso pensamento, quer inventando e usando linguagens de signos artificiais, quer aprendendo a traduzir uma língua para outra — um começo que pressupõe ao mesmo tempo um elevar-se até o sentido intencionado, acima da vinculação linguística — mesmo assim, qualquer dessas maneiras de elevar-se é, por sua vez, como sabemos, linguística. A “linguagem da razão” não é uma linguagem para si. E que sentido tem então falar, face ao caráter insuperável da nossa vinculação linguística, de uma “palavra interior” que se falaria na linguagem pura da razão? Onde se mostra a palavra da razão (se reproduzirmos aqui com “razão”, o intellectus), como uma verdadeira “palavra”, se não há de ser uma palavra que soe realmente, nem sequer o phantasma de uma dessas, mas o designado por ela com um símbolo, por conseguinte, o próprio intencionado e pensado? VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Porque a doutrina da palavra interior deve suportar, com a sua analogia, a interpretação teológica da trindade, a questão teológica como tal não nos será aqui de maior ajuda. Teremos de interrogar, antes, a coisa, perguntar o que pode ser essa “palavra interior”. Não pode ser simplesmente o logos grego, a CONVERSAÇÃO da lama consigo mesma. Já o simples fato de que logos se traduza tanto por ratio como por verbum aponta para o fato de que o fenômeno linguístico adquire na elaboração [426] escolástica da metafísica grega muito mais validez do que teve entre os próprios gregos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Pois bem, também a filosofia do logos grego conhecia certamente este fato. Platão descreve o pensamento como uma CONVERSAÇÃO interior da alma consigo mesma, e a infinitude do esforço dialético que ele exige do filósofo é a expressão da discursividade da nossa compreensão finita. E, no fundo, por mais que Platão exigisse o “pensar puro”, ele mesmo não deixa de reconhecer constantemente que, para o pensamento da coisa, não se pode prescindir do meio da onoma e do logos. Mas se a doutrina da palavra interior não quer dizer outra coisa que a discursividade do pensar e do falar humano, como pode então a “palavra” ser uma analogia do processo das pessoas divinas, de que fala a doutrina da trindade? Não está em jogo nisso precisamente a oposição entre intuição e discursividade? Onde está o fator comum entre este e aquele “processo”? VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Face a isso, naturalmente importa acentuar que a linguagem somente tem seu verdadeiro ser na CONVERSAÇÃO, no exercício do mútuo entendimento. Isso não deve ser entendido como se com isso ficasse formulado o objetivo da linguagem. Esse entendimento não é um mero fazer, não é uma atuação [450] com objetivos, como seria a produção de signos, através dos quais comunicaríamos a outros nossa vontade. O entendimento como tal não necessita de instrumentos no sentido autêntico da palavra. É um processo vital, onde se representa uma comunidade de vida. Nesse sentido o entendimento humano na CONVERSAÇÃO não se distingue do que cultivam os animais uns com os outros. Não obstante, a linguagem humana deve ser pensada como um processo vital particular e único, pelo fato de que no entendimento linguístico se torna manifesto o “mundo”. O entendimento linguístico coloca aquilo sobre o que ele ocorre diante dos olhos dos que participam nele, como se faz com um objeto de controvérsia que se coloca no meio das partes. O mundo é o solo comum, não palmilhado por ninguém e reconhecido por todos, que une a todos os que falam entre si. Todas as formas da comunidade de vida humana são formas de comunidade linguística, e mais ainda, formam linguagem. Pois a linguagem é por sua essência a linguagem da CONVERSAÇÃO. Somente adquire sua realidade na realização do mútuo entendimento. É por isso que ela não é um simples meio de entendimento. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Essa é também a razão por que os sistemas de entendimento artificial inventados nunca se tornam linguagens. As linguagens artificiais, p. ex., as linguagens secretas ou os simbolismos matemáticos, não têm em sua base uma comunidade, nem de linguagem nem de vida, já que são introduzidos e aplicados meramente como meios e instrumentos do entendimento. Isso se estriba no fato de que pressupõem sempre um entendimento exercido ao vivo, o qual é linguístico. É sabido que o consenso, pelo qual se introduz uma linguagem artificial, pertence necessariamente a uma outra linguagem. Por outro lado, numa comunidade linguística real não nos pomos primeiro de acordo, mas estamos já sempre de acordo, como o mostrou Aristóteles. É o mundo que se nos apresenta na vida comum, que abrange tudo, e sobre o qual se produz o entendimento. Já os meios linguísticos não constituem por si mesmos o objeto daquele. O entendimento sobre uma língua não é o caso normal do entendimento, mas o caso especial de um acordo com respeito a um instrumento, com respeito a um sistema de signos que não têm seu ser na CONVERSAÇÃO, mas que serve como meio a objetivos informativos. A linguisticidade da experiência humana do mundo proporciona um horizonte mais amplo à nossa análise