Gadamer (VM): applicatio

Nota-se claramente que também outros teólogos pietistas, em face do dominante racionalismo, e no mesmo sentido de Oetinger, colocaram a applicatio em primeiro plano, como o demonstra o exemplo de Rambach, cuja hermenêutica, então muito influente, trata também da aplicação. Entretanto, o refreamento das tendências pietistas no final do século XVIII fez que a função hermenêutica do sensus communis se reduzisse a um mero corretivo: não pode ser correto o que contradiz o consensus quanto a sentimentos, julgamentos e conclusões, ou seja, o que contradiz o sensus communis. Em comparação com o significado que Shaftesbury atribui ao sensus communis para a sociedade e o Estado, mostra-se, nessa função negativa do sensus communis, o esvaziamento e a intelectualização do conteúdo, por que passou o conceito através do Aufklärung alemão. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Para começar, já teremos uma diferença interessante, caso minha impressão esteja correta, no fato de que Schleiermacher não fale tanto da incompreensão como de mal-entendido. O que ele tem em vista já não é mais a situação pedagógica da interpretação, que procura ajudar a compreensão do outro, do aluno. Ao contrário, nele a interpretação e a compreensão se interpretam tão intimamente como a palavra exterior e interior, e todos os problemas da interpretação são, na realidade, problemas da compreensão. Trata-se apenas da subtilitas intelligendi, não da subtilitas explicando (para não falar da applicatio). Mas, Schleiermacher faz, sobretudo, uma diferenciação expressa entre a praxis mais laxista da hermenêutica, segundo a qual a compreensão se realiza por si mesma, e a praxis mais estrita que parte da ideia de que o mal-entendido se produz por si mesmo. Sobre essa diferença fundamentou seu desempenho próprio: desenvolver, em lugar de uma “agregação de observações”, uma verdadeira doutrina da arte do compreender. E isso significa algo fundamentalmente novo. A dificuldade de compreensão e do mal-entendido já não são levados em conta somente como momentos ocasionais, mas como momentos integradores que se procura desconectar previamente. Schleiermacher chega inclusive a definir que: “a hermenêutica é a arte de evitar o mal-entendido”. Para além da ocasionalidade pedagógica da prática da interpretação, a hermenêutica se eleva à autonomia deum método, pois “o mal-entendido se produz por [189] si mesmo, e a compreensão é algo que temos de querer e de procurar em cada ponto”. Evitar o mal-entendido — “Todas as tarefas estão contidas nesta expressão negativa”. Sua resolução positiva está, para Schleiermacher, num cânon de regras gramaticais e psicológicas de interpretação, que se afastam por completo de qualquer liame dogmático de conteúdo, inclusive na consciência do intérprete. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Precisamos nos perguntar, porém, se a teologia e a teoria do direito não contribuem essencialmente para uma hermenêutica geral. Para o desenvolvimento dessa questão não é suficiente o imanente problema metodológico da teologia, da ciência jurídica e das ciências histórico-filológicas. Importa demonstrar os limites da autoconcepção do conhecimento histórico e devolver uma legitimidade limitada à interpretação dogmática . A isso se opõe certamente o conceito de neutralidade da ciência. Por essas razões, a [108] investigação que realizei em Verdade e método I partia de um âmbito experimental que, em certo sentido, pode ser chamado de dogmático, à medida que seu postulado exige reconhecimento absoluto e não pode ficar em suspenso: esta é a experiência da arte. Via de regra, aqui, compreender é reconhecer e fazer valer: “Conceber aquilo que nos toca” (E. Staiger). A objetividade de uma ciência da arte ou de uma ciência da literatura, que resguarda sua seriedade como esforço científico, permanece todavia sujeita à experiência da arte ou da poesia. Ora, na autêntica experiência da arte, a applicatio não pode vir separada da intellectio e da explicatio. Isso não deixa de ter consequências para a ciência da arte. Esse problema foi discutido primeiramente por H. Sedlmayr quando distingue entre uma primeira e uma segunda ciência da arte. Os complexos métodos de investigação da ciência da arte e da ciência da literatura, que se têm desenvolvido, precisam confirmar sempre de novo sua fecundidade ajudando a intensificar a clareza e a adequação da experiência da obra de arte. Nesse sentido, precisam intrinsecamente de integração hermenêutica. Assim, a estrutura de aplicação, com seu direito de cidadania herdado da hermenêutica jurídica, precisa adquirir um valor paradigmático. É certo que quando a compreensão histórico-jurídica segue à imposição de se reaproximar da compreensão dogmático-jurídica, suas diferenças não podem ser anuladas. Isso foi bem frisado por Betti e Wieacker. O sentido de applicatio, porém, que representa um elemento constitutivo de todo compreender, não é o de uma “aplicação” posterior e externa de algo que originalmente já seria para si. A aplicação de meios para objetivos predeterminados ou a aplicação de regras em nosso comportamento não significa, via de regra, a submissão de uma situação dada (Gegebenheit) autônoma, em si, como por exemplo uma coisa conhecida “de maneira puramente teórica”, a um objetivo prático. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.