Quem presenciou a enorme repercussão que causou o aparecimento do artigo programático de Rudolf Bultmann sobre a desmitologização do Novo Testamento e analisa a influência que continua exercendo até hoje sabe muito bem que ali estão em jogo problemas teológicos e sobretudo dogmáticos. Quem conhece o trabalho teológico de Bultmann sabe também que aquele artigo nada tem a ver com sensacionalismo. O artigo apenas formulou o que de há muito já vinha acontecendo no trabalho exegético do teólogo. É justamente esse o ponto em que uma reflexão filosófica pode contribuir para a discussão teológica. Sem dúvida, o problema da desmitologização possui também um aspecto hermenêutico geral. Os problemas teológicos não atingem o fenômeno hermenêutico da desmitologização como tal, mas sim o seu resultado dogmático. Trata-se de saber se Bultmann estabelece corretamente ou não os limites do que corresponde a uma desmitologização, a partir da perspectiva da teologia protestante. As explanações que se seguem buscam abordar o aspecto hermenêutico do problema sob um horizonte que, segundo me parece, ainda não alcançou suficiente validade. A pergunta que norteia essas explanações é se a compreensão do Novo Testamento pode se dar suficientemente a partir do conceito fundamental da autocompreensão da fé ou se ali atua também um momento totalmente diverso, que ultrapassa a autocompreensão do indivíduo e até seu ser-próprio. Para isso fazem-se necessárias algumas reflexões preparatórias capazes de assinalar lugar do aspecto hermenêutico. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.
Aquele que, como leigo, quiser tomar posição frente ao desenvolvimento do problema hermenêutico no âmbito da discussão jurídica não poderá aprofundar-se unicamente no trabalho jurídico. Na visão de conjunto, ele irá observar que a jurisprudência se afasta amplamente do chamado positivismo legal. Irá considerar também que uma das questões centrais será saber até que ponto a concretização do direito representa um problema jurídico independente. Kurt Engisch (1953) desenvolveu uma panorâmica desse problema. O fato de esse problema ser colocado em primeiro plano, contrapondo-se ao extremismo do direito positivista, é compreensível também do ponto de vista histórico, por exemplo, na Privatrechtsgeschichte der Neuzeit de Franz Wieacker ou no Methodenlehre der Rechtswissenschaft de Karl Larenz. Nos três âmbitos em que a hermenêutica de há muito desempenha algum papel, na ciência histórico-filológica, na teologia e na jurisprudência, pode-se constatar que a crítica ao objetivismo histórico e consequentemente ao “positivismo” deu uma nova significação ao aspecto hermenêutico. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Também no campo da jurisprudência, pelo menos no que diz respeito ao espaço de língua alemã, o aspecto hermenêutico adquire um novo impulso. Enquanto um problema de concretização do direito, o aspecto hermenêutico ocupa sempre seu lugar como complemento da dogmática jurídica (cf. a panorâmica do debate em Kurt Engisch). Além disso, foi sobretudo a obra de Th. Wiehweg e de K. Maihofer que iniciou uma nova reflexão sobre a peculiaridade do conhecimento jurídico, reivindicando para isso o antigo conceito retórico da tópica. Também a case law anglo-saxã apresenta um aspecto hermenêutico interessante. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
O aspecto hermenêutico porém parece-me indispensável também para a discussão estética de nossos dias. Precisamente depois que a “antiarte” tornou-se lema social, depois que o pop art, o Happening e algumas condutas tradicionais buscaram formas de arte contrárias às representações tradicionais da obra e sua unidade, esforçando-se por zombar de toda univocidade e compreensibilidade, a reflexão hermenêutica tem a tarefa de questionar o que está havendo com tais pretensões. A resposta a isso deverá indicar que o conceito hermenêutico de obra conservará sua plenitude, na medida em que nessa produção estejam incluídos identificabilidade, repetição e que essa repetição valha a pena. Na medida em que uma tal produção, enquanto é o que pretende ser, obedece à [477] relação hermenêutica fundamental de compreender algo como algo, a forma de concepção jamais será algo radicalmente novo para ela. Essa “arte” não se distingue em nada, na verdade, de certas formas de arte de caráter transitório, conhecidas desde antigamente, como, por exemplo, a arte da dança. Seu status e pretensão de qualidade são tais que, mesmo a improvisação, que jamais se repete, quer ser “boa”, o que significa, idealiter repetível e confirmando-se como arte na repetição. Aqui há uma fronteira bem precisa que distingue essa arte do mero truque ou do número do prestidigitador. Também nesse caso há algo a ser compreendido. Pode ser concebido, pode ser imitado, requer inclusive domínio de sua arte e requer ser bom. Mas, usando as palavras de Hegel, a sua repetição será “vã como um número de prestidigitação do qual já se saiba o truque”. As fronteiras existentes entre a obra de arte e o “número” podem até parecer difusas e fluentes e os contemporâneos podem até não saber se a atração de uma produção é efeito da surpresa ou um enriquecimento artístico. Não poucas vezes, os meios artísticos dão-se também como instrumentos em contextos de simples ações, como, por exemplo, em cartazes ou em outras formas de propaganda social ou política. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.
