As situações dadas (Gegebenheiten) no terreno das ciências do espírito são aliás de um gênero especial, e é isso que Dilthey quer formular através do conceito da “vivência”. Partindo da caracterização que Descartes dá ao res cogitans, ele determina o conceito da vivência através da reflexividade, através da interioridade, e quer, com base nessa forma especial da situação dada, justificar epistemologicamente o conhecimento do mundo histórico. As situações dadas primárias, a que retrocedem a interpretação dos objetos históricos, não são dados de experimentação e de medição, mas unidades de significado. E isso o que o conceito da vivência quer dizer: as configurações de sentido, que nos vêm ao encontro nas ciências do espírito, mesmo que nos apareça como muito estranhas e incompreensíveis, deixam-se reconduzir a unidades últimas do dado na consciência, unidades que já nada mais contêm de estranho, objetivo, nem mesmo necessitado de interpretação. Trata-se das unidades vivenciais, que são em si mesmas unidades de sentido. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Ao final de suas preleções de 1882 encontra-se a expressão de que “não temos, como as ciências da natureza, o instrumento da experimentação, não podemos mais que investigar e continuar investigando”. Portanto, para Droysen, tem de haver no conceito da investigação outro momento importante, não somente a infinitude da tarefa que, enquanto marca de um progresso infinito, a investigação da história tem em comum com a da natureza, e que no século XIX ajudou na ascensão do conceito da investigação face à “ciência” do século XVIII e à “doutrina dos séculos anteriores. Esse novo conceito de investigação, que toma pé no conceito do investigador itinerante que se arrisca em zonas desconhecidas, abrange tanto o conhecimento da natureza como o mundo histórico. Quanto mais empalidece o pano de fundo teológico e filosófico do conhecimento do mundo, tanto mais a ideia da ciência é pensada como avanço rumo ao desconhecido, e, por isso, chamada de investigação. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Esses conceitos, diferentemente das categorias do conhecimento da natureza, são conceitos vitais. Pois a última pressuposição para o conhecimento do mundo histórico, no qual a identidade de consciência e objeto — esse postulado especulativo do idealismo — ainda representa uma realidade demonstravel [227] é, em Dilthey, a vivência. Aqui existe certeza imediata. Pois o que é vivência não é divisado num ato, por exemplo, o dar-se conta de algo, e num conteúdo, aquilo de que alguém se dá conta. Pelo contrário, trata-se de um ter presente já não dissociável. Mesmo a versão de que na vivência algo que é possuído, ainda distingue demais. Dilthey persegue agora como se configura um nexo, a partir desse elemento do mundo espiritual, que é imediatamente certo, e como é possível um conhecimento de tal nexo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Encontramos ali, porém, uma dimensão ainda mais abrangente do problema hermenêutico, estreitamente ligada à posição central que a linguagem ocupa no âmbito hermenêutico. A linguagem não é apenas um médium, entre outros, dentro do mundo das “formas simbólicas” (Cassirer), mas tem uma relação especial com o potencial caráter comunitário da razão. É a razão que se atualiza comunicativamente na linguagem, como já dizia R. Hõnigswald: A linguagem não é apenas “fato”, mas “princípio”. É nisso que repousa a universalidade da dimensão hermenêutica. Esta universalidade já se encontra na teoria do significado de Agostinho e Tomás de Aquino, à medida que eles consideravam que o significado dos signos (das palavras) era superado peló das coisas, justificando assim a tarefa de transcender o sensus litteralis. A hermenêutica, hoje, não pode simplesmente seguir essa teoria, isto é, não pode entronizar uma nova alegorese. Para isso precisaríamos pressupor uma linguagem da criação, pela qual Deus fala conosco. Não podemos, contudo, evitar a consideração de que não só no discurso e na escrita mas em todas as criações humanas encontra-se um “sentido”, e que a tarefa da hermenêutica é descobrir esse sentido. Hegel [112] expressou-o na sua teoria do “espírito objetivo”. Essa parte de sua filosofia do espírito permaneceu viva independentemente da totalidade do sistema dialético (cf., por exemplo, a teoria do espírito objetivo de Nicolai Hartmann e o idealismo de Croce e Gentile). Não só a linguagem da arte reivindica legitimamente um entendimento, mas toda forma de criação cultural humana em geral. Sim, a questão se amplia. Existirá algo que não faça parte de nossa orientação no mundo fundamentalmente como linguagem? Todo conhecimento humano do mundo é mediado pela linguagem. Quando se aprende a falar já se cumpre uma primeira orientação no mundo. Mas não só isso. A estrutura da linguagem de nosso estar-no-mundo acaba articulando todo o âmbito da experiência. A lógica da indução, descrita por Aristóteles e desenvolvida por F. Bacon como fundamento das novas ciências