da experiência hermenêutica. Aqui se confirma o que já havíamos mostrado no exemplo da tradução e da possibilidade de entender-se além dos limites da própria língua: O mundo linguístico próprio, em que se vive, não é uma barreira que impede todo conhecimento do ser em si, mas abarca fundamentalmente tudo aquilo a que pode expandir-se e elevar-se [451] a nossa percepção. É claro que os que se criaram numa determinada tradição linguística e cultural veem o mundo de uma maneira diferente de como o veem os que pertencem a outras tradições. É verdade que os “mundos” históricos, que se dissolvem uns nos outros no curso da história, são diferentes entre si e também diferentes do mundo atual. E, no entanto, o que se representa é sempre um mundo humano, isto é, estruturado linguisticamente, seja lá qual for a sua tradição. Enquanto linguisticamente estruturado, cada mundo está aberto, a partir de si a toda acepção possível e, portanto, a todo gênero de ampliações; pela mesma razão, acessível a outros. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A partir da linguagem, o conceito da pertença já não se determina como a referenciação teleológica do espírito em relação à estrutura essencial do ente, tal como é pensada na metafísica. Ao contrário, o fato de que a experiência hermenêutica se realize no “modo” da linguagem, e que entre a tradição e seu intérprete tenha lugar uma CONVERSAÇÃO, coloca um fundamento completamente distinto. O decisivo é que aqui acontece algo. Nem a consciência do intérprete é senhora do que chega a ele como palavra da tradição, nem se pode descrever adequadamente o que tem lugar aqui, como o conhecimento progressivo do que, de maneira que um intelecto infinito conteria tudo o que, de um modo ou de outro, pudesse chegar a falar a partir do conjunto da tradição. Visto a partir do intérprete, “acontecer” quer dizer que não é ele que, como conhecedor, busca seu objeto e “extrai” com meios metodológicos o que realmente se quis dizer e tal como realmente era, ainda que reconhecendo leves obstáculos e desvios, condicionados pelos próprios preconceitos. Isso não é mais que um aspecto exterior ao verdadeiro acontecer hermenêutico. Ele motiva a indispensável disciplina metodológica, com a qual nos comportamos para conosco mesmos. Não obstante, o verdadeiro acontecer só se torna possível, na medida em que a palavra que chega a nós a partir da tradição, e à qual temos de escutar, nos alcança de verdade, e o faz como se falasse a nós e se referisse a nós mesmos. Mais acima tratamos desse aspecto da questão, [466] sob a forma da lógica hermenêutica da pergunta, e demonstramos como aquele que pergunta se converte no perguntado, e como tem lugar o acontecer hermenêutico na dialética do perguntar. Voltamos a fazer menção a isso, com o fim de determinar de uma maneira mais precisa o sentido da pertença, como ele corresponde à nossa experiência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Pois, de um outro lado, da parte do “objeto”, esse acontecer significa que o conteúdo da tradição entra em jogo e se desenvolve em possibilidades de sentido e ressonância cada vez novas e ampliadas de modo novo, pelo outro receptor. Quando a tradição volta a falar, emerge algo e entra em cena o que antes não era. Qualquer exemplo histórico poderia nos servir para ilustrar isso. Quer a própria tradição seja uma obra de arte, quer proporcione notícias de um grande acontecimento, em qualquer caso, o que se transmite aqui entra de novo na existência, tal como se representa. Quando a Ilíada de Homero ou a campanha de Alexandre até a índia voltam a nos falar numa nova apropriação da tradição, não há um ser em si que se vá revelando cada vez um pouco mais, mas acontece algo como uma verdadeira CONVERSAÇÃO, daí surgindo alguma coisa que nenhum dos interlocutores abarca por si só. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Para descrever o verdadeiro método, que é o fazer da própria coisa, Hegel se reporta, por sua vez, a Platão, que gosta de apresentar o seu Sócrates em CONVERSAÇÃO com os jovens, porque estes estão dispostos a seguir as perguntas consequentes de Sócrates, sem fazer caso das opiniões reinantes. Ele ilustra seu próprio método do desenvolvimento dialético com esses “jovens flexíveis”, que se abstêm de se imiscuir no curso da coisa e não alardeiam sobre as ideias que lhes ocorrem. Dialética não é aqui mais que a arte de conduzir uma CONVERSAÇÃO e, sobretudo, de descobrir a inadequação das opiniões que dominam uma pessoa, formulando consequentemente perguntas e mais perguntas. A dialética é aqui, portanto, negativa, ela desconcerta as opiniões. Mas este desconcerto é ao mesmo tempo um esclarecimento, pois libera o olhar e lhe permite orientar-se adequadamente para a coisa. Tal como na conhecida cena do Ménon, o escravo é conduzido desde o seu desconcerto até a verdadeira solução do problema matemático que lhe colocam — uma vez que lhe falharam, uma após a outra, todas as opiniões prévias e insustentáveis — , toda negatividade dialética contém uma espécie de desenho objetivo prévio do que é verdade. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

