Gadamer (VM): conceito hermenêutico

O avanço metodológico resultante dessas observações feitas sobre a linguagem consiste em que o “texto” deve ser entendido aqui como um conceito hermenêutico. Isso significa que não é visto a partir da perspectiva da gramática e da linguística, ou seja, como produto final, buscado pela análise de sua produção. Essa análise tem como propósito aclarar o mecanismo em virtude do qual a linguagem funciona, deixando de lado todos os conteúdos que transmite. Considerado a partir da perspectiva hermenêutica — que é a perspectiva de cada leitor — , o texto não passa de um mero produto intermediário, uma fase no acontecer compreensivo que encerra sem dúvida uma certa abstração: o isolamento e a fixação desta mesma fase. Mas essa abstração toma o caminho inverso daquele tomado pelo linguista. Esse não pretende chegar à compreensão da questão em causa no texto, mas aclarar o funcionamento da linguagem à margem do que o texto pode dizer. Seu tema não é o que o texto comunica, mas como é possível comunicá-lo, os recursos semióticos para produzir esta comunicação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Nesse contexto de uma crítica ao objetivismo histórico podemos incluir sobretudo os trabalhos de Erich Rothacker. É sobretudo nos últimos trabalhos, Die dogmatische Denkform in den Geisteswissenschaften und das Problem des Historismus, que Rothacker desenvolve seus pensamentos iniciais, onde sustenta o interesse hermenêutico de Dilthey (semelhante a Hans Freyer na Theorie des objektiven Geistes) contra todo psicologismo. O conceito da forma dogmática de pensamento é concebido inteiramente como um conceito hermenêutico. A dogmática deve ser defendida como um método produtivo do conhecimento das ciências do espírito, na medida em que elabora o contexto imanente de um tema, contexto que determina unitariamente uma região de sentido. Rothacker pode muito bem apelar para o fato de o conceito de “dogmática” não ter um sentido exclusivamente crítico-pejorativo, tanto na teologia quanto na jurisprudência. Mas aqui, diferente do que ocorre nessas disciplinas sistemáticas, o conceito de dogmática não deve ser um mero sinônimo de conhecimento sistemático e, portanto, de filosofia. Deve ser, antes, uma “postura distinta” que se deve justificar frente ao questionamento histórico que procura conhecer desenvolvimentos. Assim, para ele, o conceito de “dogmática” tem seu lugar no conjunto da atitude histórica, a partir donde recebe o seu direito relativo. No fundo, trata-se da mesma formulação geral formulada por Dilthey sobre o conceito de contexto estrutural, só que aplicada de modo especial à doutrina histórica do método. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

O aspecto hermenêutico porém parece-me indispensável também para a discussão estética de nossos dias. Precisamente depois que a “antiarte” tornou-se lema social, depois que o pop art, o Happening e algumas condutas tradicionais buscaram formas de arte contrárias às representações tradicionais da obra e sua unidade, esforçando-se por zombar de toda univocidade e compreensibilidade, a reflexão hermenêutica tem a tarefa de questionar o que está havendo com tais pretensões. A resposta a isso deverá indicar que o conceito hermenêutico de obra conservará sua plenitude, na medida em que nessa produção estejam incluídos identificabilidade, repetição e que essa repetição valha a pena. Na medida em que uma tal produção, enquanto é o que pretende ser, obedece à [477] relação hermenêutica fundamental de compreender algo como algo, a forma de concepção jamais será algo radicalmente novo para ela. Essa “arte” não se distingue em nada, na verdade, de certas formas de arte de caráter transitório, conhecidas desde antigamente, como, por exemplo, a arte da dança. Seu status e pretensão de qualidade são tais que, mesmo a improvisação, que jamais se repete, quer ser “boa”, o que significa, idealiter repetível e confirmando-se como arte na repetição. Aqui há uma fronteira bem precisa que distingue essa arte do mero truque ou do número do prestidigitador. Também nesse caso há algo a ser compreendido. Pode ser concebido, pode ser imitado, requer inclusive domínio de sua arte e requer ser bom. Mas, usando as palavras de Hegel, a sua repetição será “vã como um número de prestidigitação do qual já se saiba o truque”. As fronteiras existentes entre a obra de arte e o “número” podem até parecer difusas e fluentes e os contemporâneos podem até não saber se a atração de uma produção é efeito da surpresa ou um enriquecimento artístico. Não poucas vezes, os meios artísticos dão-se também como instrumentos em contextos de simples ações, como, por exemplo, em cartazes ou em outras formas de propaganda social ou política. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.