empíricas, parece insatisfatória enquanto teoria lógica da experiência científica e carente de correção. Nela transparece, porém, claramente sua proximidade com a articulação de mundo feita na linguagem. Já Temístio, em seu comentário a Aristóteles, ilustrou este capítulo correspondente de Aristóteles (An. Post B 19) com o exemplo do aprendizado da fala. A linguística moderna (Chomsky) e a psicologia (Piaget) deram novos passos nesse terreno. Isso vale, porém, para um sentido ainda mais amplo. Toda experiência realiza-se numa constante ampliação comunicativa de nosso conhecimento do mundo. Ela mesma é conhecimento do conhecido num sentido muito mais profundo e generalizado do que expressava a fórmula cunhada por A. Boeckh para designar o ofício do filólogo. É que a tradição na qual vivemos não é o que se chama de tradição cultural, que consistiria apenas de textos e monumentos, e que transmitiria um sentido estruturado na linguagem ou documentado historicamente, deixando “do lado de fora” os reais determinantes de nossa vida, as condições de produção etc. Bem longe disso, o próprio mundo experimentado pela comunicação se nos transmite constantemente como uma totalidade aberta, traditur. Isso não é nada mais que experiência. Ela se dá sempre que se experimenta mundo, sempre que se supera o estranhamento, onde se produz iluminação, intuição, apropriação. A tarefa primordial da hermenêutica como teoria filosófica consiste em mostrar, por fim, como bem indicou Polanyi, que só pode ser chamada de “experiência” a integração de todo conhecimento da ciência ao saber pessoal do indivíduo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
O processo da tradução engloba no fundo todo o mistério da compreensão humana do mundo e da comunicação social. Traduzir representa uma unidade indissolúvel de antecipação implícita, de apreensão antecipada do sentido como um todo, e a fixação explícita do que assim se antecipou. Todo discurso possui algo dessa antecipação e dessa fixação. Heinrich von Kleist escreveu um artigo muito bonito intitulado “Über die allmähliche Verfertigung der Gedanken beim Reden” (“Sobre a gradual elaboração dos pensamentos no discurso”). Se dependesse de mim, todo professor deveria assinar um certificado de que lera esse artigo, antes de examinar um aluno. O artigo descreve a experiência que Heinrich von Kleist fez no exame de licenciatura em Berlim. Também ali os exames eram abertos ao público, embora frequentados apenas pelos futuros examinandos (hoje a situação não é muito diferente). H. Kleist conta como transcorre um exame; como o professor “dispara” uma pergunta como se sacasse uma pistola e o candidato deve “disparar” a resposta como se atirasse com a sua pistola. Ora, todos sabemos que uma pergunta da qual todos conhecem a resposta só pode ser respondida por imbecis. Uma frase deve ser formulada, e isso implica criar a abertura para diversas possibilidades de resposta. O único resultado do exame que pode ter algum valor é que a resposta dada tenha sido razoável. Uma resposta “correta” pode ser dada tanto pelo computador quanto por um papagaio com muito mais rapidez que qualquer outro. Kleist encontrou uma frase muito bonita para expressar essa experiência: o volante dos pensamentos deve ser acionado. No falar, uma palavra puxa a outra e com isso expande-se nosso pensamento. Uma verdadeira palavra é [206] aquela que se oferece por si ao falar a partir de vocabulários e usos de linguagem pré-esquematizados. Pronuncia-se a palavra e talvez ela conduza aquele que a pronuncia ao alcance de consequências e objetivos que ele mesmo jamais havia previsto. O pano de fundo para a universalidade do acesso ao mundo pela linguagem é que nosso conhecimento do mundo apresenta-se como um texto infinito, que aprendemos a recitar com dificuldades e fragmentariamente. A palavra “recitar” deve tornar consciente de que não se trata de um dizer. Recitar é o contrário de dizer. O recitar já sabe o que vem em seguida, não se expondo assim às possíveis vantagens que surgem do improviso. Todos já fizemos a experiência de assistir a péssimos atores que recitam, de tal modo que ao lerem a primeira palavra temos a impressão de que já está pensando na próxima. Na verdade, isso não é dizer. Só há dizer quando se assume o risco de propor alguma coisa e seguir suas implicações. Diria, em suma, que a real incompreensão a respeito da questão da estrutura da linguagem à base de nossa compreensão é a incompreensão sobre o que é linguagem, quando esta é definida como um reservatório de palavras e frases, de conceitos, modos de ver e opiniões. A linguagem é, na verdade, a única palavra cuja virtualidade nos abre a possibilidade de seguir falando e conversando infinitamente, que nos oferece a liberdade do dizer a si mesmo e deixar-se dizer. A linguagem não é um convencionalismo reelaborado, não é o peso de esquemas prévios que nos recobrem e sim a força geradora e criativa de sempre de novo conferir fluidez a esse todo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 15.