E não somente na CONVERSAÇÃO pedagógica, mas em todo pensamento, a única coisa que deixa emergir o que há na coisa é a perseguição de sua consequência objetiva. A própria coisa consegue fazer-se valer, na medida em que nos entregamos por completo à força do pensar e não deixamos valer as ideias e opiniões que pareciam lógicas e naturais. Platão une a dialética eleática, que conhecemos sobretudo por Zenão, com a arte socrática da CONVERSAÇÃO, e a eleva em seu Parmênides, a uma nova etapa da reflexão. O fato de que, na consequência do pensamento, a coisa se inverta sob nossa mão e se converta em seu contrário, que o pensamento ganhe força “ainda que sem conhecer o ‘quê’, mas extraindo tentativamente conclusões, a [469] partir de supostos contrários”, tal é a experiência do pensamento, a que apela o conceito hegeliano do método como autodesenvolvimento do pensamento puro na direção do todo sistemático da verdade. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Para começar, é claro que na poesia pode reaparecer tudo quanto tem lugar no falar cotidiano. Quando a poesia representa as pessoas falando entre si, o enunciado poético não repete os “enunciados” que caberiam a um protocolo, mas de um modo misterioso, torna-se presente nele, o todo da CONVERSAÇÃO. As palavras que se põem na boca de alguns personagens na poesia são especulativas do mesmo modo que o falar da vida de todos os dias: na CONVERSAÇÃO, o falante traz à fala uma relação com o ser, como já vimos mais acima. Quando falamos de uma enunciação poética, não nos referimos em absoluto ao enunciado, como tal, que uma poesia põe na boca de alguém, mas ao enunciado que é a própria poesia na sua qualidade de palavra poética. Mas o enunciado poético como tal é especulativo na medida em que, por sua vez, o acontecer linguístico da poesia expressa uma relação própria com o ser. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Apontamos a estrutura especulativa do acontecer linguístico tanto no falar cotidiano como no poético. A correspondência interna que se nos tornou patente e que reúne palavra poética com o falar cotidiano, como intensificação deste, já foi reconhecida no seu aspecto psicológico-subjetivo pela filosofia idealista da linguagem e sua renovação por Croce e Vossler. Quando destacamos o outro aspecto, o vir à fala, como verdadeiro processo do acontecer linguístico, estamos preparando com isso o caminho à experiência hermenêutica. O modo como se entende a tradição e como esta vem à fala sempre de novo é, como vimos, um acontecer tão autêntico como a CONVERSAÇÃO viva. A única coisa especial é que, nela, a produtividade do comportamento linguístico para com o mundo encontra aplicação renovada a um conteúdo já mediado linguisticamente. Também a relação hermenêutica é uma relação especulativa, mas completamente distinta do autodesenvolvimento dialético do espírito, tal como o descreve a ciência filosófica de Hegel. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Nossa reflexão tem sido guiada pela ideia de que a linguagem é um centro em que se reúnem o eu e o mundo, ou melhor, em que ambos aparecem em sua unidade originária. Elaboramos também o modo como se representa esse centro especulativo da linguagem, como um acontecer finito, face à mediação dialética do conceito. Em todos os casos que estivemos analisando, tanto na linguagem da CONVERSAÇÃO, quanto na da poesia e na da interpretação, tornou-se patente a estrutura especulativa da linguagem, que consiste não em ser cópia de algo que está dado de modo fixo, mas em um vir-à-fala, onde se anuncia um todo de sentido. Isso nos tinha aproximado da dialética antiga, porque tampouco nela se dava uma atividade metodológica do sujeito, mas um fazer da própria coisa, fazer que o pensamento “padece”. Esse fazer da própria coisa é o verdadeiro movimento especulativo que capta o falante. Rastreamos o seu reflexo subjetivo no falar. Agora estamos em condições de compreender que essa cunhagem da ideia do fazer da própria coisa, do sentido que vem-à-fala, aponta a uma estrutura universal-ontológica, à constituição fundamental de tudo aquilo a que a compreensão pode se voltar. O ser que pode ser compreendido é linguagem. O fenômeno hermenêutico devolve aqui a sua própria universalidade à constituição ôntica do compreendido, quando a determina, num sentido universal, como linguagem, e determina sua própria referência ao ente, como interpretação. Por isso não falamos somente de uma linguagem da arte, mas também de uma linguagem da natureza, e inclusive de uma linguagem que as coisas exercem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A questão que fica, porém, é se assim o movimento circular da compreensão foi compreendido adequadamente. Pode-se deixar de lado aquilo que Schleiermacher desenvolveu como interpretação subjetiva. Quando procuramos compreender um texto, não nos transferimos para a estrutura espiritual do autor, mas desde que se possa falar de transferência, transferimo-nos para seu pensamento. Isso significa, porém, que procuramos deixar e fazer valer o direito objetivo daquilo que o outro diz. Se quisermos compreender, buscaremos reforçar ainda mais seus argumentos. Na CONVERSAÇÃO e ainda mais na compreensão do escrito movemo-nos numa dimensão de sentido compreensível em si mesmo que como tal não motiva nenhum retorno à subjetividade do outro. É tarefa da hermenêutica esclarecer o milagre da compreensão, que não é uma comunicação misteriosa entre as almas, mas participação num sentido comum. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 5.

