Gadamer (VM): anúncio

Vejamos agora o caso da hermenêutica teológica tal como [336] foi desenvolvido pela teologia protestante, na perspectiva de nosso problema. Aqui se pode apreciar claramente uma autêntica correspondência com a hermenêutica jurídica, já que também aqui a dogmática não reveste nenhum caráter de primazia. A verdadeira concreção da proclamação tem lugar na prédica, assim como a do ordenamento legal tem lugar no juízo. Mas aqui há uma importante diferença. Ao inverso do que ocorre no juízo jurídico, a prédica não é uma complementação produtiva do texto que interpreta. A mensagem da salvação não experimenta, em virtude da prédica, nenhum incremento de conteúdo que se possa comparar com a capacidade complementadora do direito que convém à sentença do juiz. Nem sequer se pode dizer que a mensagem de salvação só obtenha uma determinação precisa a partir da ideia do pregador. Ao contrário do que ocorre com o juiz, o pregador não fala ante a comunidade com autoridade dogmática. É verdade que na prédica se trata de interpretar uma verdade vigente. Mas esta verdade é anúncio, e o que se consegue não depende da ideia do pregador, mas da força da própria palavra, que pode chamar à conversão inclusive através de uma má prédica. O anúncio não pode ser separado de sua realização. Toda fixação dogmática da doutrina pura é secundária. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus e isso significa que a Escritura mantém uma primazia absoluta face à doutrina dos que a interpretam. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Todavia, a tarefa de concretizar um comum e de aplicá-lo parece ter nas ciências históricas do espírito uma função muito diferente. Se se pergunta o que significa nelas a aplicação e como tem lugar no tipo de compreensão que exercem as ciências do espírito, poderemos admitir, no máximo, que há um determinado tipo de tradição, face ao qual nos comportamos à maneira da aplicação, do mesmo modo que o jurista com respeito à lei e o teólogo com respeito ao anúncio. Tal como o juiz procura encontrar a justiça e o pregador anunciar a salvação, e tal qual em ambos os casos o sentido da mensagem somente se completa na promulgação e o anúncio, respectivamente, assim, também com relação a um texto filosófico ou a uma poesia ter-se-á de reconhecer que essa classe de textos exige do leitor, e de quem procura compreendê-los, um fazer próprio e que em face deles não se está em liberdade para nos mantermos numa distância histórica. Ter-se-á de admitir que a compreensão, aqui, implica sempre a aplicação do sentido compreendido. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

É verdade que, face ao caráter linguístico, o caráter escrito parece um fenômeno secundário. A linguagem dos signos da escrita tem referência com a verdadeira linguagem do discurso. Não obstante, para a essência da linguagem não é de modo algum secundário o fato de que seja suscetível de se tornar escrita. Pelo contrário, essa possibilidade de ser escrito repousa sobre o fato de que o próprio discurso participa da idealidade pura do sentido que se comunica nele. Na escrita, o sentido do falado está aí por si mesmo, inteiramente livre de todos os momentos emocionais da expressão do anúncio. Um texto não quer ser entendido como manifestação vital, mas unicamente com respeito ao que diz. O caráter escrito é a idealidade abstrata da linguagem. Por isso, o sentido de uma notação escrita é fundamentalmente identificável e repetível. Somente aquilo que na repetição permanece idêntico é o que realmente estava posto na sua notação escrita. Com isso torna-se claro, ao mesmo tempo, que “repetir” não pode ser tomado aqui em sentido estrito; não se refere à recondução a um primutn originário, em que algo foi dito ou escrito, enquanto tal. A leitura compreensiva não é repetição de algo passado, mas participação num sentido presente. