Gadamer (VM): autocompreensão

Certamente, tudo isso poderá transformar-se numa “vivência” para nós. Essa autocompreensão estética está sempre disponível. Mas a gente não pode deixar-se iludir pelo fato de que a própria obra de arte que, desse modo, torna-se para nós uma vivência, não foi destinada para uma tal concepção. Nossos conceitos de valor sobre o gênio e a vivencialidade não são, aqui, adequados. Podemos nos lembrar também de padrões totalmente diversos e, por exemplo, dizer: Não é a autenticidade da vivência ou a intensidade de sua expressão, mas a disposição artística de formas e maneiras fixas de dizer, que faz com que a obra de arte seja uma obra de arte. Essa contradição quanto aos padrões vale para todos os gêneros de arte, mas possui nas artes linguísticas sua especial legitimação. Ainda no século XVIII, de uma forma surpreendente para a consciência moderna, a poesia e a retórica encontravam-se lado a lado. Kant vê em ambas “um jogo livre da imaginação e um negócio do entendimento”. Tanto a poesia como a retórica são, para ele, belas artes, e valem como “libres”, na medida em que a harmonia das duas capacidades do conhecimento, a sensibilidade e o entendimento, é alcançada em ambas de maneira não deliberada. O padrão da vivencialidade e da inspiração genial teria de contrapor a esta tradição um conceito muito diferente de arte “livre”, a que somente responderia a poesia, na medida em que nela se tivesse suprimido todo o ocasional, e da qual a retórica deveria ser excluída inteiramente. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Com isso repetem-se no fundo as aporias da consciência estética que apresentamos acima. Pois é justamente a continuidade que tem de produzir toda compreensão do tempo, mesmo quando se trata da temporalidade da obra de arte. É aqui que o mal-entendido que se deu com a exposição ontológica do horizonte do tempo de Heidegger se vinga. Em vez de reter o sentido metodológico da análise existencial da pre-sença, procura-se tratar essa temporalidade existencial e histórica da pre-sença, determinada pela cura, pelo preceder a morte, isto é, pela finitude radical, como uma entre outras possibilidades de compreensão da existência, esquecendo além do mais que o que se revela aqui como temporalidade é o próprio modo de ser da compreensão. Querer distinguir a verdadeira temporalidade da obra de arte, como “tempo sagrado”, do tempo decadente e histórico, não passa, na verdade, de um mero reflexo da experiência humano-finita da arte. Somente uma teologia bíblica do tempo, cujo saber não procede do ponto de vista da autocompreensão humana mas da revelação divina, poderia falar de um “tempo sagrado” e legitimar teologicamente a analogia entre a a-temporalidade da obra de arte e esse “tempo sagrado”. Sem essa legitimação teológica, o discurso sobre o “tempo sagrado” encobre o verdadeiro problema que reside não no fato de a obra de arte poder subtrair-se ao tempo mas na sua temporalidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Desse modo, a própria autocompreensão hermenêutica da escola histórica, que tivemos ocasião de rastrear em Ranke e Droysen, encontra sua fundamentação última na ideia da história universal. Por outro lado, a escola histórica não podia aceitar a fundamentação hegeliana da unidade da história universal através do conceito do espírito. A ideia de que o caminho do espírito rumo a si mesmo se consuma na plena autoconsciência do presente histórico, espírito este que perfaz o sentido da história, não é mais do que uma auto-interpretação escatológica que, no fundo, subsume a história no conceito especulativo. Em lugar disso, a escola histórica se viu encurralada rumo a uma compreensão teológica de si mesma. Se não quisesse suspender a sua própria essência, a de pensar-se a si mesma como uma investigação progressiva, teria de referir seu próprio conhecimento finito e limitado a um espírito divino, para o qual as coisas seriam conhecidas em sua consumação. É o velho ideal da compreensão infinita, que aqui se aplica propriamente ainda ao conhecimento da história. É o que diz Ranke: “A divindade — se me é permitido ousar essa observação — , assim eu penso, contempla toda a humanidade histórica em seu conjunto e considerando-a, toda ela, valiosa por igual, já que antes dela não há tempo algum. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A expressão da compreensão adquire, a partir daqui, seu tom quase religioso. Compreender é participar imediatamente da vida, sem a mediação do pensamento através do conceito. O que interessa ao historiador não é referir a realidade a conceitos, mas chegar em todas as partes ao ponto em que “a vida pensa e o pensamento vive”. Os fenômenos da vida histórica são entendidos na compreensão, como manifestações do todo da vida, da divindade. Essa penetração compreensiva dos mesmos significa, de fato, mais do que um universo interior, tal como Dilthey reformulou o ideal do historiador face a Ranke. Trata-se de um enunciado metafísico, pelo que Ranke se aproxima enormemente de Fichte e Hegel, quando diz: “A intuição clara, plena e vivida, tal é a marca do ser que se tornou transparente e que enxerga através de si mesmo. Numa tal formulação, é impossível não perceber como Ranke, no fundo, permanece próximo do idealismo alemão. A plena auto-transparência do ser, que Hegel pensou no saber absoluto da filosofia, continua legitimando também a autoconsciência de Ranke como historiador, por mais que ele recuse as pretensões da filosofia especulativa. Essa é justamente a razão pela qual se [216] torna tão próximo para ele o modelo do poeta, e porque não sente a menor necessidade de estabelecer limites face a ele, como historiador. Pois o que o historiador e o poeta têm em comum é que um e outro conseguem representar o elemento em que vivem todos “como algo que está fora deles”. Esse puro abandono à contemplação das coisas, a atitude épica de quem busca a lenda da história do mundo, tem direito a chamar-se de poético, na medida em que, para o historiador, Deus está presente em tudo, não sob a forma do conceito, mas sob a da “representação externa”. Não é possível descrever melhor a autocompreensão de Ranke, do que através desses conceitos de Hegel. O historiador, tal como o entende Ranke, pertence à forma do espírito absoluto que Hegel descreveu como “religião da arte”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Heidegger somente entra na problemática da hermenêutica e das críticas históricas com a finalidade ontológica de desenvolver, a partir delas, a pré-estrutura da compreensão. Já nós, pelo contrário, perseguimos a questão de como, uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão. A autocompreensão tradicional da hermenêutica repousava sobre seu caráter de teoria da arte. Isso vale inclusive para a extensão diltheyana da hermenêutica como organon das ciências do espírito. Pode até parecer duvidoso que exista uma tal teoria da arte da compreensão; sobre isso voltaremos mais tarde. Em todo caso, cabe indagar pelas consequências que tem para a hermenêutica das ciências do espírito o fato de Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular da compreensão a partir da temporalidade da pre-sença. Essas consequências não necessitam ser tais, como se aplicasse uma nova teoria à práxis e esta fosse exercida por fim, de uma maneira diferente, de acordo com sua arte. Poderiam também consistir em que a autocompreensão da compreensão exercida constantemente fosse corrigida e depurada de adaptações inadequadas; um processo que mormente se optimalizaria por meio da arte do compreender. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Portanto, não se trata, de modo algum, de assegurar-se a si mesmo contra a tradição que faz ouvir sua voz a partir do texto, mas, pelo contrário, de manter afastado tudo o que possa impedir alguém de compreendê-la a partir da própria coisa. São os preconceitos não percebidos os que, com seu domínio, nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a tradição. A comprovação de Heidegger, segundo a qual no conceito de consciência de Descartes e no espírito de Hegel continua dominando a ontologia grega da substância, que interpreta o ser como ser atual e ser presente, vai, obviamente, mais além da autocompreensão da metafísica moderna, mas não arbitrária e aleatoriamente, senão que a partir de uma “posição” prévia que realmente permite compreender essa tradição, porque põe a descoberto as premissas ontológicas do conceito de subjetividade. E, inversamente a isso, Heidegger descobre na crítica kantiana à metafísica “dogmática” a ideia de uma metafísica da finitude, na qual seu próprio projeto ontológico deve ser validado. Desse modo, “assegura” o tema científico introduzindo-o e pondo-o em jogo na compreensão da tradição. E assim que se mostra a concreção da consciência histórica, da qual se trata no compreender. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