O diálogo platônico e a CONVERSAÇÃO do Sócrates platônico constituem o modelo inamissível dessa arte de romper conceitos que se tornaram rígidos. Desfazem-se os conceitos normativos que se movimentam no reino do óbvio, atrás dos quais movimenta-se uma realidade inteiramente descompromissada, que pretende obter vantagens de poder. É quando se dá uma reatualização de nossa autocompreensão e tomamos consciência do que realmente se tem em mente nos conceitos normativos de nossa auto-interpretação moral-política, que somos levados a trilhar o caminho do pensamento filosófico. Dessa forma, também para nós, não está em questão uma investigação histórico-conceitual como tal, mas o cultivo de uma disciplina no uso de nossos conceitos, a qual se pode aprender da investigação da história dos conceitos, e que pode proporcionar uma autêntica força vinculativa ao nosso pensar. Segue-se, porém, que o ideal da linguagem filosófica não pode ser [91] uma nomenclatura terminológicamente unívoca e desligada da vida da linguagem, mas a religação do pensar conceitual à linguagem e ao todo da verdade que nela está presente. No falar real ou no diálogo, e em nenhum outro lugar, a filosofia tem sua verdadeira pedra de toque, essa que é sua, propriamente sua. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

Deus, porém, é a palavra. Desde os primórdios, a palavra humana serviu, no âmbito da reflexão teológica, para visualizar a palavra de Deus e o mistério da Trindade. Sobretudo Agostinho descreveu em muitas variantes o mistério sobre-humano da Trindade a partir da palavra e do diálogo, e de como este se dá entre os seres humanos. Ora, a palavra e o diálogo tem em si um momento de jogo. O modo como se ousa dizer uma palavra ou bem “guardá-la consigo”, o modo de arrancar do outro uma palavra e dele obter uma resposta, o modo como respondemos e como cada palavra “comporta um espaço de jogo” no contexto determinado em que é dita e compreendida, tudo isso aponta para uma estrutura comum entre o compreender e o jogar. A criança começa a conhecer o mundo através de jogos de linguagem. Sim, tudo que aprendemos, realiza-se em jogos de linguagem. Isso, porém, não significa que quando falamos estejamos apenas jogando um jogo, sem levar a fala a sério. Ao contrário, as palavras que encontramos mobilizam nossa própria opinião, integrando-a em relações que ultrapassam o caráter momentâneo de nossa opinião. Quando é que a criança que escuta e imita as palavras dos adultos começa a compreender as palavras que usa? Quando é que o jogo torna-se sério? Quando começa a seriedade e deixa de ser jogo? De certo modo, a fixação do [131] significado das palavras brota sempre ludicamente do valor situacional das palavras. Assim como a escrita fixa o elemento sonoro da linguagem que assim repercute articulando a configuração sonora da própria linguagem, também a fala viva e a vida da linguagem têm o seu jogo nesse movimento de alternância viva. Ninguém pode fixar o significado de uma palavra e nem tampouco o simples aprendizado correto e o uso do significado fixo das palavras são garantias de que alguém saiba e possa falar. A vida da linguagem consiste antes no progresso constante do jogo que começamos a jogar quando aprendemos a falar. Novos usos de linguagem estão sempre a entrar em jogo, da mesma maneira que saem imperceptível e involuntariamente do jogo. Nesse jogo contínuo joga-se a convivência dos seres humanos. Também o entendimento que se dá na CONVERSAÇÃO é um jogo. Quando duas pessoas conversam entre si, falam a mesma linguagem. Elas próprias não se dão conta de que pelo fato de falarem estão dando continuidade ao jogo da linguagem. Ademais, cada uma também fala sua própria linguagem. A compreensão dá-se porque tem lugar um discurso contra discurso, sem que esse lugar se torne fixo. Na CONVERSAÇÃO entramos constantemente no mundo das ideias do outro, nos confiamos ao outro e ele se confia a nós. Assim, alternamos mutuamente o jogo até que tenha início o verdadeiro diálogo, o jogo de dar e receber. Não se pode negar que nesse diálogo verdadeiro se dê o que costumamos chamar de acaso, de prazer da surpresa, e por fim, também, de leveza e enlevo, que constituem parte essencial do jogo. Esse enlevo é experimentado ademais sem perder a posse de si mesmo, pois mesmo sem nos darmos conta fazemos a sua experiência como um enriquecimento pessoal. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9.

Vamos tentar esclarecer isso com um exemplo contrário, que talvez também seja responsável pela diminuição do diálogo. Refiro-me à conversa telefônica. Tornou-se tão comum mantermos longas conversas por telefone que quase já não nos damos conta do empobrecimento comunicativo que se dá na convivência com as pessoas que se encontram ao nosso lado, restringindo-se ao elemento acústico. Mas o problema do diálogo não se faz sentir naqueles casos em que a convivência estreita de duas pessoas vai tecendo o fio da CONVERSAÇÃO. A questão da incapacidade para o diálogo refere-se, antes, à possibilidade de alguém abrir-se para o outro e encontrar nesse outro uma abertura para que o fio da conversa possa fluir livremente. Aqui a experiência da conversa telefônica serve de documentação como o negativo de uma foto. Ao telefone quase não é possível ouvir a disposição de abertura do outro para entrar em diálogo. Também não é possível a experiência da aproximação mútua, onde cada um vai adentrando, passo a passo, o diálogo, chegando a ficar de tal modo imbuídos do diálogo que a comunhão surgida já não pode ser rompida. Caracterizei a conversa telefônica como o negativo de uma foto, pois a aproximação artificial criada pelo fio telefônico quebra imperceptivelmente justamente a esfera do tato e da escuta, em que as pessoas podem aproximar-se. Toda chamada telefônica traz consigo algo da brutalidade do molestar e ser molestado, mesmo quando se assegura que a chamada foi motivo de alegria. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16.

