Se continuarmos a perseguir essa ideia de Yorck, tornar-se-á ainda mais nítida a persistência dos motivos idealistas. O que o conde Yorck expõe aqui é a correspondência estrutural de vida e autoconsciência, que Hegel já desenvolvera na sua Fenomenologia. Já nos últimos anos de Hegel em Frankfurt, nos restos de manuscritos conservados, pode ser mostrada a importância central que possui o conceito da vida para a sua filosofia. Na sua Fenomenologia é o fenômeno da vida o que encaminha a decisiva transição de consciência à autoconsciência — e esse não é certamente um nexo artificial. Pois vida e autoconsciência têm realmente uma certa analogia. A vida se [257] determina pelo fato de que o ser vivo se diferencia a si mesmo do mundo em que vive e ao qual permanece unido, e se mantém nessa sua auto-diferenciação. A auto-conservação do ser vivo se nutre do que lhe é estranho. O fato fundamental de estar vivo é a assimilação. Por consequência, a diferenciação é ao mesmo tempo uma não-diferenciação. O estranho é apropriado. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Esse deslocar-se não é nem empatia de uma individualidade na outra, nem submissão do outro sob os próprios padrões, mas significa sempre uma ascensão a uma universalidade superior, que rebaixa tanto a particularidade própria como a do outro. O conceito de horizonte se torna aqui interessante, porque expressa essa visão superior mais ampla, que aquele que compreende deve ter. Ganhar um horizonte quer dizer sempre aprender a ver mais além do próximo e do muito próximo, não para apartá-lo da vista, senão que precisamente para vê-lo melhor, integrando-o em um todo maior e em padrões mais corretos. Quando se fala, com Nietzsche, dos muitos horizontes mutáveis, aos quais a consciência histórica ensina a se deslocar, não se trata de uma autêntica descrição da mesma. Aquele que aparta o olhar de si mesmo priva-se justamente do horizonte histórico, e a demonstração de Nietzsche das desvantagens da ciência histórica para a vida não diz respeito, na verdade, à consciência histórica como tal, mas à auto-alienação de que é vítima quando entende a metodologia da moderna ciência da história como sua própria essência. Já acentuamos que uma consciência verdadeiramente histórica sempre tem em vista também seu próprio presente, e o faz vendo tanto a si mesma como ao historicamente outro nas suas verdadeiras relações. É evidente que para ganhar para si um horizonte histórico requer um esforço pessoal. Najá sempre estamos tomados pelas esperanças e temores do que nos é mais próximo e saímos ao encontro dos testemunhos do passado a partir dessa pré-determinação. Por isso, deve ser uma tarefa constante impedir uma assimilação precipitada do passado com as próprias expectativas de sentido. Só então se chega a ouvir a tradição tal como ela pode fazer-se ouvir em seu sentido próprio e diferente. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Mas se na realidade não existem esses horizontes que se destacam uns dos outros, por que falamos então de fusão de horizontes e não simplesmente da formação desse horizonte único que remonta sua fronteira às profundidades da tradição? Colocar essa questão implica admitir a peculiaridade da situação, na qual a compreensão se converte em tarefa científica, e admitir que é necessário uma vez elaborar esta situação como situação hermenêutica. Todo o encontro com a tradição realizado com consciência histórica experimenta por si mesmo a relação de tensão entre texto e presente. A tarefa hermenêutica consiste em não ocultar esta tensão em uma assimilação ingênua, mas em desenvolvê-la conscientemente. Esta é a razão por que o comportamento hermenêutico está obrigado a projetar um horizonte que se distinga do presente. A consciência histórica é consciente de sua própria alteridade e por isso destaca o horizonte da tradição com respeito ao seu próprio. Mas, por outro lado, ela mesma não é, como já procuramos mostrar, senão uma espécie de superposição sobre uma tradição que continua atuante, e por isso ela recolhe em seguida o que acaba de destacar, com o fim de intermediar-se consigo mesma na unidade do horizonte histórico que alcança dessa maneira. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Mas será isso tudo? Se a linguagem também fixa preconceitos, significará que neles só não-verdade aparece? A linguagem não é somente isto. É a interpretação prévia pluriabrangente do mundo e por isso insubstituível. Antes de todo pensar crítico, filosófico-interventivo, o mundo já sempre se nos apresenta numa interpretação feita pela linguagem. O mundo se articula para nós no aprendizado de uma língua, na assimilação de nossa língua materna. Isso é muito mais uma primeira abertura do que um engano. Inclui, por certo, que o processo da formação conceptual, iniciado no âmbito dessa interpretação feita pela linguagem, nunca é um primeiro começo. Não equivale a forjar uma nova ferramenta a partir de um material apropriado, uma vez que se trata de um continuar a pensar na língua que falamos e na interpretação do mundo nele contida. Nunca se trata de um começar do zero. Sem dúvida, também a linguagem, pela qual se apresenta a interpretação do mundo, é um produto e resultado da experiência. “Experiência”, porém, não tem [80] aqui aquele sentido dogmático do dado imediato, cujo caráter de preconceito ontológico-metafísico foi exposto suficientemente pelo movimento filosófico de nosso século e possivelmente pelas suas duas estâncias, tanto no âmbito fenomenológico-hermenêutico quanto naquele de tradição nominalista. Experiência não é primeiramente sensação. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
