A formação de uma ciência da hermenêutica, como foi desenvolvida por Schleiermacher na confrontação como os filólogos RA. Wolf e F. Ast, e em continuação à hermenêutica teológica de Ersnesti, não representa, pois, um mero passo adiante na história da arte da própria compreensão. Em si mesma, essa história da compreensão tem estado acompanhada pela reflexão teórica desde os tempos da filologia antiga. Essas reflexões, porém, têm o caráter de uma “doutrina da arte”, isto é, pretendem servir à arte da compreensão do mesmo modo que a retórica serve à arte de falar e a poética à arte de compor e a seu julgamento.íesse sentido também a hermenêutica teológica da patrística e da Reforma foi uma doutrina da arte. Todavia, agora é a compreensão como tal que se converte em problema. A generalidade desse problema é um testemunho de que a compreensão se converteu em uma tarefa num sentido novo, e que com isso também a reflexão teórica recebe um novo sentido. Ela já não é uma doutrina da arte a serviço da práxis do filólogo ou do teólogo. É verdade que o próprio Schleiermacher acaba dando à sua hermenêutica o nome de doutrina da arte, porém, em um sentido sistemático completamente diferente. E busca alcançar a fundamentação teórica do procedimento comum a teólogos e filólogos, na medida em que, aquém de ambos os interesses, remonta a uma relação mais originária da compreensão do pensamento. 965 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Assim, quando proponho o desenvolvimento da consciência hermenêutica como uma possibilidade mais abrangente, como contraponto a essa consciência estética e histórica, minha intenção imediata é buscar superar a redução teórico-científica que sofreu o que chamamos tradicionalmente de “ciência da hermenêutica” pela sua inserção na ideia moderna de ciência. Na hermenêutica de Schleiermacher fez-se ouvir tanto a voz do romantismo histórico quanto os interesses do teólogo cristão, na medida em que enquanto uma teoria geral da compreensão sua hermenêutica deveria favorecer a tarefa específica da interpretação da Sagrada Escritura. E, quando nos detemos a analisar essa hermenêutica, a perspectiva de Schleiermacher para essa disciplina mostra-se peculiarmente restringida pelo pensamento moderno de ciência. Schleiermacher define a hermenêutica como a arte de evitar mal-entendidos. Decerto, essa não é uma descrição totalmente errônea do esforço hermenêutico. O estranho induz facilmente mal-entendidos, produzidos pela distância temporal, pela mudança dos costumes de linguagem, a modificação do significado das palavras e dos modos de representação. Deve-se evitar o mal-entendido pela reflexão controlada por métodos. Mas também aqui devemos perguntar do seguinte modo: Quando afirmamos que compreender significa evitar mal-entendidos, estaremos definindo adequadamente o fenômeno da compreensão? Será que todo mal-entendido não pressupõe uma espécie de “acordo latente”? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.
O que quero evocar aqui não é nada mais que um fragmento da experiência vital. Dizemos, por exemplo: A compreensão e o mal-entendido se dão entre um eu e um tu. Mas já a simples formulação “um eu e um tu” testemunha uma alienação impressionante. Isso simplesmente não existe. Não existe nem “o” eu nem “o” tu. Existe apenas um eu que diz “tu” e que diz “eu” frente a um tu. Mas essas são situações já sempre precedidas pelo entendimento. Como sabemos, poder chamar o outro de “tu” pressupõe sempre um profundo consenso. Já existe ali um suporte permanente. Mesmo onde tentamos entender-nos a respeito de questões que dividem nossas opiniões, sempre está em jogo esse suporte, mesmo que raramente o saibamos. Ora, a ciência da hermenêutica quer-nos fazer crer que o texto que devemos compreender seria algo estranho, que tenta induzir-nos a mal-entendidos. Nesse caso, deveríamos eliminar todos os momentos que pudessem permitir a infiltração desses mal-entendidos, através de um controlado método da educação histórica, pela crítica histórica e por métodos de controle reforçados pela empatia psicológica. Isso me parece a descrição, em parte válida mas muito fragmentária, de um fenômeno de vida abrangente que constitui o “ser-nós”, do qual todos participamos. Creio que a tarefa consiste em evitar os pressupostos que estão à base da consciência estética, da consciência histórica e da técnica de evitar os mal-entendidos, superando assim as alienações presentes neles. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.