Também no âmbito do pensamento filosófico, o fenômeno do diálogo e sobretudo aquela forma específica do diálogo entre duas pessoas desempenharam uma importante função, e talvez na mesma confrontação que acabamos de descobrir como um fenômeno cultural comum. Foi sobretudo a época romântica e seu renascimento no século XX que conferiu ao fenômeno do diálogo uma função crítica frente à funesta monologização do pensamento filosófico. Mestres do diálogo como Friedrich Schleiermacher, esse gênio da amizade, ou Friedrich Schlegel, cuja sensibilidade cativante era mais propícia a diálogos caudalosos do que a forma permanente aos conceitos, advogaram filosoficamente por uma dialética que atribuía ao modelo platônico de diálogo e de CONVERSAÇÃO uma primazia especial na busca da verdade. É fácil ver em que consiste [210] essa primazia. Quando duas pessoas se encontram e trocam experiências, trata-se sempre do encontro entre dois mundos, duas visões e duas imagens de mundo. Não é a mesma visão a respeito do mesmo mundo, como tenta comunicar o pensamento dos grandes pensadores com seu esforço conceitual e a elaboração de suas teorias. O próprio Platão não comunicou sua filosofia simplesmente em diálogos escritos em reconhecimento ao mestre do diálogo, Sócrates. Viu ali um princípio da verdade, segundo o qual a palavra só encontra confirmação pela recepção e aprovação do outro e que o pensamento que não viesse acompanhado do pensamento do outro seria inconsequente e sem força vinculante. Cabe afirmar que todo ponto de vista humano tem algo de aleatório. O modo como alguém experimenta o mundo, pela visão, pelo ouvido e sobretudo pelo gosto permanece um mistério pessoal intransponível. “Quem pode mostrar um cheiro com os dedos?” (Rilke). Assim como nossa apercepção sensível do mundo é ineludivelmente privada, também nossos impulsos e nossos interesses individualizam-nos, e nossa razão, comum e capaz de apreender o comum a todos, permanece impotente diante dos ofuscamentos alimentados pela nossa individualidade. Assim, o diálogo com os outros, suas objeções ou sua aprovação, sua compreensão ou seus mal-entendidos, representam uma espécie de expansão de nossa individualidade e um experimento da possível comunidade a que nos convida a razão. Poderíamos imaginar toda uma filosofia do diálogo, partindo dessas experiências: o ponto de vista intransferível do indivíduo, onde se espelha a totalidade do mundo, e a totalidade do mundo que se apresenta nos pontos de vista individuais de todos os outros como um e o mesmo. A extraordinária concepção metafísica de Leibniz, admirada também por Goethe, foi de que a multiplicidade de espelhos do universo, representados pelos indivíduos, singulares, forma na sua totalidade um único universo. Isso se deixa configurar num universo do diálogo. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16.

Mas, para não falarmos sempre apenas desse sentido mais extremo e profundo de diálogo, devemos também considerar diversas formas de diálogo que ocorrem em nossa vida, agora ameaçados como discutimos em nosso tema. O primeiro é o diálogo pedagógico. Não que merecesse por si uma primazia especial, mas nele mostra-se de modo especial o que pode estar por trás da experiência da incapacidade para o diálogo. O diálogo entre professor e alunos é certamente uma das formas mais primitivas de experiência de diálogo, e aqueles carismáticos do diálogo de que falamos acima são todos mestres e professores que ensinam seus discípulos ou alunos através do diálogo. Na situação do professor reside uma dificuldade peculiar em manter firme a capacidade para o diálogo, na qual a maioria sucumbe. Aquele que tem que ensinar acredita dever e poder falar, e quanto mais consistente e articulado por sua fala, tanto [212] mais imagina estar se comunicando com seus alunos. É o perigo da cátedra que todos conhecemos. Recordo-me de meu tempo de estudante de um seminário que fiz com Husserl. Sabemos que o exercício do seminário costuma conter o máximo de diálogo investigativo possível e o mínimo possível de diálogo pedagógico. Husserl, que nos primeiros vinte anos como mestre de fenomenologia em Friburgo sentia-se movido por um profundo impulso missionário e exercia na realidade uma atividade filosófica de ensino muito significativa, não era nenhum mestre do diálogo. Ele abria aqueles seminários com uma questão inicial, recebia uma resposta curta e movido por essa prosseguia seu monólogo por duas horas seguidas. Quando ao final da reunião saía da sala junto com seu assistente, Heidegger, dizia a este último: “hoje, sim, tivemos realmente um debate animado”. São experiências desse tipo que nos dias de hoje colocaram em crise as preleções acadêmicas. A incapacidade para dialogar dá-se principalmente por parte do professor, e sendo o professor o autêntico transmissor da ciência, essa incapacidade radica-se na estrutura de monólogo da ciência moderna e da formação teórica. Em escolas superiores têm-se feito repetidas tentativas de animar as preleções através do debate, fazendo-se também a experiência contrária de que a passagem da posição receptiva de ouvinte para a iniciativa da pergunta e da oposição é extremamente difícil e raras vezes alcança êxito. Por fim, na situação de ensino, quando esta ultrapassa a intimidade de um pequeno círculo, reside uma dificuldade intransponível para o diálogo. Platão já sabia disso: o diálogo jamais se torna possível com muitas pessoas, nem pela simples presença de muitos. Nossas experiências com os chamados fóruns de CONVERSAÇÃO, esses diálogos em mesas semi-redondas, são também diálogos semimortos. Há também outras situações de diálogo autênticas, isto é, individualizadas, onde o diálogo conserva sua verdadeira função. Gostaria de distinguir três tipos diferentes: O diálogo para negociação, o diálogo terapêutico e o diálogo familiar. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16.