É dessa maneira que os padrões do Aufklärung moderno continuam determinando a autocompreensão do historicismo. Fazem-no não imediatamente, é claro, mas através de uma ruptura peculiar causada pelo romantismo. Isso cunha-se muito [278] claramente, no esquema básico da filosofia da história, que o romantismo tem em comum com o Aufklärung e que se firma como premissa inabalável precisamente pela reação romântica contra o Aufklärung: o esquema da superação do mythos pelo logos. Esse esquema obtém sua validez através da premissa do progressivo “desencantamento” do mundo. Representa a lei progressiva da história do próprio espírito e, exatamente porque o romantismo valoriza negativamente esse desenvolvimento, reivindica o próprio esquema como absolutamente evidente. O romantismo compartilha o preconceito do Aufklärung e se limita a inverter sua valorização, procurando fazer valer o velho como velho: a medievalidade “gótica”, a sociedade estatal cristã da Europa, a construção estamental da sociedade, mas também a simplicidade da vida campesina e a proximidade da natureza. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Por isso, é importante que se indague, ante o metodologismo epistemológico dominante, se o início da consciência histórica conseguiu diferenciar realmente e por inteiro nosso comportamento científico com relação àquele comportamento natural com relação ao passado. É correta a autocompreensão das ciências do espírito, quando desloca o conjunto de sua própria historicidade para o lado dos preconceitos de que temos de nos libertar? Ou será que essa ciência “livre de preconceitos” não estará compartilhando, muito mais do que ela mesma acredita, daquela recepção e reflexão ingênuas, em que vivem as tradições e em que está presente o passado? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Não há dúvidas de que é uma provocação à autocompreensão das ciências do espírito libertar-se, no conjunto de suas atividades, do modelo das ciências da natureza, e considerar a mobilidade histórica de seu tema não somente como um prejuízo de sua objetividade, mas também como algo positivo. Nesse meio tempo, surgiram no novo desenvolvimento das próprias ciências do espírito algumas iniciativas visando a um gênero de reflexão que verdadeiramente pode fazer jus ao estado do problema. O metodologismo ingênuo da investigação histórica já não domina sozinho o campo. O progresso da investigação já não se entende de modo generalizado como expansão e penetração em novos âmbitos e materiais, senão que, em vez disso, como o alcançar um nível de reflexão mais elevado dentro dos correspondentes questionamentos. É evidente que, mesmo desse ponto de vista, continua-se pensando teleologicamente, sob o padrão do progresso da investigação, como sempre convém ao investigador. Porém, junto a isso começa a entrever-se também uma consciência hermenêutica que perpassa a investigação com um interesse mais auto-reflexivo. Isso ocorre sobretudo nas ciências do espírito que contam com uma tradição mais antiga. A ciência clássica da antiguidade, por exemplo, depois de ter elaborado sua própria tradição em círculos cada vez mais extensos, voltou-se sempre de novo, com questionamentos cada vez mais afinados, para os velhos objetos preferenciais de sua ciência. Com isso introduziu uma espécie de autocrítica, na medida em que começou a refletir sobre o que perfaz realmente a excelência de seus objetos mais excelentes. O conceito do clássico, que no pensamento histórico, a partir do descobrimento do helenismo por Droysen, tinha sido reduzido a um mero conceito estilístico, obtém agora um novo direito de cidadania. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Será necessária, naturalmente, uma reflexão à hermenêutica depurada para tornar compreensível a possibilidade de que um conceito normativo como o do clássico obtenha ou recupere o direito científico. Pois tirando-se as consequências da autocompreensão da consciência histórica, resultará que todo o significado normativo do passado acaba sendo minado pela razão histórica que se tornou soberana. Somente nos começos do historicismo, por exemplo, na obra de Winckelmann, que realmente marcou época, o momento normativo representou [291] ainda um real impulso para a investigação histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Permaneceremos conscientes de que com isso se exige algo incomum à autocompreensão da ciência moderna. Procuramos, ao largo de nossas reflexões, tornar essa exigência mais plausível, ao ir mostrando-a como o resultado da convergência de toda uma série de problemas. De fato, a teoria da hermenêutica que chega até os nossos dias se desagregou em diferenciações que ela mesma não é capaz de sustentar. Isso se torna tanto mais patente aí, onde se procura formular uma teoria geral da interpretação. Se distinguirmos, por exemplo, entre interpretação cognitiva, normativa e re-produtiva, tal como o faz E. Betti em sua Allgemeine Theorie der Interpretation, montada sobre um admirável conhecimento e domínio do tema, as dificuldades aparecem no momento de inscrever os fenômenos no momento dessa divisão. Isso vale imediatamente para a interpretação científica. Se juntarmos a interpretação teológica e a jurídica e se dermos a ambas a função normativa, então teremos de lembrar que Schleiermacher relaciona inversamente, e de forma mais estreita, a interpretação teológica com a interpretação geral, que para ele é a histórico-filológica. De fato, a cisão entre as funções cognitiva e normativa atravessa, por inteiro, a hermenêutica teológica, e não chega a ser compensada distinguindo-se o conhecimento científico de uma ulterior aplicação edificante. É a mesma cisão que atravessa a interpretação jurídica, na medida em que o conhecimento do sentido de um texto jurídico e sua aplicação a um caso jurídico concreto não são atos separados, mas um processo unitário. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Segundo a autocompreensão da ciência não deve haver a menor diferença entre um texto com um destinatário determinado e um texto escrito já como “aquisição para sempre”. A generalidade da tarefa hermenêutica se estriba, antes, no fato de que cada texto deve ser compreendido sob a perspectiva que lhe seja adequada. Mas isso quer dizer que a ciência histórica se esforça, em princípio, por compreender cada texto em si mesmo, não reproduzindo ela mesma a intenção de seu conteúdo, mas deixando em suspenso sua possível verdade. Compreender é, evidentemente, fornecer uma concretização vinculada à atitude de uma tal distância hermenêutica. Somente compreende aquele que sabe manter-se pessoalmente fora do jogo. Tal é o requisito da ciência. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Seja como for, isso não quer dizer que compartilhamos a atitude hermenêutica da escola histórica, cujos questionamentos apresentamos mais acima. Havíamos mencionado, então, o predomínio do esquema filológico na autocompreensão histórica, e mostramos na fundamentação diltheyana das ciências do espírito até que ponto a verdadeira intenção da escola histórica de conhecer a história como realidade, e não como mero desenvolvimento de nexos de ideias, não pôde impor-se realmente. De nossa parte, não afirmamos em absoluto no sentido de Dilthey de que todo acontecer componha uma configuração de sentido tão acabada como a de um texto legível. Se denominamos a historiografia de uma filologia em grande escala, isso não quer dizer que aquela deva ser entendida como história do espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Concorda com isso o fato de que a ciência moderna só tenha se recordado da valência ontológica autônoma da “forma” (Gestalt), quando chegou aos limites da construtibilidade mecânica do ente, e que somente então tenha incluído a ideia dessa forma — mesmo que de simetrias bem mais formais — como princípio suplementar de conhecimento na explicação natural, sobretudo na explicação da natureza viva (biologia, psicologia). Não é que com isso renuncie à sua atitude fundamental, mas que meramente procura alcançar, por um caminho mais refinado, o seu objetivo, o domínio do ente. Isso deve ser acentuado em contraste com a autocompreensão da ciência moderna da natureza. Mas ao mesmo tempo, e em seus próprios limites, nos limites do domínio da natureza que ela própria conseguiu, a ciência faz valer a beleza da natureza e a beleza da arte que servem a um prazer livre de qualquer [484] interesse. A partir da inversão da relação entre o que é belo por natureza e o que é pela arte, já descrevemos o processo de alternância, pelo qual o que é belo por natureza acaba perdendo sua primazia, até o ponto de ser pensado como reflexo do espírito. Poderíamos ter acrescentado que o mesmo conceito da “natureza” obtém a cunhagem que ele carrega consigo, desde Rousseau, somente a partir de seu reflexo no conceito da arte. Converte-se num conceito polêmico, ou seja, o do outro do espírito, o não-eu, e como tal já não lhe convém nada da dignidade ontológica universal, própria do cosmo como ordem das coisas belas. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

O fato de a auto-interpretação ter alcançado em todos esses âmbitos uma primazia, injustificada do ponto de vista objetivo (sachlich), parece-me ser uma consequência do subjetivismo moderno. Na verdade, não se pode outorgar nenhum privilégio a um poeta na explicação de seus versos, tanto quanto não se pode outorgar privilégios ao homem de estado para a explicação histórica dos acontecimentos em que ele próprio participou com sua ação. O autêntico conceito de autocompreensão, o único aplicável em todos estes casos, não deve ser pensado a partir do modelo da autoconsciência plena, mas a partir da experiência religiosa. Essa já sempre inclui que é só pela graça divina que os descaminhos da autocompreensão humana encontram o rumo para um fim verdadeiro, isto é, para a visão de que em todos os caminhos o homem deve ser conduzido para a salvação. Toda autocompreensão humana está determinada em si pela insatisfação. Isso vale também para a obra e a ação. Por isso, a arte e a história recusam-se, segundo seu próprio ser, a serem interpretadas a partir da subjetividade da [76] consciência. Pertencem àquele universo hermenêutico, caracterizado pelo modo de realização e pela realidade da linguagem, que ultrapassa toda consciência individual. Na linguagem, no caráter próprio que ela imprime em nossa experiência de mundo, encontra-se a mediação entre finito e infinito, adequada a nós, como seres finitos. O que nela se interpreta é sempre uma experiência finita, que, apesar disso, jamais se depara com aquela barreira, onde a única coisa que se poderia fazer ainda seria adivinhar algo infinito que se tem em mente, sem poder dizê-lo. Seu progresso não está limitado, e no entanto não é uma aproximação progressiva a um sentido que se tem em mente. O que perfaz seu sentido é lograr estabelecer a obra, e não o que é que se tem em mente com ela. O que concede sentido à sentença é a palavra acertada, e não o que está escondido na subjetividade do que se tem em mente. É a tradição que abre e delimita nosso horizonte histórico, e não um acontecimento opaco da história que acontece “por si”. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