Ora, sob a perspectiva da ciência moderna estabeleceu-se algo que deslocou a herança do antigo pensamento de ciência para novos fundamentos: com Galileu inicia-se uma nova época no [320] conhecimento do mundo. Uma nova noção do saber define a partir de então o objeto da problemática científica. É a ideia e a primazia do método sobre a coisa: as condições do saber metodológico definem o objeto da ciência. Desse modo temos que perguntar que tipo de ciência representam, nessas circunstâncias, as humaniora — esse comparativo peculiar que convida a perguntar pelo perfil do superlativo, pela ciência verdadeiramente humana. O que são essas ciências das coisas humanas que chamamos de ciências do espírito? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
Por trás disso abre-se uma dimensão ainda mais ampla, que consiste no caráter fundamental da linguagem ou na referência fundamental à linguagem. O conhecimento do mundo e a orientação nele implicam sempre o momento da compreensão… e desse modo se pode evidenciar a universalidade da hermenêutica. Ao caráter fundamentalmente de linguagem que apresenta a compreensão não significa obviamente que a experiência do mundo se efetue exclusivamente como linguagem e na linguagem. São mais do que conhecidos todos esses processos de interiorização, emudecimento e silêncios que são anteriores ou estão além da linguagem, em que se expressa o encontro direto com o mundo. Quem poderá [497] negar que existem condições reais da vida humana, que há fome e amor, trabalho e domínio, que não podem ser caracterizados como discurso nem como linguagem, mas que dimensionam por sua vez o espaço dentro do qual pode produzir-se a conversa e a escuta mútua? Isso é tão evidente que são justamente essas formas prévias de pensamento e de linguagem humana que exigem a reflexão hermenêutica. Frente a uma hermenêutica que se orienta no diálogo socrático não se deve objetar somente que a doxa não é um saber, que o acordo aparente no qual vivemos e desde o qual falamos não é um verdadeiro acordo. Mas o próprio descobrimento do aparente, como faz o diálogo socrático, se realiza no elemento próprio da linguagem. O diálogo assegura do consenso possível, inclusive no fracasso do entendimento, no mal-entendido e no célebre reconhecimento do não-saber. O caráter comum que qualificamos como humano repousa na constituição de nosso mundo da vida construída na linguagem. E qualquer tentativa de denunciar as degradações do entendimento entre os seres humanos mediante a reflexão crítica e a argumentação confirma essa nota comum. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.
O aspecto hermenêutico não pode limitar-se, pois, às ciências hermenêuticas da arte e da história, nem ao trabalho com os “textos”, nem sequer, como uma ampliação, à própria arte. A universalidade do problema hermenêutico, reconhecida já por Schleiermacher, abarca todo o âmbito do racional, tudo aquilo que pode ser objeto de acordo mútuo. Quando o entendimento parece impossível por se falarem “linguagens diferentes”, a tarefa da hermenêutica ainda não terminou. E ali que ela alcança seu sentido pleno como a tarefa de encontrar a linguagem comum. Mas a linguagem comum nunca é algo já definitivamente dado. É uma linguagem que faz o jogo entre os falantes, que deve permitir o início de um entendimento, ainda que as “opiniões” distintas se oponham frontalmente. Nunca se pode negar a possibilidade de entendimento entre seres racionais. Nem sequer o aparente relativismo presente na diversidade das linguagens humanas constitui uma barreira para a razão, cuja palavra é comum a todos, como já sabia Heráclito. A aprendizagem de línguas estrangeiras e mesmo a aprendizagem da fala pela criança não significam a simples assimilação dos recursos de entendimento. Essa aprendizagem representa antes uma espécie de pré-esquematização da experiência possível e sua primeira aquisição. O conhecimento de uma língua é um caminho para o conhecimento do mundo. Não apenas essa “aprendizagem”, mas toda e qualquer experiência se realiza em um constante progresso comunicativo de nosso conhecimento do mundo. Num sentido muito mais profundo e geral que o expresso na fórmula [498] cunhada por August Boeck para a função do filólogo, a experiência representa sempre “conhecimento do conhecido”. Vivemos dentro de tradições, e essas não são uma esfera parcial de nossa experiência do mundo nem uma tradição cultural que consta apenas de textos e monumentos e que transmite um sentido expresso pela linguagem e documentado historicamente. É o próprio mundo que percebemos em comum e se nos oferece (traditur) constantemente como uma tarefa aberta ao infinito. Não é nunca o mundo do primeiro dia, mas algo que herdamos. Sempre que vivemos algo, sempre que superamos o estranho, sempre que se produzem iluminações, conhecimento, assimilação, se realiza o processo hermenêutico de inserção na palavra e na consciência comum. Mesmo a linguagem monologai da ciência moderna adquire realidade social por essa via. Creio que nesse ponto a universalidade da hermenêutica, tão contestada por Habermas, entre outros, se mostra bem fundamentada. A meu ver, Habermas jamais superou um conceito idealista do problema hermenêutico e acaba reduzindo meu posicionamento, equivocadamente, à “tradição cultural” no sentido de Theodor Litt O amplo debate dessa questão aparece documentado no volume da Editora Suhrkamp Hermeneutik und Ideologiekritik. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.