A história da compreensão não é menos antiga e honorável. Se quisermos reconhecer a hermenêutica onde ela aparece como uma verdadeira arte de compreender, então, se não quisermos começar com o Nestor da Ilíada, temos de começar com Ulisses. Poderíamos apelar para o fato de que o novo movimento de educação da sofística impulsionou de fato a interpretação de frases poéticas famosas, adornando-as artificialmente como exemplos pedagógicos. Junto com Gundert, poderíamos até contrapor a esta hermenêutica uma hermenêutica socrática. Mas isso está longe de ser uma teoria da compreensão, e parece ser característico para o surgimento do problema hermenêutico a eliminação de um distanciamento, a superação de uma alteridade e a construção de uma ponte entre o outrora e o agora. Nesse sentido, seu momento característico foi a época moderna, que ganhou consciência de sua distância em relação aos tempos passados. Algo disso já se encontrava na pretensão teológica de compreensão da Bíblia, própria da Reforma, e de seu princípio da sola scriptura, mas encontrou um real desenvolvimento na medida em que o Iluminismo e Romantismo geraram uma consciência histórica, que estabeleceu uma relação cindida com toda tradição. Outra consequência se deu pelo fato de a história da teoria hermenêutica ter-se orientado na tarefa da interpretação das “manifestações vivas expressas por escrito”, mesmo que a elaboração teórica da hermenêutica de Schleiermacher tenha incluído a compreensão no modo como se dá no trato oral da CONVERSAÇÃO. A retórica, ao contrário, voltava-se para a imediaticidade do efeito do discurso, e mesmo tendo trilhado também os caminhos da escrita artística e desenvolvido a teoria do estilo e os estilos, sua verdadeira realização não se dá na leitura mas no dizer. A posição intermédia do discurso proclamado já denuncia a tendência de basear a arte do discurso em recursos artísticos fixados por escrito, desligando-os da situação originária. Aqui se inicia a influência recíproca com a poética, cujos objetos de linguagem alcançam um tal grau de pureza artística que sua transformação da oralidade para a escritura e vice-versa se dá sem perdas. VERDADE E METODO II OUTROS 18.

Em todo caso, o escritor, assim como quem está participando de um diálogo, busca comunicar o que pensa, e isso implica a atenção ao outro, com o que compartilha certos pressupostos e com cuja compreensão conta. O outro se atém ao dito, segundo a intenção do que foi dito, quer dizer, o entende completando-o e concretizando-o, sem tomar nada ao pé da letra em seu sentido abstrato. Isso explica que, nas cartas, mesmo que dirigidas a um colega com o qual se tem muita familiaridade, não se possam dizer certas coisas como na imediatez da situação dialogai. A carta omite muitas coisas que na imediatez da CONVERSAÇÃO ajudam a compreender corretamente. E no diálogo, sobretudo, temos sempre a possibilidade de esclarecer uma ideia ou defender o que pensamos pela confrontação. Essa situação nos é muito familiar em virtude dos diálogos socráticos e da crítica platônica à palavra escrita. Os logoi que vêm desligados da situação compreensiva — e isso vale para toda palavra escrita — estão expostos a abusos e mal-entendidos, uma vez que não dispõe da correção natural que se dá no diálogo vivo. VERDADE E METODO II OUTROS 24.

Chegamos assim a um conceito sumário do que está à base de [345] toda constituição de textos e permite sua inserção no contexto hermenêutico: toda volta ao texto — seja um texto real, fixado por escrito, ou uma mera reprodução do que se expressa na CONVERSAÇÃO — remete à “notícia originária”, ao notificado ou anunciado originariamente que há de valer como algo idêntico dotado de sentido. A tarefa prescrita a tudo que se vai fixar por escrito é justamente que esta “notícia” deve poder ser compreendida. E o texto escrito deve fixar a informação originária de tal modo que seu sentido seja compreensível univocamente. À tarefa do escritor corresponde aqui a tarefa do leitor, do destinatário ou do intérprete, que é a tarefa de alcançar essa compreensão, ou seja, fazer com que o texto fixado por escrito fale novamente. Nesse sentido, ler e compreender significa restituir à informação sua autenticidade original. A tarefa da interpretação se apresenta quando o conteúdo do que é fixado por escrito é controverso e é preciso alcançar a reta compreensão da “informação”. Mas a “informação” não é o que o orador ou o escritor disse originariamente, mas o que queria dizer se eu tivesse sido seu interlocutor originário. O problema hermenêutico na interpretação das “ordens”, por exemplo, é que estas devem cumprir-se “conforme seu sentido” (e não ao pé da letra). O que se explica pela constatação de que um texto não é um objeto dado, mas uma fase na realização de um processo de entendimento. VERDADE E METODO II OUTROS 24.