O diálogo platônico e a conversação do Sócrates platônico constituem o modelo inamissível dessa arte de romper conceitos que se tornaram rígidos. Desfazem-se os conceitos normativos que se movimentam no reino do óbvio, atrás dos quais movimenta-se uma realidade inteiramente descompromissada, que pretende obter vantagens de poder. É quando se dá uma reatualização de nossa autocompreensão e tomamos consciência do que realmente se tem em mente nos conceitos normativos de nossa auto-interpretação moral-política, que somos levados a trilhar o caminho do pensamento filosófico. Dessa forma, também para nós, não está em questão uma investigação histórico-conceitual como tal, mas o cultivo de uma disciplina no uso de nossos conceitos, a qual se pode aprender da investigação da história dos conceitos, e que pode proporcionar uma autêntica força vinculativa ao nosso pensar. Segue-se, porém, que o ideal da linguagem filosófica não pode ser [91] uma nomenclatura terminológicamente unívoca e desligada da vida da linguagem, mas a religação do pensar conceitual à linguagem e ao todo da verdade que nela está presente. No falar real ou no diálogo, e em nenhum outro lugar, a filosofia tem sua verdadeira pedra de toque, essa que é sua, propriamente sua. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.

Passando pelo historicismo radical e sob o impulso da teologia dialética (Barth, Thurneysen) e desembocando no tema da desmitologização, foi a reflexão hermenêutica de R. Bultmann que fundamentou uma autêntica mediação entre a exegese histórica e a exegese dogmática. Isso representou, sem dúvida, um marco histórico. O dilema entre a análise histórico-individualizante e o anúncio do querigma permanece, do ponto de vista teórico, insolúvel; o conceito de “mito” usado por Bultmann mostrou desde logo ser [102] uma construção carregada de pressupostos, baseada no Iluminismo moderno. Não obstante, o debate sobre a desmitologização, apresentado com muito acerto por G. Bornkamm, continua a despertar um grande interesse hermenêutico geral, visto reapresentar a antiga tensão entre dogmática e hermenêutica numa versão contemporânea. Bultmann distanciou sua auto-reflexão teológica do idealismo para aproximá-la do pensamento de Heidegger. Isso evidencia a influência direta do postulado de Karl Barth e da teologia dialética que tornaram consciente a problemática humana e teológica do “falar sobre Deus”. Bultmann procurava uma solução “positiva”, isto é, passível de ser legitimada metodologicamente, sem renunciar a nenhuma das conquistas da teologia histórica. A filosofia existencial de Heidegger, presente em Sere tempo, parecia-lhe oferecer nesse caso uma posição antropológica neutra, a partir da qual a autocompreensão da fé poderia encontrar uma fundamentação ontológica. O caráter de devir da pre-sença no modo da autenticidade e, no seu lado oposto, a decadência no mundo, podiam ser interpretados teologicamente com os conceitos de fé e pecado. Mas essa interpretação não seguia a linha da exposição heideggeriana da questão do ser, sendo uma reinterpretação antropológica. Não obstante, a relevância universal da questão de Deus para a existência humana, fundamentada por Bultmann na “autenticidade” do poder-ser, alcançou um ganho hermenêutico real. Consistia, sobretudo, no conceito da compreensão prévia — sem falar nas abundantes contribuições exegéticas dessa consciência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

O modelo fundamental de todo consenso é o diálogo, a conversa. Sabe-se que uma conversa não é possível, se uma das partes crê absolutamente estar numa posição superior em relação à outra, algo como se afirmasse possuir um conhecimento prévio dos preconceitos a que o outro se atém. Com isso, ele ver-se-ia trancado em seus próprios preconceitos. Em princípio, um consenso dialogai torna-se impossível quando um dos interlocutores do diálogo não se libera realmente para a conversa. Um caso semelhante seria, por exemplo, se alguém num ambiente social quisesse desempenhar o papel de psicólogo ou psicanalista e na pretensão de compreender psicanaliticamente os enunciados do outro não leva a sério o seu sentido. Neste caso, o companheirismo, base da vida social, estaria destruído. Essa problemática foi discutida sistematicamente sobretudo por Paul Ricoeur, ao falar do “conflito de interpretações”. Nessa discussão, situa Marx, Nietzsche e Freud de um lado e a intencionalidade fenomenológica da compreensão de “símbolos” de outro, buscando uma mediação dialética. De um lado, a derivação genética, como arqueologia, e de outro, a orientação para um sentido intencional, como teleología. Segundo ele, esse passo é apenas uma distinção preparatória, que limpa o terreno para uma hermenêutica geral, à qual caberia esclarecer a função constitutiva da compreensão de símbolos e da autocompreensão por meio de símbolos. Uma tal teoria geral hermenêutica parece-me inconsistente. Os modos de compreensão de símbolos, [117] dispostos aqui em paralelo, visavam sentidos de símbolo distintos, e por isso não constituem um “sentido” cada vez diverso da mesma realidade. Na verdade, um modo de compreender exclui o outro, porque se refere a algo diverso. Um compreende o que o símbolo quer dizer, o outro o que ele quer esconder ou mascarar. Trata-se de um sentido de “compreender” totalmente distinto. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Sobre a problemática da autocompreensão — Uma contribuição hermenêutica ao tema da “desmitologização” (1961) VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Quem presenciou a enorme repercussão que causou o aparecimento do artigo programático de Rudolf Bultmann sobre a desmitologização do Novo Testamento e analisa a influência que continua exercendo até hoje sabe muito bem que ali estão em jogo problemas teológicos e sobretudo dogmáticos. Quem conhece o trabalho teológico de Bultmann sabe também que aquele artigo nada tem a ver com sensacionalismo. O artigo apenas formulou o que de há muito já vinha acontecendo no trabalho exegético do teólogo. É justamente esse o ponto em que uma reflexão filosófica pode contribuir para a discussão teológica. Sem dúvida, o problema da desmitologização possui também um aspecto hermenêutico geral. Os problemas teológicos não atingem o fenômeno hermenêutico da desmitologização como tal, mas sim o seu resultado dogmático. Trata-se de saber se Bultmann estabelece corretamente ou não os limites do que corresponde a uma desmitologização, a partir da perspectiva da teologia protestante. As explanações que se seguem buscam abordar o aspecto hermenêutico do problema sob um horizonte que, segundo me parece, ainda não alcançou suficiente validade. A pergunta que norteia essas explanações é se a compreensão do Novo Testamento pode se dar suficientemente a partir do conceito fundamental da autocompreensão da fé ou se ali atua também um momento totalmente diverso, que ultrapassa a autocompreensão do indivíduo e até seu ser-próprio. Para isso fazem-se necessárias algumas reflexões preparatórias capazes de assinalar lugar do aspecto hermenêutico. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Sem dúvida não é fácil para a autoconsciência metodológica da investigação histórica firmar e manter esse aspecto do tema em questão, pois as ciências humanas já estão marcadas pela ideia moderna de ciência. Não obstante a crítica romântica ao racionalismo inerente ao Iluminismo tenha rompido com o predomínio do direito natural, os caminhos da investigação histórica concebem-se como passos rumo a um esclarecimento histórico total do homem a respeito de si próprio, tendo como consequência a dissolução dos últimos restos dogmáticos da tradição greco-cristã. O objetivismo histórico que corresponde a esse ideal tira sua força de uma ideia de ciência sustentada no subjetivismo filosófico da modernidade. A preocupação de Droysen foi defender-se contra esse subjetivismo. Todavia, foi somente com a crítica radical ao subjetivismo filosófico iniciada com o Ser e tempo, de Heidegger, que se pôde fundamentar filosoficamente a posição histórico-teológica de Droysen e apresentar no lugar de Dilthey, que se acha bem mais dependente do conceito moderno de ciência, o Conde York von Wartenburg como o verdadeiro interlocutor na herança do luteranismo. A partir do momento em que Heidegger deixa de considerar a historicidade da pre-sença como uma limitação de suas possibilidades de conhecimento e como uma ameaça ao ideal da objetividade científica para enquadrá-la de modo positivo na problemática ontológica, o conceito de compreensão, que a escola histórica havia elevado como método, transformou-se em conceito filosófico universal. Segundo Ser e tempo, a compreensão é o modo de realização da historicidade da própria pre-sença. O seu caráter de porvir, o caráter fundamental de projeto, conveniente à temporalidade da pre-sença, delimita-se pela outra determinação do estar-lançado, pela qual [125] não se designam apenas os limites de uma posse soberana de si mesmo mas abrem-se e determinam-se também as possibilidades positivas que são as nossas. O conceito de autocompreensão, legado em certo sentido pelo idealismo transcendental e ampliado em nossa época por Husserl, em Heidegger adquire pela primeira vez sua verdadeira historicidade, contribuindo assim também para os interesses teológicos na formulação da autocompreensão da fé. Pois o que pode liberar a autocompreensão da fé da falsa pretensão de uma certeza gnóstica de si mesma não é o soberano ser mediado por si mesmo da autoconsciência mas sim a experiência de si mesmo que acontece com cada um, e, do ponto de vista teológico, acontece particularmente no anúncio da pregação. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Heidegger, porém, não ficou preso ao esquema transcendental, que ainda determinava o conceito de autocompreensão em Ser e tempo. Já em Ser e tempo a verdadeira questão não era de que maneira se pode compreender o “ser”, mas de que maneira a compreensão é “ser”. A compreensão de ser constitui a caracterização existencial da pre-sença humana. Já aqui não se compreende ser como o resultado de uma produção objetivadora da consciência, como ainda era o caso na fenomenologia de Husserl. Quando a pergunta pelo ser visa o ser da pre-sença que compreende a si própria, assume-se uma dimensão inteiramente diversa. Nessa pergunta, o esquema transcendental acaba fracassando. Assume-se no questionamento ontológico a contraposição infinita do ego transcendental. Nesse sentido, já em Ser e tempo se começa a superar aquele esquecimento do ser que Heidegger caracterizou mais tarde como a essência da metafísica. O que ele chama de “virada” (die Kehre) nada mais é que o reconhecimento da impossibilidade de superar o esquecimento do ser na reflexão transcendental. Nesse sentido, todos os conceitos posteriores, o “acontecer do ser”, o “pré” como a “clareira” do ser etc. são consequências implícitas no primeiro enfoque de Ser e tempo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

