Gadamer (VM): ciências da compreensão

Mesmo a brilhante dialética com que E. Betti procurou justificar o legado da hermenêutica romântica conjugando o subjetivo e o objetivo mostrou-se insuficiente depois que Ser e tempo demonstrou o caráter ontológico prévio do conceito de sujeito e sobretudo quando o Heidegger tardio fez ruir o âmbito da reflexão filosófico-transcendental com a ideia da “virada” (Kehre). O “acontecimento” da verdade que forma o espaço de jogo do desocultar e ocultar conferiu um novo caráter ontológico a todo desocultar, mesmo àquele das ciências da compreensão. Isso possibilitou a formulação de uma série de novas perguntas à hermenêutica tradicional. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Esse é o caminho que trilha a ciência, desde antigamente, a fim de alcançar, através de procedimentos ensináveis e controláveis, o que a inteligência individual às vezes também consegue, mesmo que de modo inseguro e não controlável. Se a conscientização das condições hermenêuticas presentes nas ciências da compreensão leva as ciências sociais — que não buscam “compreender” mas apreender cientificamente a estrutura real da sociedade pela inclusão das compreensibilidades que se alojam na estrutura da linguagem — a sistematizações metodológicas úteis ao seu trabalho, isso certamente é um ganho científico. Mas a reflexão hermenêutica não permitirá que aquelas lhe prescrevam uma obrigação de restringir-se a essa função científica imanente, e sobretudo não permitirá que lhe impeçam de aplicar novamente uma reflexão hermenêutica ao estranhamento metodológico da compreensão que move as ciências sociais, mesmo que isso provoque uma nova desvalorização positivista da hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Mas o que faz a reflexão hermenêutica quando é efetiva? Qual a relação da reflexão histórico-efeitual com a tradição da qual ela se torna consciente? Minha tese é de que — e penso que ela seja a consequência necessária do reconhecimento de nosso condicionamento histórico-efeitual e de nossa finitude — a hermenêutica nos ensina a perceber o dogmatismo presente na contradição entre a tradição viva e “natural” e a apropriação reflexiva da mesma. Ai esconde-se um objetivismo dogmático que deforma também o conceito de reflexão. O sujeito que reflete, mesmo nas ciências da compreensão, não consegue evadir-se do contexto histórico-efeitual de sua situação hermenêutica, visto que sua compreensão sempre está implicada nesse acontecer. O historiador, mesmo aquele da chamada ciência crítica, está tão longe de desfazer-se das tradições vivas, por exemplo das tradições nacionais, que, enquanto historiador nacional, acaba ao contrário formando-as e conformando-as pela sua atuação. E o mais importante: quanto mais conscientemente reflete sobre seu condicionamento hermenêutico tanto mais atua. Droysen, que desmascarou a “objetividade eunuca” dos historiadores em sua ingenuidade hermenêutica, atuou decisivamente em favor de uma consciência nacional da cultura burguesa do século XIX — em todo caso, teve muito mais influência do que a consciência épica de Ranke, que buscava educar para uma apoliteia estatal. A compreensão é, ela mesma, um acontecimento. Só um historicismo ingênuo e irrefletido poderia considerar as ciências histórico-hermenêuticas como algo absolutamente novo, [241] capaz de eliminar o poder da tradição. Através do aspecto da estruturação da linguagem, como um fenômeno capaz de sustentar toda compreensão, procurei demonstrar inequivocamente a mediação constante pela qual sobrevive a tradição social. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Nesse sentido, parece-me desleal usar de uma superioridade irônica para acusar as ciências hermenêuticas de estarem renovando e restaurando a imagem qualitativa de mundo de Aristóteles. Sem contar que tampouco a ciência moderna emprega em toda parte um procedimento quantitativo, como por exemplo nas disciplinas morfológicas. Permitam-me, porém, recordar que o saber prévio que se desenvolve em nós em virtude de nossa orientação no mundo operada na linguagem (o que constituía factualmente a base da assim chamada “ciência” de Aristóteles) entra em jogo toda vez que se elabora a experiência de vida, toda vez que se compreende a tradição feita pela linguagem e toda vez que está em curso a vida social. De certo, esse saber prévio não é uma instância crítica contra a ciência, estando exposto, inclusive, a todas as objeções críticas da ciência. No entanto, é e continua sendo o médium que sustenta toda compreensão. É por isso que cunha a peculiaridade metodológica das ciências da compreensão. Nelas aparece claramente a tarefa de manter dentro de certos limites a formação de terminologias específicas da linguagem e, ao invés de construir linguagens específicas, cultivar modos de falar procedentes da “linguagem comum”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.