E certo que o nexo que se cria em forma de linguagem para entender-se está substancialmente recheado de palavrórios, aparência de discurso, que na verdade pode também fazer da CONVERSAÇÃO um intercâmbio de palavras vazias. Lacan disse com razão que a [365] palavra que não se dirige ao outro é uma palavra vazia. É o que constitui o primado da CONVERSAÇÃO, que se desenvolve entre pergunta e resposta e constrói assim a linguagem comum. Conhecemos a experiência que se faz na conversa entre pessoas que falam idiomas distintos, mas podem entender-se medianamente: sobre essa base não se pode sustentar uma CONVERSAÇÃO. No entanto, após diversas tentativas, ambos terminam por falar uma das duas línguas, embora um deles fale bastante mal. Trata-se de uma experiência que qualquer um pode fazer. Esse fenômeno contém um importante ensinamento. Não se dá apenas entre interlocutores de idiomas diferentes, mas também na adaptação recíproca das partes em toda e qualquer CONVERSAÇÃO na mesma língua. É só a resposta, real ou possível, que faz com que uma palavra seja uma palavra. VERDADE E METODO II OUTROS 25.

Não podemos analisar aqui como foi que, partindo de sua intenção fundamental, Heidegger manteve e subsumiu em seu pensamento tardio a obra de destruição de seus inícios. O estilo sibilino de seus últimos escritos atesta isso muito claramente. Ele estava plenamente consciente de sua carência de linguagem assim como da nossa. Ao lado de suas próprias tentativas de abandonar “a linguagem da metafísica” com a ajuda da linguagem poética de Hölderlin, parece-me que só houve dois caminhos transitáveis para indicar esse caminho que leva ao aberto, frente à autodomesticação ontológica própria da dialética. Esses dois caminhos foram [368] efetivamente transitados. Um deles é o regresso da dialética ao diálogo e desse à CONVERSAÇÃO. Eu mesmo procurei seguir esse caminho em minha hermenêutica filosófica. O outro caminho é o da desconstrução, estudado por Derrida. Não se trata aqui de resgatar o sentido que desaparecera da vivacidade da CONVERSAÇÃO. No pano de fundo da trama das relações de sentido que sustentam todo falar, num conceito ontológico de écriture, portanto — em lugar do falatório ou da CONVERSAÇÃO — deve-se dissolver a unicidade de sentido, levando a cabo, assim, a verdadeira ruptura da metafísica. VERDADE E METODO II OUTROS 25.

A guinada hermenêutica rumo à CONVERSAÇÃO, tema que eu próprio desenvolvi, vai na mesma direção e não se limita a ultrapassar a dialética do idealismo alemão na direção da dialética platônica, mas aponta o pressuposto da dialética que se esconde por detrás dessa versão socrático-dialogal: a anamnesis buscada e suscitada nos logoi. Essa reminiscência tomada do mito, mas pensada com plena racionalidade, não é só reminiscência da alma individual, mas é também sempre a do “espírito capaz de unir-nos”, a nós que “somos uma CONVERSAÇÃO“. Mas estar-em-conversação significa estar-além-de-si-mesmo, pensar com o outro e voltar sobre si mesmo como outro. Quando Heidegger deixa de pensar o conceito metafísico de essência como presença do presente e lê a palavra Wesen (essência) como verbo, como palavra temporal, “temporalmente”, passa a compreender o Wesen (essência) como Anwesen (estar presente, vigência), num sentido que parece corresponder à expressão comum Verwesen (“reger”, vigir, administrar). Mas isso significa que Heidegger, como faz em seu artigo sobre Anaximandro, submete a Weile (permanência) à experiência grega original do tempo. Desse modo, ao perguntar pelo ser, está perguntando pelas raízes da metafísica e seu horizonte. O próprio Heidegger lembra que a frase citada por Sartre “a essência da pre-sença é sua existência” é mal-entendida toda vez que se esquece que a palavra Wesen (essência) vem escrita entre aspas. Não se trata do conceito de Essenz (essência), que enquanto Wesen deve preceder a existência, o fato. Tampouco se trata da inversão sartreana dessa relação, como se a existência precedesse a Essenz (essência). A meu ver, porém, quando pergunta pelo sentido do ser, Heidegger tampouco pensa “sentido” na linha da metafísica e de seu conceito de essência. Pensa-o, antes, como sentido interrogativo que não espera uma determinada resposta, mas que sugere uma direção do perguntar. VERDADE E METODO II OUTROS 25.