A função que exerce o mistério da linguagem no pensamento tardio de Heidegger ensina de maneira suficiente que o aprofundamento na historicidade da autocompreensão deslocou de sua posição central não apenas o conceito de consciência, mas também o [126] conceito de mesmidade (Selbstheit). Pois o que pode ser mais desprovido de consciência e de mesmidade do que o âmbito misterioso da linguagem no qual nos encontramos e que faz vir à palavra aquilo que é, de tal forma que o ser “se temporaliza”? O que assim vale para o mistério da linguagem, vale igualmente para o conceito de compreensão. Também esse não deve ser concebido como uma simples atividade da consciência compreensiva, mas como um modo de acontecer do próprio ser. Dito de forma puramente formal, o primado que possuem a linguagem e a compreensão no pensamento de Heidegger remete para o caráter prévio da “relação” frente aos seus componentes relacionais: o eu que compreende e aquilo que é compreendido. Também parece-me possível — e eu próprio realizei esse experimento em Verdade e método I — confirmar as explanações de Heidegger sobre “o ser” e a problemática desenvolvida a partir da experiência da “virada” na própria consciência hermenêutica. A relação de compreensão e compreendido tem a primazia frente ao compreender e o compreendido, do mesmo modo que a relação entre quem fala e o que se fala remete para a realização de um movimento que não tem sua base fixa em nenhum dos membros da relação. Compreender não é autocompreensão, como o idealismo considera certo e óbvio. O sentido de compreender, todavia, também não se esgota com a crítica revolucionária ao idealismo que pensa o conceito de autocomprensão como algo que sucede com o si-mesmo (Selbst) e pelo qual este chega a ser ele próprio. Considero que, no compreender, se dá um momento de desprendimento de si mesmo que merece a atenção também da hermenêutica teológica e que deveria ser investigado sob o fio condutor da estrutura do jogo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

A alternância viva de um movimento que se desenrola no âmbito de um espaço de jogo não pode ser deduzida do jogo humano e do comportamento lúdico da subjetividade. Pelo contrário, também para a subjetividade humana, a real experiencia de jogo consiste no fato de que, no jogo, passa a predominar algo que obedece inteiramente às suas próprias leis. O movimento que assume determinada direção corresponde a um movimento em direção oposta. A consciência do jogador é determinada pelo fato de que a alternância do movimento do jogo forma-se por uma liberdade e leveza estranhas. E como se surgisse de si mesma — um estado de equilíbrio sem gravidade “onde a pura carência se transformasse inconcebivelmen-te, saltando para o vazio de superabundância” (Rilke). Mesmo o aumento do desempenho que assalta o indivíduo nessa situação competitiva tem algo desse ser tomado pela leveza do jogo que define o seu papel. O que entra ou está em jogo já não depende de si mesmo, mas é dominado por essa relação chamada jogo. Para o indivíduo que se entrega ao jogo como subjetividade lúdica isso pode parecer de início uma adaptação. A gente se ajusta ou se submete ao jogo, isto é, recusa-se à autonomia da própria vontade. Dois homens, por exemplo, que puxam uma serra, permitem aparentemente o livre [129] jogo da serra porque se adaptam um ao outro, de modo que o impulso do movimento de um começa onde acaba o do outro. A impressão é que há um acordo entre ambos, um comportamento voluntário tanto de um como do outro. Mas isso ainda não é jogo. O que constitui o jogo não é tanto o comportamento subjetivo de ambos, que se enfrentam, mas a formação do próprio movimento que subordina a si o comportamento dos indivíduos como numa teleología inconsciente. É mérito do neurologista Viktor von Weizsäcker ter investigado experimentalmente esse tipo de fenômenos e de tê-los analisado teoricamente em sua obra Der Gestaltkreis (0 círculo gestáltico). Devo a ele também a indicação de que o comportamento tenso pelo qual um mangusto e uma serpente colocam-se mutuamente em xeque olhando-se olho no olho não pode ser descrito como a reação de um contendente contra a tentativa de ataque do outro, mas representa um comportamento recíproco de absoluta simultaneidade. Também aqui o elemento realmente determinante não é nenhuma das partes. E a configuração unitária do movimento em seu conjunto que forma em si o comportamento cinético dos indivíduos. Transpondo isso para uma generalização teórica, pode-se dizer que o si-mesmo dos indivíduos, seu comportamento e sua autocompreensão mergulham numa determinação superior que é o verdadeiro fator determinante. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

