Na filosofia do escocês, o conceito de common sense encontrou uma função realmente central e sistemática, que polemiza tanto contra a metafísica, como contra sua cética solução, e sobre o fundamento de juízos originários e naturais do common sense, elabora seu novo sistema (Thomas Reid). Sem dúvida que nisso encontra-se atuante a tradição conceitual aristotélico-escolástica do sensus communis. A pesquisa dos sentidos e do seu desempenho cognitivo é haurida dessa tradição e, em última análise, deve servir para corrigir os exageros da especulação filosófica. Mas, ao mesmo tempo, permanece firme a relação do common sense com a society (sociedade): “Eles servem para nos guiar nos afazeres comuns da vida, quando nossa faculdade racional nos deixa no escuro”. A filosofia da sã compreensão humana, do good sense (bom senso) é, aos meus olhos, não somente um remédio contra o “sonambulismo” da metafísica — contém também o fundamento de uma filosofia moral, que é realmente justificada em relação à vida da sociedade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Esse desenvolvimento do conceito no século XVIII, na Alemanha, pode ser devido ao fato de que o conceito sensus communis se relaciona estreitamente com o conceito do juízo. A “sã compreensão humana”, de vez em quando também denominada “compreensão comum”, é, de fato, caracterizada decisivamente pelo juízo. É isso que diferencia um tolo de uma pessoa inteligente: o fato de aquele não possuir nenhum juízo, isto é, o fato de ele não poder subsumir corretamente e, por isso, de não ser capaz de aplicar corretamente o que aprendeu e sabe. A introdução da palavra “juízo”, no século XVIII, quer, portanto, reproduzir adequadamente o conceito de iudicium, que deveria valer como uma virtude espiritual fundamental. No mesmo sentido acentuavam os filósofos moralistas ingleses que o julgamento moral e estético não obedece à reason possuindo, porém, o caráter do sentiment (ou seja, do taste), e semelhantemente a isso vê Tetens, um dos representantes do Aufklärung alemão, ou seja, que há no sensus communis um “iudicium sem reflexão”. De fato, a atividade do juízo, de subsumir o particular no universal, de reconhecer algo como o caso de uma regra, não pode ser demonstrada logicamente. O juízo encontra-se fundamentalmente deslocado, por causa de um princípio que poderia guiar sua aplicação. Para seguir esse princípio seria necessário lançar mão de outro juízo, como observa Kant, argutamente. Não pode pois ser pregado genericamente, mas apenas exercitado de caso a caso e é, como tal, mais uma capacidade tal como o são os sentidos. Trata-se de algo simplesmente impossível de ser aprendido, porque nenhuma demonstração a partir dos conceitos consegue conduzir à aplicação de regras. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Com isso repetem-se no fundo as aporias da consciência estética que apresentamos acima. Pois é justamente a continuidade que tem de produzir toda compreensão do tempo, mesmo quando se trata da temporalidade da obra de arte. É aqui que o mal-entendido que se deu com a exposição ontológica do horizonte do tempo de Heidegger se vinga. Em vez de reter o sentido metodológico da análise existencial da pre-sença, procura-se tratar essa temporalidade existencial e histórica da pre-sença, determinada pela cura, pelo preceder a morte, isto é, pela finitude radical, como uma entre outras possibilidades de compreensão da existência, esquecendo além do mais que o que se revela aqui como temporalidade é o próprio modo de ser da compreensão. Querer distinguir a verdadeira temporalidade da obra de arte, como “tempo sagrado”, do tempo decadente e histórico, não passa, na verdade, de um mero reflexo da experiência humano-finita da arte. Somente uma teologia bíblica do tempo, cujo saber não procede do ponto de vista da autocompreensão humana mas da revelação divina, poderia falar de um “tempo sagrado” e legitimar teologicamente a analogia entre a a-temporalidade da obra de arte e esse “tempo sagrado”. Sem essa legitimação teológica, o discurso sobre o “tempo sagrado” encobre o verdadeiro problema que reside não no fato de a obra de arte poder subtrair-se ao tempo mas na sua temporalidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
O processo da tradução engloba no fundo todo o mistério da compreensão humana do mundo e da comunicação social. Traduzir representa uma unidade indissolúvel de antecipação implícita, de apreensão antecipada do sentido como um todo, e a fixação explícita do que assim se antecipou. Todo discurso possui algo dessa antecipação e dessa fixação. Heinrich von Kleist escreveu um artigo muito bonito intitulado “Über die allmähliche Verfertigung der Gedanken beim Reden” (“Sobre a gradual elaboração dos pensamentos no discurso”). Se dependesse de mim, todo professor deveria assinar um certificado de que lera esse artigo, antes de examinar um aluno. O artigo descreve a experiência que Heinrich von Kleist fez no exame de licenciatura em Berlim. Também ali os exames eram abertos ao público, embora frequentados apenas pelos futuros examinandos (hoje a situação não é muito diferente). H. Kleist conta como transcorre um exame; como o professor “dispara” uma pergunta como se sacasse uma pistola e o candidato deve “disparar” a resposta como se atirasse com a sua pistola. Ora, todos sabemos que uma pergunta da qual todos conhecem a resposta só pode ser respondida por imbecis. Uma frase deve ser formulada, e isso implica criar a abertura para diversas possibilidades de resposta. O único resultado do exame que pode ter algum valor é que a resposta dada tenha sido razoável. Uma resposta “correta” pode ser dada tanto pelo computador quanto por um papagaio com muito mais rapidez que qualquer outro. Kleist encontrou uma frase muito bonita para expressar essa experiência: o volante dos pensamentos deve ser acionado. No falar, uma palavra puxa a outra e com isso expande-se nosso pensamento. Uma verdadeira palavra é [206] aquela que se oferece por si ao falar a partir de vocabulários e usos de linguagem pré-esquematizados. Pronuncia-se a palavra e talvez ela conduza aquele que a pronuncia ao alcance de consequências e objetivos que ele mesmo jamais havia previsto. O pano de fundo para a universalidade do acesso ao mundo pela linguagem é que nosso conhecimento do mundo apresenta-se como um texto infinito, que aprendemos a recitar com dificuldades e fragmentariamente. A palavra “recitar” deve tornar consciente de que não se trata de um dizer. Recitar é o contrário de dizer. O recitar já sabe o que vem em seguida, não se expondo assim às possíveis vantagens que surgem do improviso. Todos já fizemos a experiência de assistir a péssimos atores que recitam, de tal modo que ao lerem a primeira palavra temos a impressão de que já está pensando na próxima. Na verdade, isso não é dizer. Só há dizer quando se assume o risco de propor alguma coisa e seguir suas implicações. Diria, em suma, que a real incompreensão a respeito da questão da estrutura da linguagem à base de nossa compreensão é a incompreensão sobre o que é linguagem, quando esta é definida como um reservatório de palavras e frases, de conceitos, modos de ver e opiniões. A linguagem é, na verdade, a única palavra cuja virtualidade nos abre a possibilidade de seguir falando e conversando infinitamente, que nos oferece a liberdade do dizer a si mesmo e deixar-se dizer. A linguagem não é um convencionalismo reelaborado, não é o peso de esquemas prévios que nos recobrem e sim a força geradora e criativa de sempre de novo conferir fluidez a esse todo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 15.