Para isso lancei mão, sobretudo, da linguagem inerente a toda compreensão. Refiro-me a coisas muito simples e nada misteriosas. Trata-se simplesmente de que nossa consciência histórica, impregnada de conhecimento da alteridade, do estranhamento e mundos históricos alheios, ao aspirar manter separados seus próprios conceitos e os conceitos dessas épocas e mundos alheios, ao final do enorme esforço de conhecimento histórico acaba sempre conjugando ambas as conceptualidades. Um exemplo: a forma jurídica mais estranha que nos chegou das culturas mais antigas é considerada como um tipo de direito que encontra compreensão no espaço global do que é possível juridicamente. Não é uma mera manifestação de nossa consciência histórica a possibilidade de explicitar, por exemplo, como compreendemos os estranhos documentos babilónicos (ou quaisquer outros) como documentos jurídicos e a possibilidade de estar de acordo sobre eles. Não é somente que a distância histórica seja intermediada pelo caráter de linguagem (Sprachlichkeit), mas que essa mediação é prévia a qualquer consciência especificamente histórica. O lugar central do fenômeno da linguagem está não somente em presidir o método da interpretação histórica, mas em ser a forma como se transmitiu sempre o passado e as coisas passadas. Estamos habituados a considerar com um certo orgulho histórico como os escritores da Antiguidade ou da Idade Média, de modo ingenuamente tipológico ou moralista, viam nos testemunhos do passado confirmações diretas do que eles tomavam por verdadeiro. Costumamos dizer que careciam de sentido histórico. Mas o modo dessa compreensão ou assimilação diretamente moralizante ou articulado de qualquer outro modo da tradição passada é na realidade um acontecer de linguagem do mesmo que qualquer processo histórico de interpretação na ciência moderna. A diferença é que ali o vemos com máxima clareza, porque as palavras que se assumiu sem modificação alguma adquirem imediatamente um sentido muito diferente. O trato ingênuo com a tradição efetua sempre uma aplicação ao momento presente que não obstante possa nos parecer extremamente a-científica e portanto falsa e muitas vezes faz parte desses mal-entendidos fecundos a partir de onde vive o nexo tradicional das culturas. Algo dessa convergência conosco mesmos mantém-se vivo em todo conhecimento histórico. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.
Esse caminho de toda experiência para o conceito e o universal já foi descrito magistralmente por Aristóteles numa esplêndida imagem. Ele descreve como a partir de muitas percepções forma-se a unidade de uma experiência e como a partir da multiplicidade das experiências lentamente acaba formando-se algo como a consciência do universal que se conserva nesse fluxo de aspectos cambiantes da vida da experiência. Para tanto, Aristóteles encontrou uma bela comparação. Ele pergunta: Como se chega ao saber do universal? Pelo acúmulo de experiências, pelo fato de fazermos sempre de novo as mesmas experiências e reconhecê-las como tais? Certamente. Mas exatamente ali está o problema. O que significa reconhecê-las “como tais”? Quando se estabelece a unidade desse universal? A imagem dada por Aristóteles é a de um exército em fuga. Num determinado momento, um soldado olha para trás e começa a ver quão distante encontra-se o inimigo, dando-se conta que este já não está tão próximo. Arrisca-se então a parar um instante. Um segundo soldado também pára. O primeiro, o segundo, o terceiro ainda não representam o todo… e por fim acaba que todo o exército se detém. O mesmo ocorre com o aprendizado da fala. Não existe uma primeira palavra; e no entanto, aprendendo, crescemos na linguagem e no mundo. Não concluímos dali que tudo depende de como assimilamos e crescemos nas esquematizações prévias de nossa futura orientação no mundo mediante o aprendizado da linguagem e de tudo que aprendemos pela via do diálogo? Trata-se do processo que hoje chamamos de “socialização”: a maturação na conduta social. É necessariamente também uma assimilação de convenções, de uma vida social ordenada por convenções, estando sempre submetida à suspeita de ideologia. Assim como o aprendizado da fala no fundo é um constante exercício de expressões e de argumentos, também o conjunto que forma nossas convicções e opiniões é um caminho para movimentar-nos numa estrutura preformada de articulações significativas. O que há de verdade nisso? Como se chega a fluidificar por completo esse material pré-formado de expressões e formulações, de modo a alcançar aquela perfeição em que experimentamos a rara sensação de realmente ter dito o que tínhamos em mente? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 15.