É sob essa perspectiva que gostaria de considerar a relação entre fé e compreensão. A autocompreensão da fé determina-se pelo fato de que, vista teologicamente, a fé não constitui uma possibilidade do homem, mas um ato da misericórdia de Deus que sobrevêm ao crente. É difícil, contudo, manter essa visão teológica e essa experiência religiosa na autocompreensão interna do homem, enquanto essa estiver sob o domínio da ciência moderna e de sua metodologia. O conceito de saber que se fundamenta nessa metodologia não tolera nenhuma restrição em sua pretensão de universalidade. Baseada nessa pretensão, toda autocompreensão apresenta-se como uma espécie de autopossessão que exclui com veemência tudo que possa se lhe contrapor e que a separe de si própria. O conceito de jogo pode tornar-se aqui importante, uma vez que o mergulhar no jogo, em seu auto-esquecimento extático, não é experimentado como uma perda da posse de si, mas positivamente como a leve liberdade de elevar-se sobre si mesmo. Isso não se deixa apreender, de maneira unitária, como a subjetividade de um auto-esquecimento. Como formulou certa vez o historiador holandês Huizinga, a consciência daquele que está jogando encontra-se num equilíbrio indistinguível entre fé e falta de fé. “O selvagem não conhece a diferença conceitual entre ser e jogar.” VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Mas não é apenas o selvagem que não conhece essas diferenças conceituais. A pretensão de autocompreensão, suposto que [130] exista — e não existe, desde que o homem é homem? — permanece encerrada em limites bem determinados. A consciência hermenêutica não compete com aquela autotransparência, que, segundo Hegel, constitui o espírito absoluto e que perfaz a forma mais elevada do ser. Não é só no âmbito da fé que se fala em autocompreensão. Toda compreensão é no fundo compreender a si mesmo, mas não no sentido de uma posse de si mesmo que se alcance de antemão e definitivamente. A autocompreensão realiza-se sempre quando se compreende alguma coisa e não tem o caráter de uma livre auto-realização. O si-mesmo que nós mesmos somos não possui a si mesmo. Poderíamos dizer, antes, que ele acontece. E é isso que diz realmente o teólogo: que a fé é o extraordinário evento em que nasce um novo homem. Afirma ainda que é a palavra que deve ser criada e compreendida, já que é pela palavra que superamos a ignorância abissal em que vivemos a respeito de nós próprios. Como mostra claramente J.G. Hamann, o conceito da autocompreensão tem um cunho originariamente teológico. Está relacionado com o fato de que nós próprios não nos compreendemos a não ser diante de Deus. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Se o que ocorre ali é uma autocompreensão, trata-se então de uma autocompreensão muito paradoxal, para não dizer negativa, onde nos vemos chamados à conversão. De certo, essa autocompreensão não estabelece um critério para a interpretação teológica do Novo Testamento. Além do mais, os próprios textos do Novo Testamento já são interpretações da mensagem salvífica e mediadores da boa-nova sem nenhuma pretensão de ser compreendidos em si mesmos. Terá sido essa condição que lhes conferiu sua liberdade expressiva, tornando-os testemunhos desinteressados? Por mais gratos que sejamos às recentes investigações teológicas a respeito da intenção teológica dos próprios autores do Novo Testamento, o anúncio do Evangelho fala por intermédio de todas essas mediações, de maneira semelhante ao que ocorre com uma lenda que continua a ser transmitida ou a uma tradição mítica, constantemente transformada e renovada pela grande poesia. Parece-me que a verdadeira realidade do exercício hermenêutico abrange a autocompreensão do intérprete e do interpretado. Nesse sentido, a “desmitologização” não se dá apenas na atividade do teólogo. Ela se dá na própria Bíblia. Todavia, nem numa nem em outra a “desmitologização” pode ser garantia segura para uma compreensão correta. O verdadeiro evento da compreensão ultrapassa tudo que pode ser produzido por meio do esforço metodológico e do autocontrole crítico com vistas à compreensão das palavras do outro. Ultrapassa também tudo aquilo de que nós próprios podemos ter consciência. De todo diálogo, pode-se dizer que através dele surge outra coisa diferente. A palavra de Deus que convoca para a conversão e nos promete uma melhor compreensão de nós mesmos não pode ser compreendida como um objeto que se encontra ali, à nossa frente. Não somos nós mesmos que compreendemos, ali. É sempre um passado que nos permite dizer: compreendi. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Nosso problema, portanto, não é de modo algum o dualismo metodológico. Refere-se à questão específica da medicina, que parece representar um caso paradigmático para o tema da ordenação do mundo moderno pela ciência. Os espantosos progressos alcançados pela medicina moderna para a solução de situações realmente [168] críticas da enfermidade humana dão origem a confusões bastante problemáticas, das quais terão que prestar conta um dia os comprometidos com o juramento hipocrático. Não se trata apenas de a necessidade prática de ajuda e de cura colocar em evidência o modelo de aplicação técnica da ciência como excessivamente particular. Sem dúvida, também o nível de nosso saber, isto é, sua limitação, acaba obrigando o médico a confiar no seu tato e intuição e, onde estes não bastam, a fazer novas tentativas. Nesse sentido, não me parece nada contraditório supor uma biologia perfeita capaz de possibilitar o alcance de uma perfeição na medicina, que hoje mal podemos imaginar. Acho que justamente então tornar-se-iam patentes as confusões, cujos indícios já estamos percebendo hoje. Penso, por exemplo, no retardamento da morte, hoje praticada pela técnica médica. Em situações dessa natureza, a unidade da pessoa do doente, que é um verdadeiro interlocutor para o médico que o ajuda, não terá mais lugar. Algo parecido já havia sido mencionado acima a respeito das possibilidades de criação da biologia genética. Parece que a limitação e finitude da vida tornam inevitável o conflito existente entre a ciência natural, em suas possibilidades extremas, e a autocompreensão humana. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

Afirmo, por isso, que devemos desvincular conscientemente o fenômeno da compreensão da prioridade concedida aos distúrbios na compreensão, se quisermos descobrir realmente qual o seu lugar no todo de nossa realidade humana e social. Na verdade, são relativamente raros os obstáculos no entendimento e na compreensão, que imponham a tarefa de um querer compreender deliberado com vistas a superar o mal-entendido. Em outras palavras, o exemplo do “acordo tácito”, longe de ser uma objeção à estrutura de linguagem inerente à compreensão, assegura, antes, a sua amplitude e universalidade. Trata-se de uma verdade fundamental, que no meu entender deve recuperar seu valor, sobretudo após tantos séculos em que o conceito moderno científico tem predominado de forma absoluta em nossos esforços de autocompreensão. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.

O que se dá na linguagem dá-se também no todo de nossa orientação vital: o fato de estarmos familiarizados com um mundo convencional pré-formado. A questão é saber se em nossa própria autocompreensão chegamos tão longe como acreditamos chegar às vezes nesses casos raros do falar, mencionados acima, em que alguém diz realmente o que quer dizer. Será que isso haveria de significar que alcançamos o ponto de compreender o que realmente é? Ambos, tanto a compreensão total quanto o dizer adequado, são casos extremos de nossa orientação no mundo, do infinito diálogo interno da alma consigo mesma. E, no entanto, creio que justamente porque esse diálogo é infinito, porque essa orientação objetiva que se nos oferece em esquemas pré-formados do discurso entra no processo espontâneo de nosso entendimento com os outros e conosco mesmos, é que se abre para nós a infinitude do que compreendemos, do que se deixa apropriar espiritualmente. O diálogo interno da alma consigo mesma não encontra limites. Esta é a tese que contraponho à suspeita de ideologia levantada contra a linguagem. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 15.