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Empreguei o conceito de simultaneidade para possibilitar um modo de aplicação desse conceito, que se nos tornou evidente através de Kierkegaard. Foi ele quem caracterizou a verdade do anúncio cristão como “simultaneidade”. Para ele a verdadeira tarefa do ser cristão apresentava-se como a subsunção da distância do passado pela simultaneidade. Aquilo que, em versão teológica, Kierkegaard formulou como paradoxo vale, quanto ao objeto, para toda nossa relação com a tradição e o passado. Creio que a [56] linguagem desempenha a função de uma síntese constante entre o horizonte do passado e o do presente. Compreendemo-nos uns aos outros, à medida que conversamos, também quando nos desentendemos, e por fim, à medida que utilizamos as palavras que expõem diante de nós, compartilhadas, as coisas por elas referidas. A linguagem tem sua própria historicidade. Cada um de nós tem sua própria linguagem. Não existe, em absoluto, o problema de uma linguagem comum para todos. Existe apenas a maravilha de que, apesar de termos todos uma linguagem diferente, podemos nos compreender além dos limites dos indivíduos, dos povos e dos tempos. Essa maravilha não pode certamente ser dissociada do fato de que também as coisas, sobre que falamos, apresentam-se diante de nós como algo comum, quando falamos sobre elas. O modo de ser de uma coisa só se expressa quando falamos sobre ela. O que entendemos por verdade — revelação, desocultação das coisas — tem, portanto, sua própria temporalidade e historicidade. Em todo o nosso esforço por alcançar a verdade, descobrimos admirados que não podemos dizer a verdade sem interpelação e sem resposta e assim sem o caráter comum do consenso obtido. O mais admirável, porém, na essência da linguagem e do diálogo é que eu próprio não estou ligado ao que penso quando falo com outras pessoas sobre algo, e que nenhum de nós abarca toda a verdade em seu pensar, mas que a verdade no seu todo, no entanto, pode abarcar a todos nós em nosso pensar individual. Uma hermenêutica adequada à nossa existência histórica deveria assumir a tarefa de desenvolver as relações semânticas entre linguagem e diálogo, que nos atingem e ultrapassam. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Como costuma ocorrer com as palavras derivadas do grego e adotadas em nossa linguagem científica, o título “hermenêutica abarca diversos níveis de reflexão. Hermenêutica significa em primeiro lugar praxis relacionada a uma arte. Sugere a “tekhne” como palavra complementaria. A arte, em questão aqui, é a arte do anúncio, da tradução, da explicação e interpretação, que inclui naturalmente a arte da compreensão que lhe serve de base e que é sempre exigida quando o sentido de algo se acha obscuro e duvidoso. Já no uso mais antigo da palavra, detecta-se uma certa ambiguidade. Hermes é chamado o mensageiro divino, aquele que transmite as mensagens dos deuses aos homens: No relato de Homero, ele costuma executar verbalmente a mensagem que lhe fora confiada. Mas frequentemente, e em especial no uso profano, a tarefa do hermeneus consiste em traduzir para uma linguagem acessível a todos o que se manifestou de modo estranho ou incompreensível. Assim, a tarefa da tradução sempre tem uma certa “liberdade”. Pressupõe a plena compreensão da língua estrangeira e, mais do que isso, a compreensão da verdadeira intenção de sentido do que se manifestou. Quem quiser se fazer compreender como intérprete deve trazer novamente à fala este sentido da intenção. A contribuição que a “hermenêutica” pode fazer é sempre essa transferência de um mundo para outro, do mundo dos deuses para o dos homens, do mundo de uma língua estrangeira para o mundo da língua própria (os tradutores humanos podem traduzir somente para sua própria língua). Visto, porém, que a tarefa própria do traduzir consiste em “executar” algo, o sentido de hermeneuein oscila entre tradução e diretiva, entre mera comunicação e requisito de obediência. E certo que, em sentido neutro, hermeneia costuma significar “enunciação de pensamentos”, todavia é significativo o fato de que, para Platão, não é qualquer expressão de pensamento que possui o [93] caráter de diretiva, mas somente o saber do rei, do arauto etc. A proximidade da hermenêutica com a mântica não pode ser compreendida de modo diverso: a arte de transmitir a vontade do deus segue paralela à arte de adivinhá-la ou de prever o futuro mediante sinais. Mesmo assim, quando Aristóteles trata da questão do logos apophantikos, no tratado Peri hermeneias, ele só tem em mente o sentido lógico do enunciado, concentrando-se no outro componente semântico, puramente cognitivo. De modo semelhante, desenvolve-se no mundo grego posterior um sentido de hermeneia e hermeneus puramente cognitivo, que pode significar “explicação erudita”, “comentador” e “tradutor”. É claro que, enquanto arte, encontram-se ligados à hermenêutica restos herdados da esfera sacral: é a única arte cuja palavra deve ser estabelecida como padrão de medida, que se acolhe com admiração porque pode compreender e explicitar o que oculta, seja em discursos estranhos, seja na convicção inexpressa de outro. Trata-se, portanto, de uma ars: uma técnica, como a oratória, a arte de escrever ou a aritmética. É mais aptidão prática do que propriamente “ciência”. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Em sentido teológico, a hermenêutica significa a arte de interpretar corretamente a Sagrada Escritura, que sendo de tempos muito remotos despertava, já nos tempos da patrística, uma consciência metodológica, sobretudo no livro De doctrina Christiana de Agostinho. A tarefa de uma dogmática cristã viu-se determinada pela tensão entre a história específica do povo judeu, interpretada no Antigo Testamento como história da salvação, e o anúncio universal de Jesus no Novo Testamento. Aqui a reflexão metodológica deveria ajudar a criar soluções. Em De doctrina Christiana, utilizando-se de ideias neoplatônicas, Agostinho ensina a elevar o espírito desde um sentido literal e moral para um sentido espiritual. Com isso resolve o problema dogmático, reunindo sob um ponto de vista unitário a antiga herança hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

A hermenêutica recebeu um novo impulso com a Reforma, quando esta apregoava a volta à literalidade da Sagrada Escritura e os reformadores polemizaram contra a tradição da doutrina eclesiástica e o tratamento que esta dava aos textos com os métodos dos vários sentidos da Escritura. Recusava-se especialmente o método alegórico e restringiu-se a compreensão alegórica aos casos em que o sentido figurado a justificava, como por exemplo nos discursos de Jesus. Junto com isso desenvolveu-se uma nova consciência de método que se alardeava ser objetiva, ligada ao objeto e livre de todo arbítrio subjetivo. No entanto, a motivação principal era de caráter normativo: na hermenêutica teológica assim como na hermenêutica humanística da Idade Moderna, o que importa é a correta interpretação daqueles textos que contêm o que realmente é decisivo, e que se deve recuperar. Nesse sentido, a motivação do esforço hermenêutico não é tanto, como mais tarde em [95] Schleiermacher, a dificuldade de compreender uma tradição e os mal-entendidos a que esta pode dar lugar, mas antes buscar trazê-la a uma nova compreensão, rompendo ou transformando uma tradição vigente pela descoberta de suas origens esquecidas. Deve-se resgatar e renovar seu sentido originário, encoberto e desfigurado. A hermenêutica, voltando às fontes originárias, busca alcançar uma nova compreensão daquilo que se havia corrompido por distorção, deslocamento ou mau uso: A Bíblia, pela tradição magisterial da Igreja; os clássicos, pelo latim bárbaro da escolástica; o direito romano, pela jurisprudência regionalista etc. O novo esforço deveria não apenas ser no sentido de buscar compreender de modo mais correto, mas também de recuperar a vigência do paradigmático, no mesmo sentido como se fosse o anúncio de uma mensagem divina, a interpretação de um oráculo ou de uma lei preceptiva. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Passando pelo historicismo radical e sob o impulso da teologia dialética (Barth, Thurneysen) e desembocando no tema da desmitologização, foi a reflexão hermenêutica de R. Bultmann que fundamentou uma autêntica mediação entre a exegese histórica e a exegese dogmática. Isso representou, sem dúvida, um marco histórico. O dilema entre a análise histórico-individualizante e o anúncio do querigma permanece, do ponto de vista teórico, insolúvel; o conceito de “mito” usado por Bultmann mostrou desde logo ser [102] uma construção carregada de pressupostos, baseada no Iluminismo moderno. Não obstante, o debate sobre a desmitologização, apresentado com muito acerto por G. Bornkamm, continua a despertar um grande interesse hermenêutico geral, visto reapresentar a antiga tensão entre dogmática e hermenêutica numa versão contemporânea. Bultmann distanciou sua auto-reflexão teológica do idealismo para aproximá-la