A segunda objeção que se pode fazer aqui foi desenvolvida sobretudo por Habermas contra minhas próprias teorias. Trata-se da questão de saber se não se está subestimando os modos da experiência que se dão à margem da linguagem quando se afirma, como faço eu, que é pela linguagem que articulamos a experiência de mundo como uma experiência comum. Na verdade, a multiplicidade de línguas não é uma objeção. Essa relatividade não é do tipo que nos redime de uma proscrição ou sina, como sabe todo aquele que consegue pensar um pouco em outros idiomas. Mas não haverá outras experiências da realidade que não se estruturam como linguagem? Temos por exemplo a experiência da dominação e a experiência do trabalho. Esses são os dois argumentos desenvolvidos por Habermas contra a universalidade do postulado hermenêutico, com esses argumentos ele interpreta manifestamente o entendimento operado na linguagem como uma espécie de círculo fechado de um movimento imanente de sentido a que ele chama de herança cultural dos povos. Ora, a herança cultural dos povos é antes de tudo uma tradição de formas e artes de domínio, de ideais de liberdade, teleologías de ordem etc. Quem poderá negar que nossas possibilidades humanas mais próprias não consistem simplesmente no dizer? Deveríamos admitir que toda experiência do mundo estruturada na linguagem experimenta o mundo e não a linguagem. O que articulamos no debate acerca da linguagem não constitui um encontro com a realidade? O encontro com o domínio e a falta de liberdade leva à formação de nossas ideias políticas. O que experimentamos na assimilação dos processos de trabalho como um caminho de nossa busca humana é o mundo do trabalho, mundo das capacidades. Seria uma falsa abstração pensar que no domínio e no trabalho não encontramos sobretudo experiências concretas de nossa existência humana, nossas valorações, nosso diálogo conosco mesmos encontram sua realização concreta e sua função crítica. O fato de nos movermos no mundo de linguagem, de estarmos inseridos em nosso mundo através da experiência pré-formada pela linguagem não restringe nossa possibilidade crítica. Ao contrário. [204] Abre-se para nós a possibilidade de ultrapassar nossas convenções e todas as nossas experiências pré-esquematizadas, dialogando com outras pessoas, pessoas que pensam diferente, aceitando um novo exame crítico e novas experiências. No fundo, em nosso mundo a mesma questão está sempre presente: a conformação da linguagem em convenções, em normas sociais, atrás das quais escondem-se sempre também interesses econômicos e de poder. Mas esse é justamente o mundo de nossa experiência humana, onde dependemos de nosso julgamento, isto é, da possibilidade de nos colocar-nos criticamente frente a todas as convenções. Na verdade, devemos essa capacidade de julgamento ao fato de nossa razão ser virtualmente linguagem. Não é a linguagem que impede o exercício de nossa razão. É verdade que nossa experiência de mundo não se produz apenas no aprendizado da fala e nos exercícios de linguagem. Existem experiências de mundo que são anteriores à linguagem, como sustenta Habermas com base nas investigações de Piaget. Existe a linguagem dos gestos, das fisionomias, dos acenos, que nos unem, o riso e o choro, cuja hermenêutica foi ressaltada por H. Plessner. Existe o mundo construído pela ciência, no qual as linguagens exatas e específicas dos símbolos matemáticos acabam fornecendo uma base firme para a formação de teorias, capacitando-nos a fazer e a manipular, numa espécie de auto-apresentação do homo faber, da engenhosidade técnica do homem. Mas todas essas formas de auto-apresentação humana devem ser constantemente integradas naquele diálogo interno da alma consigo mesma. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 15.