Já de início encontramos aí “ponto de partida da linguagem” (124s). Se a estrutura da linguagem se caracteriza pelo modo de realização da consciência hermenêutica, então convém reconhecermos na linguagem, enquanto estrutura fundamental da sociabilidade humana, o a priori válido para as ciências sociais, a partir do qual as teorias behaviorista-positivistas, que consideram a sociedade como um todo funcional observável e controlável, são levadas ao absurdo. Isso comporta algo evidente, à medida que a sociedade humana vive em instituições, que como tais são compreendidas, transmitidas, reformadas, em suma, são determinadas pela íntima autocompreensão dos indivíduos que formam a sociedade. Tanto frente à teoria dos jogos de linguagem de Wittgenstein quanto frente à utilização da mesma por Winch em vista de um a priori de linguagem válido para todo enunciado das ciências sociais, Habermas reconhece o direito da hermenêutica pelo fato de, a partir do pensamento da história dos efeitos, essa hermenêutica reivindicar o acesso comunicativo ao âmbito dos objetos das ciências sociais. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Vamos explicitar concretamente esse pensamento. A reflexão efetuada pela hermenêutica filosófica seria crítica no sentido de que descobriria o objetivismo ingênuo onde se encontra enredada a autocompreensão das ciências históricas, orientada nas ciências da natureza. Aqui a crítica da ideologia lança mão da reflexão hermenêutica interpretando o caráter de preconceito de toda compreensão como uma crítica da sociedade. Ou a reflexão hermenêutica descobre falsos embasamentos (Hypostasierungeri) de palavras no estilo que fazia Wittgenstein ao criticar os conceitos da psicologia remontando à situação hermenêutica originária onde a fala está referida à práxis. Também essa crítica ao enfeitiçamento da linguagem retifica nossa autocompreensão, de tal modo que essa pode ajustar-se melhor às nossas experiências. Mas a hermenêutica produz reflexão crítica, por exemplo, quando defende a linguagem compreensível contra falsas pretensões da lógica, que busca importar determinados critérios de cálculo enunciativo a textos filosóficos, demonstrando (Carnap ou Tugendhat) que, quando Heidegger ou Hegel falam sobre o nada, essa fala seria absurda por não cumprir certas precondições lógicas. Nesse caso, a hermenêutica filosófica pode demonstrar que essas objeções não correspondem à experiência hermenêutica ficando aquém do que se deve compreender. O “nada nadificante”, p. ex., não expressa como pensa Carnap um sentimento, mas um movimento do pensamento que deve ser compreendido. A reflexão hermenêutica parece-me ser produtiva onde alguém por exemplo examina o modo de argumentação socrático nos diálogos platônicos a partir da perspectiva de seu rigor lógico. Nesse caso, a reflexão hermenêutica pode descobrir que o processo comunicativo que se dá no desenrolar dos diálogos socráticos é um processo da compreensão e do entendimento, que não é atingido pela busca de conhecimento do analista lógico. Em todos esses casos, a crítica reflexiva reporta-se a uma instância representada pela experiência hermenêutica e sua realização na linguagem. Eleva à consciência crítica o scopus dos enunciados presentes e qual o esforço hermenêutico exigido para sua pretensão da verdade. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Trata-se de retificar uma autocompreensão. Essa reflexão hermenêutica é “filosófica” não porque reivindicasse para si uma determinada legitimação filosófica, mas ao contrário porque contesta uma certa pretensão “filosófica”. O que critica não é um procedimento científico como tal, como por exemplo o da pesquisa científica ou o da análise lógica, mas a falta de justeza metodológica dessas aplicações, como foi descrito acima. E ademais, a legitimação filosófica baseada nessa questão de crítica não tem nada de especial. Não existe nenhuma outra justificação para o filosofar a não ser remeter-se ao fato de que sempre se filosofou, mesmo que muitas vezes sob os signos negativos de oposição à pretensão da “metafísica”, por exemplo, no caso do ceticismo, da crítica da linguagem ou da teoria da ciência. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Ora, a significação paradigmática que corresponde à psicanálise para a crítica à hermenêutica e para a crítica dentro da comunicação social encontra-se no papel da reflexão emancipatória, que tem sua função terapêutica nela. A reflexão liberta alguém na medida em que torna visível o que o domina imperceptivelmente. De certo, trata-se de reflexão crítica num sentido diferente do que o sentido que se dá na reflexão hermenêutica, que como eu dizia destrói a autocompreensão inadequada descobrindo a falta de retidão metodológica. Não que a crítica que se orienta no paradigma da psicanálise estivesse em contradição com a crítica hermenêutica (mesmo que, como gostaria de demonstrar, a crítica hermenêutica deva negar-se a assumir esse paradigma). Isso não lhe é suficiente. Por meio da reflexão hermenêutica, as ciências hermenêuticas defendem-se contra a tese de que seu procedimento seria acientífico, visto negarem a “objetividade” da science. Nesse ponto, a crítica da ideologia concorda com a hermenêutica filosófica. Acusa, porém, a hermenêutica de perpetuar de modo indevido uma persistência tradicionalista de preconceitos herdados. Desde a irrupção da revolução industrial e da ciência na vida social, o momento da tradição desempenharia um papel meramente secundário. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Mas na medida em que essa hermenêutica, a partir da teoria, destrói essas deformações práticas procedentes da teoria, ocorre sem dúvida um efeito retroativo de uma falsa autocompreensão sobre o procedimento prático e também o efeito retroativo inverso de uma autocompreensão adequada. Mas a tarefa da reflexão da história dos efeitos não é buscar atualização e “aplicação”, mas antes descobrir e impedir todas as ingerências atualizantes na compreensão da tradição, não apenas pela disciplina formal da metodologia científica, mas pela reflexão concreta sobre o conteúdo. Apel expressa exatamente o que penso quando diz: “pertence ao âmbito dos deveres de um método de interpretação, com consciência de sua aplicação, ter de dificultar em certas circunstâncias sua aplicação ao presente no interesse de um entendimento não limitado” (141). Ousaria ir mais longe, e em lugar de “em certas circunstâncias”, dizer “em todas as circunstâncias”; só que não considero esse princípio como a consequência da consciência de aplicação, mas como a realização do verdadeiro dever da cientificidade, que muitas vezes parece-me ferido onde os preconceitos ideológicos continuam atuando como pano de fundo, como uma vis a tergo. Isso porque um senso metodológico de falsa exatidão não quer verificá-los. Nesse ponto, vejo com Apel (32) um perigo de real corrupção ideológica. Não saberia dizer se esse perigo atinge, como diz Apel (35), também aquelas ciências hermenêuticas do espírito que ele chama de “existencialistas”, uma vez que não sei o que ele tem em mente. Mas certamente o perigo não atinge aquelas ciências nas quais se orienta a reflexão hermenêutica, nem atinge essa reflexão. É só nesse caso que a reflexão hermenêutica pode tornar-se “prática”. Ela torna suspeita toda ideologia, à medida que evidencia seus preconceitos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

A partir do ponto de vista da metafísica, o critério de verdade que deriva a ideia do verdadeiro da ideia do bem e o ser do conceito de inteligência “pura” parece-me bem familiar. O conceito de inteligência pura procede da teoria medieval de inteligência e ganha corpo na figura do anjo que tem o privilégio de ver a Deus em sua essência. Nesse aspecto, parece-me difícil eximir Habermas de uma autocompreensão ontológica falsa, como me pareceu ser o caso da superação do ser natural na racionalidade. Mas Habermas me acusa de falsa ontologização, por exemplo, porque não vejo uma oposição excludente entre autoridade e Iluminismo. Segundo ele, a falsidade consistiria em pressupor que o reconhecimento legitimador se produz sem violência e sem o acordo que fundamenta a autoridade [267]. Mas não se deveria fazer essa pressuposição. Realmente não? O próprio Habermas não faz essa pressuposição quando reconhece que deveria haver essa concordância livre como a ideia diretriz de uma vida social livre de violência e dominação? Eu mesmo jamais tive em mente essas relações “ideais”. Sempre me referi antes a todos os casos de experiência concreta, nos quais falamos de uma autoridade natural e do seguimento que essa encontra. Falar sempre de uma comunicação coercitiva, por exemplo, na afirmação de que o amor, a escolha de um modelo ou a submissão voluntária servem sempre de alicerce para estabilizar um superior e um subordinado, parece-me ser um preconceito dogmático em relação ao que significa a “razão” entre os homens. Assim, não consigo ver como no âmbito social a competência comunicativa e seu domínio teórico possam derrubar as barreiras que há entre os grupos, que numa crítica mútua acusam o caráter coercitivo do acordo existente no outro. Nesse caso, parece ser indispensável “a violência suave da iniciativa” (Giegel, 249) e com ela o postulado de uma competência totalmente diferente, ou seja, a da ação política, com o objetivo de possibilitar a comunicação onde ela não existe. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Um tema tão central de toda a hermenêutica, como é a superação da estranheza e a apropriação do estranho, alcança aqui sua formulação especial, única, frente à qual todas as outras estranhezas dos textos, como o idioma, as concepções sobre o tempo e as formas de expressão tornam-se secundárias. Trata-se com efeito do tema originário do protestantismo: a oposição entre lei e promessa ou graça. Não é justo classificar de dogmática essa hermenêutica por causa de seu interesse dogmático. De certo busca facilitar a autocompreensão da fé cristã e a aceitação do Evangelho; mas no fundo continua sendo um esforço puramente hermenêutico. É a elaboração e justificação do princípio bíblico protestante, cuja aplicação confirma o pressuposto religioso da “justificação pela fé”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Na época do romantismo, quando Schleiermacher e seus seguidores conformaram a hermenêutica numa “arte” universal destinada a legitimar a peculiaridade da ciência teológica, equiparando sua metodologia ao círculo das ciências, isso significou um passo decisivo no desenvolvimento da hermenêutica. Schleiermacher, possuidor de um dom natural da intuição compreensiva do próximo e a quem podemos chamar o amigo mais genial de uma época em que a cultura da amizade alcançou um valor elevado, sabia perfeitamente que a arte da compreensão não se podia limitar à ciência. Segundo ele, essa arte desempenha um papel de destaque na vida interpessoal. E sempre que nos defrontamos com palavras de uma pessoa dotada de profundidade, buscando compreender seu sentido, de imediato inacessível, lançamos mão constantemente dessa arte. Tentamos captar, segundo ele, algo entre as palavras do interlocutor espiritual, do mesmo modo que fazemos quando lemos entre as linhas. Não obstante, é justamente em Schleiermacher onde aparece a pressão que o conceito moderno de ciência exerce na autocompreensão hermenêutica. Ele distingue entre uma hermenêutica em sentido amplo e uma prática mais estrita da hermenêutica. A práxis em sentido amplo parte do pressuposto de que, ante as afirmações do outro, a reta compreensão e o mútuo entendimento constituem a regra, e o mal-entendido a exceção. A práxis estrita, ao contrário, parte do pressuposto de que o mal-entendido é a regra e que só com um esforço técnico se pode evitar o mal-entendido e alcançar uma compreensão correta. É evidente que essa distinção afasta a tarefa da interpretação do contexto consensual onde se alterna constantemente a verdadeira vida da compreensão. Agora ela deve superar um estranhamento total. O emprego de um recurso artificial destinado a descobrir o estranho e apropriar-se dele toma o lugar da faculdade comunicativa que permite a convivência dos seres humanos e onde se relacionam com a tradição que os sustenta. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Creio que os problemas da razão prática apresentam-se principalmente com relação a autocompreensão das chamadas ciências do espírito. “Que lugar ocupam as humanities, as “ciências do espírito, no universo das ciências? Tentarei mostrar que a filosofia prática de Aristóteles — e não o conceito moderno de método e de ciência — representa o único modelo viável para formarmos uma ideia adequada das ciências do espírito. Uma breve reflexão histórica pode servir de introdução a essa tese controversa. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