Eu disse certa vez que “o sentido é sentido de direção”. E muitas vezes Heidegger utilizou-se de um arcaísmo ortográfico escrevendo a palavra Sein (ser) como Seyn para sublinhar seu caráter verbal. De modo parecido, deve-se ver minha tentativa de eliminar a herança da ontologia da substância, partindo da CONVERSAÇÃO e da linguagem comum, linguagem buscada e formada na CONVERSAÇÃO. Nessa linguagem o elemento determinante é a lógica de [370] pergunta e resposta. Ela abre uma dimensão de entendimento que transcende as expressões fixadas pela linguagem e, portanto, a síntese global no sentido da autocompreensão monológica da dialética. De certo, a dialética idealista não nega sua origem da estrutura fundamental especulativa da linguagem, como demonstrei na terceira parte de Verdade e método I. Mas, quando subordina a dialética a um conceito de ciência e de método, Hegel encobre na verdade sua procedência, sua origem na linguagem. A hermenêutica filosófica tem em mente assim a referência à unidade-dual especulativa que se desenrola entre o dito e o não dito, que na verdade precede a tensão dialética da contradição e sua superação num novo enunciado. Creio que a tentativa de converter em supersujeito o papel que eu reconheci na tradição, a saber, formular perguntas e projetar respostas, buscando reduzir, com isso, a experiência hermenêutica a uma parole vide, como fazem Manfred Frank e Forget, não passa de um erro grosseiro. Isso não encontra base alguma em Verdade e método. Em Verdade e método, tradição e diálogo não representam nenhum sujeito coletivo. Trata-se simplesmente de um coletivo para designar cada vez um texto concreto (no sentido mais amplo de texto, incluindo uma obra de pintura, um edifício e até mesmo um acontecimento natural). O diálogo socrático de cunho platônico é sem dúvida um gênero muito especial de CONVERSAÇÃO, conduzida por um interlocutor e seguida pelo outro, queira ou não. Mas ele serve de modelo para qualquer diálogo, porque nele não se refutam as palavras mas a alma do outro. O diálogo socrático não é nenhum jogo esotérico de disfarces para ocultar um saber mais fundamental. É a verdadeira realização da anamnesis, da recordação pensante, a única recordação possível para a alma decaída na finitude do corpóreo e que se realiza como CONVERSAÇÃO. O sentido da unidade especulativa que se realiza na virtualidade da palavra é justamente o fato de essa não ser uma palavra única nem um enunciado construído, mas ultrapassar tudo que é passível de ser enunciado. VERDADE E METODO II OUTROS 25.

A dimensão interrogativa em que nos movemos aqui nada tem a ver com um código que se procura decifrar. De certo, esse código decifrado forma a base de toda escritura e leitura de textos. Representa, porém, uma mera condição prévia em função do esforço hermenêutico para saber o que se diz nas palavras. Nesse sentido, concordo plenamente com a crítica ao estruturalismo. 371] Mas creio ultrapassar a desconstrução de Derrida, ao afirmar que as palavras só existem na CONVERSAÇÃO, e as palavras na CONVERSAÇÃO não se dão como palavras isoladas, mas como o conjunto de um processo de fala e resposta. VERDADE E METODO II OUTROS 25.

Se pudermos dar crédito a Platão, será interessante notar não só que a interpretação dos poetas foi feita tanto por Sócrates quanto por seus adversários sofistas. Mais importante é o fato de toda a dialética platônica ter sido expressamente relacionada pelo próprio Platão com a problemática da literatura escrita, e que, mesmo no âmbito da realidade do diálogo, a dialética assume, não raro, expressamente um caráter hermenêutico, seja porque se introduza a CONVERSAÇÃO dialética por uma tradição mítica de sacerdotes e sacerdotisas, seja pelos ensinamentos de Diotima ou simplesmente pela constatação de que os antigos não teriam se preocupado se nós compreendemos ou não, e por isso ter-nos-iam deixado sem ajuda, como diante de uma lenda. Devemos considerar também a posição inversa: Até que ponto os próprios mitos de Platão fazem parte do curso da preocupação dialética, possuindo assim, eles próprios, caráter de interpretação? Assim, a partir dos impulsos dados por Hermann Gundert, a construção de uma hermenêutica platônica poderia ser sumamente instrutiva. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.

Strauss propõe uma frase, de princípio evidente, afirmando que se um autor apresenta contradições tão patentes que podem ser facilmente reconhecidas por um garoto secundarista, estas teriam sido escritas deliberadamente e até determinadas para ser assim reconhecidas. Mas creio que aplicar esse exemplo aos assim chamados erros de argumentação do Sócrates de Platão seria um erro muito grande. A razão disso não é porque ali estaríamos ainda nos inícios da lógica (quem pensa assim está confundindo pensamento lógico com teoria lógica). A razão está antes em que a essência de uma CONVERSAÇÃO fiel à coisa em questão deve assumir também o ilógico. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.

Desde então, continuei trabalhando nessa direção. E certamente não sou o único. A distinção que faz Wellek-Warren entre “denotativo e conotativo” exige uma análise mais precisa nessa direção. Na análise dos diversos modos de linguagem, busquei determinar sobretudo o significado que possui o escrito para a idealidade do elemento de linguagem. Recentemente Paul Ricoeur, em reflexões semelhantes, chegou aos mesmos resultados, a saber, o escrito confirma a identidade do sentido e testemunha a dissociação do lado psicológico do falar. Paralelamente isso esclarece de modo objetivo por que a hermenêutica que segue Schleiermacher, sobretudo Dilthey, apesar de toda sua preocupação psicológica, não assumiu a fundamentação romântica da hermenêutica no diálogo vital, mas retornou às “manifestações vitais fixadas por escrito” da antiga hermenêutica. Corresponde a isso o fato de Dilthey ver o triunfo da hermenêutica na interpretação literária. Frente a isso, designei a “CONVERSAÇÃO” como a estrutura do acordo na linguagem, caracterizando-a como dialética de pergunta e resposta. Isso confirma-se plenamente também no nosso “ser para o texto”. As perguntas que um texto nos impõe para sua interpretação só podem ser compreendidas se o texto for compreendido, por seu turno, como resposta a uma pergunta. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.

Mas interrompo aqui. A CONVERSAÇÃO que está em curso subtrai-se a qualquer fixação. Seria um mau hermeneuta aquele que imaginasse poder ou dever ter a última palavra. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.