Há uma pergunta que me inquieta desde vários decênios: O que pode significar hoje a opção a favor dos anciens? Essa opção está comprometida em todo caso com a hipoteca de que seu defensor não vê e pensa simplesmente com os olhos dos anciens, mas que como historiador atual vê essa visão e pensa esse pensamento. Assim o próprio Jaeger vê-se imerso numa problemática hermenêutica que o diferencia dos anciens pelo menos pelo fato de repudiar com feroz sarcasmo a hermenêutica contemporânea. Não se pode negar seriamente que uma investigação, como a que ele apresenta, [300] lança mão dos pressupostos da era pós-romântica, quer dizer, da consciência histórica. Isso significa que ele, como qualquer outro, pertence aos “modernos”. Isso não significa de modo nenhum que com esse reconhecimento se projetem no passado as teorias específicas da “hermenêutica recente”. Tampouco cabe negar aqui que a distância histórica que separa o cristianismo do tempo de Agostinho da cultura nômade da era dos patriarcas tenha constituído um verdadeiro problema hermenêutico para o próprio Agostinho. A assimilação religiosa dos escritos veterotestamentários pelo cristianismo não esteve livre de problemas. Nesse sentido, o De doctrina Christiana possui uma dimensão hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.
O aspecto hermenêutico não pode limitar-se, pois, às ciências hermenêuticas da arte e da história, nem ao trabalho com os “textos”, nem sequer, como uma ampliação, à própria arte. A universalidade do problema hermenêutico, reconhecida já por Schleiermacher, abarca todo o âmbito do racional, tudo aquilo que pode ser objeto de acordo mútuo. Quando o entendimento parece impossível por se falarem “linguagens diferentes”, a tarefa da hermenêutica ainda não terminou. E ali que ela alcança seu sentido pleno como a tarefa de encontrar a linguagem comum. Mas a linguagem comum nunca é algo já definitivamente dado. É uma linguagem que faz o jogo entre os falantes, que deve permitir o início de um entendimento, ainda que as “opiniões” distintas se oponham frontalmente. Nunca se pode negar a possibilidade de entendimento entre seres racionais. Nem sequer o aparente relativismo presente na diversidade das linguagens humanas constitui uma barreira para a razão, cuja palavra é comum a todos, como já sabia Heráclito. A aprendizagem de línguas estrangeiras e mesmo a aprendizagem da fala pela criança não significam a simples assimilação dos recursos de entendimento. Essa aprendizagem representa antes uma espécie de pré-esquematização da experiência possível e sua primeira aquisição. O conhecimento de uma língua é um caminho para o conhecimento do mundo. Não apenas essa “aprendizagem”, mas toda e qualquer experiência se realiza em um constante progresso comunicativo de nosso conhecimento do mundo. Num sentido muito mais profundo e geral que o expresso na fórmula [498] cunhada por August Boeck para a função do filólogo, a experiência representa sempre “conhecimento do conhecido”. Vivemos dentro de tradições, e essas não são uma esfera parcial de nossa experiência do mundo nem uma tradição cultural que consta apenas de textos e monumentos e que transmite um sentido expresso pela linguagem e documentado historicamente. É o próprio mundo que percebemos em comum e se nos oferece (traditur) constantemente como uma tarefa aberta ao infinito. Não é nunca o mundo do primeiro dia, mas algo que herdamos. Sempre que vivemos algo, sempre que superamos o estranho, sempre que se produzem iluminações, conhecimento, assimilação, se realiza o processo hermêutico de inserção na palavra e na consciência comum. Mesmo a linguagem monologai da ciência moderna adquire realidade social por essa via. Creio que nesse ponto a universalidade da hermenêutica, tão contestada por Habermas, entre outros, se mostra bem fundamentada. A meu ver, Habermas jamais superou um conceito idealista do problema hermenêutico e acaba reduzindo meu posicionamento, equivocadamente, à “tradição cultural” no sentido de Theodor Litt O amplo debate dessa questão aparece documentado no volume da Editora Suhrkamp Hermeneutik und Ideologiekritik. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.