Como pode a facticidade adquirir o caráter de princípio, adquirir o caráter de “ponto de partida” primeiro e determinante? O que significa “fato”, nesse contexto, não é a facticidade dos fatos estranhos, dos quais pensamos ter dado conta à medida que aprendemos a explicá-los. Trata-se da factualidade das crenças, valorações, usos partilhados por todos nós; é o paradigma de tudo que constitui nosso sistema de vida. A palavra grega que designa o paradigma dessas factualidades é o conhecido termo ethos, o ser que se consegue com o exercício e o hábito. Aristóteles é o fundador da ética porque deu realce a esse caráter da factualidade como sendo decisivo. No caso de a possuirmos, a phronesis, essa racionalidade responsável, é a garantia de que esse ethos não é um mero adestramento ou adaptação e nada tem a ver com o conformismo de uma consciência duvidosa. Não é um dom natural. O partilhar uma crença e decisões comuns em intercâmbio com os semelhantes e em convivência na sociedade e no estado não é, pois, conformismo. Constitui a dignidade do [326] ser-próprio e da autocompreensão humanos. A pessoa que não é associai acolhe sempre o outro e aceita o intercâmbio com ele e a construção de um mundo comum de convenções. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

Eu disse certa vez que “o sentido é sentido de direção”. E muitas vezes Heidegger utilizou-se de um arcaísmo ortográfico escrevendo a palavra Sein (ser) como Seyn para sublinhar seu caráter verbal. De modo parecido, deve-se ver minha tentativa de eliminar a herança da ontologia da substância, partindo da conversação e da linguagem comum, linguagem buscada e formada na conversação. Nessa linguagem o elemento determinante é a lógica de [370] pergunta e resposta. Ela abre uma dimensão de entendimento que transcende as expressões fixadas pela linguagem e, portanto, a síntese global no sentido da autocompreensão monológica da dialética. De certo, a dialética idealista não nega sua origem da estrutura fundamental especulativa da linguagem, como demonstrei na terceira parte de Verdade e método I. Mas, quando subordina a dialética a um conceito de ciência e de método, Hegel encobre na verdade sua procedência, sua origem na linguagem. A hermenêutica filosófica tem em mente assim a referência à unidade-dual especulativa que se desenrola entre o dito e o não dito, que na verdade precede a tensão dialética da contradição e sua superação num novo enunciado. Creio que a tentativa de converter em supersujeito o papel que eu reconheci na tradição, a saber, formular perguntas e projetar respostas, buscando reduzir, com isso, a experiência hermenêutica a uma parole vide, como fazem Manfred Frank e Forget, não passa de um erro grosseiro. Isso não encontra base alguma em Verdade e método. Em Verdade e método, tradição e diálogo não representam nenhum sujeito coletivo. Trata-se simplesmente de um coletivo para designar cada vez um texto concreto (no sentido mais amplo de texto, incluindo uma obra de pintura, um edifício e até mesmo um acontecimento natural). O diálogo socrático de cunho platônico é sem dúvida um gênero muito especial de conversação, conduzida por um interlocutor e seguida pelo outro, queira ou não. Mas ele serve de modelo para qualquer diálogo, porque nele não se refutam as palavras mas a alma do outro. O diálogo socrático não é nenhum jogo esotérico de disfarces para ocultar um saber mais fundamental. É a verdadeira realização da anamnesis, da recordação pensante, a única recordação possível para a alma decaída na finitude do corpóreo e que se realiza como conversação. O sentido da unidade especulativa que se realiza na virtualidade da palavra é justamente o fato de essa não ser uma palavra única nem um enunciado construído, mas ultrapassar tudo que é passível de ser enunciado. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

A crítica histórica da Bíblia e seu exercício pela ciência do século XVIII e XIX criaram uma situação que exige constantemente um novo equilíbrio entre os princípios gerais da compreensão científica dos textos e as tarefas particulares da autocompreensão da fé cristã. É bom recordarmos alguns aspectos da história dessa busca de equilíbrio. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Na minha opinião, foi isso que marcou a orientação do debate hermenêutico mais recente. A própria fé nessa história deve ser compreendida como um acontecimento histórico, como um apelo [406] da palavra de Deus. Isso vale já para a relação do Antigo com o Novo Testamento. Também pode ser compreendido (segundo Hofmann, por exemplo) como a relação existente entre a profecia e sua realização, de modo que a própria profecia que fracassa historicamente só pode ser determinada em seu sentido a partir de sua realização. A compreensão histórica das profecias vétero-testamentárias não prejudica em nada o sentido do anúncio que elas recebem a partir do Novo Testamento. Ao contrário, o acontecimento salvífico anunciado no Novo Testamento só pode ser compreendido como um acontecimento verdadeiro quando sua profecia não é uma mera “reprodução do fato futuro”. É importante salientar sobretudo que o conceito de autocompreensão da fé, o conceito fundamental da teologia bultmanniana, possui um sentido histórico (e não idealístico). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Nisso baseia-se o conceito teológico da autocompreensão. Também esse conceito foi desenvolvido a partir da analítica transcendental da pre-sença de Heidegger. O ente cujo ser está em jogo, [407] pelo fato de compreender seu ser, apresenta-se como o caminho de acesso para a questão do ser. A própria mobilidade da compreensão do ser é demonstrada como histórica, como a constituição fundamental da historicidade. Isso é de grande importância para o conceito bultmanniano de autocompreensão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Esse conceito distingue-se do conceito de autoconhecimento, não somente no sentido psicologista de que no autoconhecimento conhece-se algo dado de antemão, mas também no sentido especulativo mais profundo, que determina o conceito de espírito do idealismo alemão, segundo o qual a autoconsciência perfeita conhece a si mesma no ser outro. Não há dúvidas de que o desenvolvimento dessa autoconsciência na Fenomenologia do Espírito de Hegel só se tornou possível em grande parte pelo reconhecimento do outro. O vir-a-ser do espírito autoconsciente é uma luta por reconhecimento. Ele é o que veio a ser. Por outro lado, no conceito da autocompreensão que diz respeito ao teólogo está em questão algo bem diferente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

O outro, do qual não podemos dispor, o extra nos, pertence à essência inalienável dessa autocompreensão. Do ponto de vista cristão, aquela autocompreensão que alcançamos em nossas reiteradas experiências com o outro e com os outros continua sendo incompreensão em um sentido essencial. Toda autocompreensão humana tem o seu limite absoluto na morte. Em sã consciência, não se poderá contrapor isso a Bultmann (Ott 163) e tampouco se poderá encontrar um sentido “conclusivo” no conceito bultmanniano de autocompreensão. Como se a autocompreensão da fé fosse justamente a experiência do fracasso da autocompreensão humana. Para compreender essa experiência de fracasso não precisamos considerá-la do ponto de vista cristão. Cada vez que se faz esse tipo de experiência aprofunda-se a autocompreensão humana. Em cada caso, trata-se de um “acontecimento” e o conceito de autocompreensão é sempre um conceito histórico. Mas segundo a doutrina cristã, deve haver um “último” fracasso. O sentido cristão do anúncio da fé, a promessa da ressurreição que liberta da morte, consiste justamente em [408] pôr um fim, pela fé em Cristo, nesse contínuo fracasso da autocompreensão frente à morte e à finitude. De certo, isso não significa uma fuga da própria historicidade. Significa, antes, que o evento escatológico não é nada mais que a própria fé. Em Geschichte und Eschatologie (História e escatologia), Bultmann escreve: “O paradoxo da existência cristã, sendo ao mesmo tempo escatológica, não-secular e histórica, tem a mesma significação que possui a frase de Lutero: Simul iustus simul peccator”. É nesse sentido que a autocompreensão se torna um conceito histórico. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A atual discussão hermenêutica que se apoia em Bultmann parece querer superá-lo apenas numa certa direção. Se para Bultmann o apelo do anúncio cristão se dirige ao homem, no sentido de que deve renunciar à vontade de dispor de si mesmo, a própria convocação desse apelo é de certo modo uma experiência privada que o homem faz enquanto dispõe de si mesmo. Nesse sentido, Bultmann interpretou o conceito heideggeriano da inautenticidade da pre-sença de uma maneira eminentemente teológica. Em Heidegger, porém, a inautenticidade não está ligada à autenticidade no mesmo sentido em que a decadência é tão própria à existência humana quanto a “decisibilidade”, e que o pecado (a falta de fé) lhe é tão próprio quanto a fé. Em Heidegger, a origem comum de autenticidade e inautenticidade ultrapassa o ponto de partida baseado na autocompreensão. É a primeira forma sob a qual, no pensamento de Heidegger, o próprio ser veio à fala em sua polaridade de desvelamento e velamento. Assim como Bultmann se apoia na analítica existencial da pre-sença, de Heidegger, para explicitar a existência escatológica do homem entre fé e falta de fé, pode-se também tomar esta dimensão da questão do ser a partir do ponto de vista teológico, na medida em que se traz para a “linguagem da fé” o significado central que possui a linguagem nesse acontecimento do ser. Essa dimensão aparece melhor explicitada no Heidegger tardio. Já na discussão hermenêutica feita por Ott, marcada por um tom altamente especulativo, encontramos uma crítica dirigida a Bultmann, muito próxima à Carta sobre o humanismo de Heidegger. Corresponde à sua própria tese positiva, p. 107: “A linguagem, na qual ‘vem à fala’ a realidade, na qual e com a qual se realiza a reflexão sobre a existência humana, essa linguagem acompanha a existência em todas as épocas de seu acontecer”. Creio que também as ideias hermenêuticas do teólogo Fuchs e Ebeling têm sua origem no Heidegger tardio, na medida em que priorizam decisivamente o conceito da linguagem. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Antes disso, na época do romantismo alemão, a hermenêutica se orientara pelas questões centrais da filosofia por obra de Schleiermacher. Seu pensamento, baseado na filosofia do diálogo, como a concebia sobretudo Friedrich Schlegel, parte do significado metafísico da individualidade e de sua subordinação e tendência ao infinito. Em seguida, com Wilhelm Dilthey a hermenêutica adquiriu seu caráter propriamente filosófico. Em 1966, publicou-se pela primeira vez, entre os materiais diltheyanos sobre a vida de Schleiermacher reunidos em um segundo volume, o grande estudo do jovem Dilthey sobre hermenêutica. Desse estudo só conhecíamos alguns fragmentos, graças ao tratado acadêmico de 1900. Entre outras coisas ele mostra como as bases da problemática filosófica da hermenêutica radicam-se no idealismo alemão, mas não somente na descrição dialética de Schleiermacher sobre a compreensão como ação recíproca de subjetividade e objetividade, de [426] individualidade e identidade, mas sobretudo na crítica de Fichte ao conceito dogmático de substância e nas possibilidades que ele abriu para se pensar o conceito de força histórica. Baseia-se também em Hegel, na medida em que eleva o espírito “subjetivo” ao caráter de espírito “objetivo”. Dilthey soube ver justamente a relevância pioneira da Historik (Historiografia) de Droysen para a metodologia das ciências do espírito, na medida em que Droysen aproveitou o legado idealista para uma autocompreensão adequada do método histórico. A herança dessa hermenêutica idealista continua viva até os nossos dias. Uma excelente apresentação sistemática e um desenvolvimento atual devemos ao historiador de direito Emilio Betti, cujo “manifesto” hermenêutico em língua alemã recolhe o resumo dessa tradição (cf. Betti). Ele fez sua exposição sistemática em uma obra muito abrangente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