O aspecto hermenêutico não pode limitar-se, pois, às ciências hermenêuticas da arte e da história, nem ao trabalho com os “textos”, nem sequer, como uma ampliação, à própria arte. A universalidade do problema hermenêutico, reconhecida já por Schleiermacher, abarca todo o âmbito do racional, tudo aquilo que pode ser objeto de acordo mútuo. Quando o entendimento parece impossível por se falarem “linguagens diferentes”, a tarefa da hermenêutica ainda não terminou. E ali que ela alcança seu sentido pleno como a tarefa de encontrar a linguagem comum. Mas a linguagem comum nunca é algo já definitivamente dado. É uma linguagem que faz o jogo entre os falantes, que deve permitir o início de um entendimento, ainda que as “opiniões” distintas se oponham frontalmente. Nunca se pode negar a possibilidade de entendimento entre seres racionais. Nem sequer o aparente relativismo presente na diversidade das linguagens humanas constitui uma barreira para a razão, cuja palavra é comum a todos, como já sabia Heráclito. A aprendizagem de línguas estrangeiras e mesmo a aprendizagem da fala pela criança não significam a simples assimilação dos recursos de entendimento. Essa aprendizagem representa antes uma espécie de pré-esquematização da experiência possível e sua primeira aquisição. O conhecimento de uma língua é um caminho para o conhecimento do mundo. Não apenas essa “aprendizagem”, mas toda e qualquer experiência se realiza em um constante progresso comunicativo de nosso conhecimento do mundo. Num sentido muito mais profundo e geral que o expresso na fórmula [498] cunhada por August Boeck para a função do filólogo, a experiência representa sempre “conhecimento do conhecido”. Vivemos dentro de tradições, e essas não são uma esfera parcial de nossa experiência do mundo nem uma tradição cultural que consta apenas de textos e monumentos e que transmite um sentido expresso pela linguagem e documentado historicamente. É o próprio mundo que percebemos em comum e se nos oferece (traditur) constantemente como uma tarefa aberta ao infinito. Não é nunca o mundo do primeiro dia, mas algo que herdamos. Sempre que vivemos algo, sempre que superamos o estranho, sempre que se produzem iluminações, conhecimento, assimilação, se realiza o processo hermêutico de inserção na palavra e na consciência comum. Mesmo a linguagem monologai da ciência moderna adquire realidade social por essa via. Creio que nesse ponto a universalidade da hermenêutica, tão contestada por Habermas, entre outros, se mostra bem fundamentada. A meu ver, Habermas jamais superou um conceito idealista do problema hermenêutico e acaba reduzindo meu posicionamento, equivocadamente, à “tradição cultural” no sentido de Theodor Litt O amplo debate dessa questão aparece documentado no volume da Editora Suhrkamp Hermeneutik und Ideologiekritik. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.
É exatamente assim, e ninguém poderá negá-lo: a explicação conceitual não pode esgotar o conteúdo de uma produção poética. Isso pode ser reconhecido pelo menos desde Kant, ou inclusive [508] desde o descobrimento da verdade estética (cognitio sensitiva) por Baumgarten. Mas pode ter um especial interesse no aspecto hermenêutico. Frente à poesia, não é suficiente distinguir o elemento estético do teórico e liberá-lo da pressão das regras ou do conceito. A poesia continua sendo uma forma de discurso na qual os conceitos se relacionam entre si. A tarefa hermenêutica consiste então em aprender a determinar o lugar especial que ocupa a poesia no contexto de normatividade da linguagem, contexto em que sempre entra em jogo o elemento conceitual. Como se converte a linguagem em arte? Não formulo essa pergunta unicamente porque a arte da interpretação possa ser vista sempre sob formas do falar e do texto, nem porque na poesia se esteja às voltas com produtos de linguagem, textos. Os produtos poéticos são “produtos” em um sentido novo, são “textos” em sentido eminente. A linguagem aparece aqui em sua autonomia plena. Está e coloca-se de pé por si própria, enquanto que nos outros casos as palavras são superadas pela intenção que as ultrapassa. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.