O testemunho mais evidente em favor da aspiração a reconhecer a verdade, também à margem da ciência, é a experiência da arte. É mais fácil recusar as exigências da vita practica, uma vez que em nossa época de fé na ciência e sob a égide da especialização generalizada parece que se renunciou ao próprio direito em favor de levar uma vida “científica”. No que diz respeito à experiência da arte, tampouco faltaram tendências a reclamar sua cientificização (cf. Gehlen e Bense). Graças aos recursos da teoria moderna da informação, é possível de princípio e em boa medida substituir o arsenal da invenção artística com produtos de uma combinação técnica, denunciando a capacidade de juízo dos consumidores contemporâneos da arte (uma capacidade que nunca foi muito elevada). A experiência da arte, cujo calcanhar de Aquiles sempre foi sua convivência com o contemporâneo e que demonstra sua autêntica soberania na simultaneidade (Gleichzeitigkeit) que guarda com a arte sobrevivente de épocas passadas, guarda uma pretensão de verdade que limita a pretensão de validez exclusiva da ciência. Essa pretensão impõe à reflexão filosófica um tema que não se esgota na teoria da ciência. M. Dufrenne, na França, e L. Pareyson, na Itália, renovaram a problemática da estética a partir dessa perspectiva. Em Verdade e método Ius, eu próprio tentei legitimar a reivindicação filosófica da verdade, partindo da experiência da arte, frente à auto-interpretação ingênua da ciência moderna. A ciência da poesia ou a ciência da arte em geral não são as primeiras nem as únicas a integrar a poesia em nossa autocompreensão humana. A poesia, sobretudo, mas também qualquer outra arte que tenha algo a nos dizer, já está incorporada desde sempre em nossa autocompreensão e contribui em sua formação. Esse fato legitima a pretensão da hermenêutica filosófica de abordar essa autocompreensão em suas condições formais e de conteúdo e a elevá-la a conceito. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Quando em 1959 concluí o presente livro, estava em dúvida se este não tinha vindo “tarde demais”, ou seja, se o balanço do pensamento sobre a história da tradição empreendido nele já não se havia tornado quase supérfluo. Multiplicavam-se os sinais de uma nova onda de inimizades tecnológicas à história. Correspondia também a essa onda a crescente recepção da teoria da ciência e da filosofia analítica anglo-saxônicas assim como o novo impulso que tomaram as ciências sociais. E entre elas sobretudo a psicologia social e a linguística social não prometiam nenhum futuro para a tradição humanista das ciências românticas do espírito. Mas era essa a tradição da qual eu havia partido. Ela representava o solo experimental de meu trabalho teórico, mesmo que não representasse seu limite nem seu objetivo. Mas mesmo no âmbito das ciências histórico-clássicas do espírito já não se podia deixar de reconhecer uma mudança de estilo na direção dos novos meios metodológicos da estatística, da formalização, uma urgência no sentido de um planejamento científico e uma organização técnica de pesquisa. Estava-se abrindo caminho para uma nova autocompreensão “positivista”, estimulada pela adoção de métodos e questionamentos americanos e ingleses. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Quando comecei a elaborar uma hermenêutica filosófica, sua própria pré-história exigia que se tomasse as ciências “da compreensão” como ponto de partida. Mas acrescia-se a elas um complemento que até o momento não foi levado em conta. Refiro-me à experiência da arte. Isso porque ambas, a arte e as ciências históricas, são modos de experiência que implicam diretamente nossa própria compreensão da existência. A ajuda conceitual para a problemática da “compreensão”, formulada em sua amplitude correta, foi tomada da elaboração heideggeriana da estrutura existencial da compreensão, que ele chamou primeiramente de “hermenêutica da facticidade”, a auto-interpretação do fáctico, quer dizer, da existência humana real. Meu ponto de partida foi, então, a crítica ao idealismo e a suas tradições românticas. Vi claramente que as formas de consciência que havíamos herdado e adquirido, a consciência estética e a consciência histórica, eram figuras alienadas de nosso verdadeiro ser histórico e que as experiências originárias transmitidas pela arte e pela história não podiam ser compreendidas partindo-se daí. A distância tranquila que a consciência burguesa gozava de sua cultura ignorava o fato de que todos estamos implicados na situação e nela estamos em jogo. Por isso, a partir do conceito de jogo, busquei superar as ilusões da autoconsciência e os preconceitos do idealismo da consciência. O jogo nunca é um mero objeto, mas existe para aquele que participa dele, mesmo que seja ao modo de espectador. A inadequação dos conceitos de sujeito e objeto, já assinalada por Heidegger na exposição da pergunta pelo ser, formulada em Ser e tempo, poderia ser mostrada aqui de maneira concreta. O que mais tarde levou à “guinada” do pensamento em Heidegger, eu próprio procurei descrever como uma experiência-limite de nossa autocompreensão, como a consciência da história dos efeitos, que é mais ser do que consciência. O que assim formulei não era uma tarefa para a práxis [496] metodológica da arte e da ciência histórica nem tampouco se referia em primeira mão à consciência de método dessas ciências. Referia-se exclusivamente e em primeiro lugar à ideia filosófica da prestação de contas, da explicação. Até que ponto o método é uma garantia de verdade? A filosofia deve exigir da ciência e do método que reconheçam sua parcialidade no conjunto da existência humana e de sua racionalidade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

A meu ver, o programa aristotélico de uma ciência prática é o único modelo de teoria da ciência a partir donde se pode conceber as ciências “da compreensão”. A reflexão hermenêutica sobre as condições da compreensão põe de manifesto que suas possibilidades se articulam em uma reflexão formulada dentro da linguagem, que [500] nunca começa do zero e não pode ser esgotada. Aristóteles mostra que a razão prática e o conhecimento prático não podem ser ensinados como a ciência. Eles só são possíveis na praxis, o que significa, na vinculação interna ao ethos. Convém não esquecer esse ponto. O modelo da filosofia prática deve ocupar o lugar dessa theoria, cuja legitimação ontológica só poderia ser encontrada em um intellectus infinitus, do qual nossa experiência existencial nada sabe sem apoio numa revelação. Esse modelo também deve ser contraposto a todos aqueles que subordinam a racionalidade humana à ideia metodológica da ciência “anônima”. Frente ao aperfeiçoamento da autocompreensão lógica da ciência, essa parece-me ser a verdadeira tarefa da filosofia, inclusive e justamente frente à significação prática da ciência para nossa vida e sobrevivência. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.