do pensamento de Heidegger. Isso evidencia a influência direta do postulado de Karl Barth e da teologia dialética que tornaram consciente a problemática humana e teológica do “falar sobre Deus”. Bultmann procurava uma solução “positiva”, isto é, passível de ser legitimada metodologicamente, sem renunciar a nenhuma das conquistas da teologia histórica. A filosofia existencial de Heidegger, presente em Sere tempo, parecia-lhe oferecer nesse caso uma posição antropológica neutra, a partir da qual a autocompreensão da fé poderia encontrar uma fundamentação ontológica. O caráter de devir da pre-sença no modo da autenticidade e, no seu lado oposto, a decadência no mundo, podiam ser interpretados teologicamente com os conceitos de fé e pecado. Mas essa interpretação não seguia a linha da exposição heideggeriana da questão do ser, sendo uma reinterpretação antropológica. Não obstante, a relevância universal da questão de Deus para a existência humana, fundamentada por Bultmann na “autenticidade” do poder-ser, alcançou um ganho hermenêutico real. Consistia, sobretudo, no conceito da compreensão prévia — sem falar nas abundantes contribuições exegéticas dessa consciência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Sem dúvida não é fácil para a autoconsciência metodológica da investigação histórica firmar e manter esse aspecto do tema em questão, pois as ciências humanas já estão marcadas pela ideia moderna de ciência. Não obstante a crítica romântica ao racionalismo inerente ao Iluminismo tenha rompido com o predomínio do direito natural, os caminhos da investigação histórica concebem-se como passos rumo a um esclarecimento histórico total do homem a respeito de si próprio, tendo como consequência a dissolução dos últimos restos dogmáticos da tradição greco-cristã. O objetivismo histórico que corresponde a esse ideal tira sua força de uma ideia de ciência sustentada no subjetivismo filosófico da modernidade. A preocupação de Droysen foi defender-se contra esse subjetivismo. Todavia, foi somente com a crítica radical ao subjetivismo filosófico iniciada com o Ser e tempo, de Heidegger, que se pôde fundamentar filosoficamente a posição histórico-teológica de Droysen e apresentar no lugar de Dilthey, que se acha bem mais dependente do conceito moderno de ciência, o Conde York von Wartenburg como o verdadeiro interlocutor na herança do luteranismo. A partir do momento em que Heidegger deixa de considerar a historicidade da pre-sença como uma limitação de suas possibilidades de conhecimento e como uma ameaça ao ideal da objetividade científica para enquadrá-la de modo positivo na problemática ontológica, o conceito de compreensão, que a escola histórica havia elevado como método, transformou-se em conceito filosófico universal. Segundo Ser e tempo, a compreensão é o modo de realização da historicidade da própria pre-sença. O seu caráter de porvir, o caráter fundamental de projeto, conveniente à temporalidade da pre-sença, delimita-se pela outra determinação do estar-lançado, pela qual [125] não se designam apenas os limites de uma posse soberana de si mesmo mas abrem-se e determinam-se também as possibilidades positivas que são as nossas. O conceito de autocompreensão, legado em certo sentido pelo idealismo transcendental e ampliado em nossa época por Husserl, em Heidegger adquire pela primeira vez sua verdadeira historicidade, contribuindo assim também para os interesses teológicos na formulação da autocompreensão da fé. Pois o que pode liberar a autocompreensão da fé da falsa pretensão de uma certeza gnóstica de si mesma não é o soberano ser mediado por si mesmo da autoconsciência mas sim a experiência de si mesmo que acontece com cada um, e, do ponto de vista teológico, acontece particularmente no anúncio da pregação. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Aqui vemo-nos remetidos diretamente à Antiguidade e à relação específica entre mito e logos, que se encontra no início do pensamento grego. O esquema corrente do Iluminismo, segundo o qual o processo de desencantamento do mundo leva necessariamente do mito para o logos, parece-me um preconceito moderno. Tomando por base esse esquema, torna-se incompreensível, p. ex., como a filosofia ática pôde se opor às tendências do Iluminismo grego e estabelecer uma reconciliação secular entre a tradição religiosa e o pensamento filosófico. Devemos a Gerhard Kruger o magistral esclarecimento das pressuposições religiosas do filosofar grego e sobretudo platônico. A história de mito e logos nos primórdios do mundo grego tem uma estrutura bem mais complexa do que faz supor o esquema do Iluminismo. Frente a essa realidade podemos compreender a grande desconfiança que alimentava a investigação científica da Antiguidade frente ao valor religioso das fontes do mito e a preferência que demonstra pelas formas estáveis da tradição no culto. É que a capacidade de transformação inerente ao mito, sua abertura para sempre novas interpretações por parte dos poetas, acaba obrigando a reconhecer que se trata de uma falsa questão perguntar em que sentido esse mito antigo era objeto de “crença” e se, uma vez tendo entrado no jogo poético, faz sentido se acreditar no mito. Na verdade, o mito está tão intimamente aparentado com a consciência filosófica, que mesmo a explicação filosófica do mito na linguagem do conceito não acrescenta nada de essencialmente novo àquela alternância viva entre descobrimento (entdeckung) e velamento (verhullung), entre temor reverente e liberdade de espírito, que acompanha toda a história do mito grego. Devemos ter isso em mente se quisermos compreender corretamente o conceito de mito implícito no programa de desmitologização de Bultmann. O que Bultmann chama de imagem mítica do mundo e seu contraste com a imagem científica de mundo, que se nos apresenta como verdadeira, parece não ter o caráter definitivo que se lhe atribuiu no debate sobre esse programa. No fundo, a relação de um teólogo cristão com a tradição bíblica não é muito diferente da relação de um grego com seus mitos. A formulação casual e em certo sentido ocasional do conceito de desmitologização proposta por Bultmann, na verdade a suma de toda sua teologia exegética, pode ter tudo, menos um sentido iluminista. O que o aluno de ciência histórica da Bíblia procura na tradição bíblica, antes de qualquer coisa é o que se afirma contra todo Iluminismo histórico, ou seja, o que constitui o verdadeiro suporte do anúncio, do querigma, o que representa o verdadeiro chamado da fé. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Creio que algo semelhante se deixa aplicar também no trato com os textos e com isso também na compreensão do anúncio conservado na Sagrada Escritura. A vida da tradição e principalmente a do anúncio consiste nesse jogo da compreensão. Enquanto um texto permanecer mudo, sua compreensão ainda não começou. Um texto pode, no entanto, começar a falar (não estamos falando das condições necessárias para que isso ocorra). Nesse momento o texto não se limita a dizer sua palavra, sempre a mesma, numa rigidez inerte, mas dá novas respostas a quem lhe faz perguntas, apresentando sempre novas perguntas a quem lhe propõe respostas. Compreender textos significa manter com eles uma espécie de diálogo. Isso se confirma pelo fato de que no trato concreto com um texto a compreensão só se dá por completo quando o que se diz no texto pode ser traduzido para a própria linguagem do intérprete. A interpretação pertence à unidade essencial da compreensão. O que se diz a alguém deve ser acolhido dentro de si mesmo, de modo a falar e encontrar respostas nas próprias palavras de sua própria linguagem. Isso se aplica perfeitamente ao texto do anúncio evangélico, uma vez que este só pode ser compreendido verdadeiramente quando aparece como o que se diz a si mesmo. É só na pregação que a compreensão e interpretação do texto alcança sua realidade plena. O que está a serviço imediato do anúncio não é o comentário explicativo nem o trabalho exegético do teólogo, mas a pregação. E isso porque a pregação não se limita a transmitir a compreensão do que diz a Sagrada Escritura à comunidade, mas deve ela mesma testemunhá-la. A plenitude própria da compreensão não se encontra na pregação como tal, mas no modo de acolher a pregação como chamado que se dirige a todos. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Se o que ocorre ali é uma autocompreensão, trata-se então de uma autocompreensão muito paradoxal, para não dizer negativa, onde nos vemos chamados à conversão. De certo, essa autocompreensão não estabelece um critério para a interpretação teológica do Novo Testamento. Além do mais, os próprios textos do Novo Testamento já são interpretações da mensagem salvífica e mediadores da boa-nova sem nenhuma pretensão de ser compreendidos em si mesmos. Terá sido essa condição que lhes conferiu sua liberdade expressiva, tornando-os testemunhos desinteressados? Por mais gratos que sejamos às recentes investigações teológicas a respeito da intenção teológica dos próprios autores do Novo Testamento, o anúncio do Evangelho fala por intermédio de todas essas mediações, de maneira semelhante ao que ocorre com uma lenda que continua a ser transmitida ou a uma tradição mítica, constantemente transformada e renovada pela grande poesia. Parece-me que a verdadeira realidade do exercício hermenêutico abrange a autocompreensão do intérprete e do interpretado. Nesse sentido, a “desmitologização” não se dá apenas na atividade do teólogo. Ela se dá na própria Bíblia. Todavia, nem numa nem em outra a “desmitologização” pode ser garantia segura para uma compreensão correta. O verdadeiro evento da compreensão ultrapassa tudo que pode ser produzido por meio do esforço metodológico e do autocontrole crítico com vistas à compreensão das palavras do outro. Ultrapassa também tudo aquilo de que nós próprios podemos ter consciência. De todo diálogo, pode-se dizer que através dele surge outra coisa diferente. A palavra de Deus que convoca para a conversão e nos promete uma melhor compreensão de nós mesmos não pode ser compreendida como um objeto que se encontra ali, à nossa frente. Não somos nós mesmos que compreendemos, ali. É sempre um passado que nos permite dizer: compreendi. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Deixando-se de lado até que ponto havia uma consciência judaica da história apenas modificada e universalizada com a experiência cristã da história, pode-se dizer que, em sua convicção cristã, a nova consciência de história também não admite uma ordem na história. Esta ordem existe como uma ordem providencial, como plano de salvação. Nos constantes vaivéns e altos e baixos do acontecer, o sentido do todo escapa à nossa faculdade cognitiva finita e limitada porque não vemos as intenções e a meta última da totalidade. A fé na salvação do anúncio cristão implica essencialmente que o aparentemente desordenado possui uma ordem superior e que nesse sentido a história é uma ordem salvífica que, não obstante se possa apenas vislumbrar, é indiscutivelmente real na providência de Deus. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

A configuração mais formal em que o dito se mostra no não-dito é pois a referência à pergunta. Deve-se perguntar se essa forma de implicação abrange todas as outras, se existem outras formas de implicação. Será que vale, por exemplo, também para todo o âmbito de enunciados, que em sentido estrito não são enunciados porque sua intenção própria e fundamental não é a informação e nem a comunicação de um certo estado de coisas, os enunciados portanto que possuem um outro sentido funcional? Refiro-me a fenômenos da linguagem como a maldição ou a bênção, o anúncio redentor de uma tradição religiosa, uma ordem ou um lamento. São todos modos de falar que revelam seu sentido próprio no fato de não poderem ser repetidos, no fato de que a sua assinatura, isto é, sua transformação num enunciado informativo, do tipo: “Digo que te amaldiçoo”, não apenas modifica totalmente o sentido do enunciado, no caso, a maldição, como a destrói inteiramente. A pergunta é a seguinte: Será que também nesse caso a frase é uma resposta a uma pergunta motivada? Será compreensível apenas desse modo? Certamente que o sentido de todas essas formas de enunciado, da maldição à bênção, só pode ser preenchido quando recebe de um contexto de ação sua determinação de sentido. Uma vez que a circunstância do seu dito pede para ser elaborada na compreensão, não é possível negar que também essas formas de enunciado possuem o caráter de ocasionalidade. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

Decerto, a ideia aristotélica de uma filosofia prática não sobreviveu em sua globalidade, mas apenas em seu aspecto político. A filosofia prática política foi se aproximando do conceito de uma técnica ao pretender oferecer uma espécie de competência de base filosófica ao serviço da razão legisladora. Esse esquema pôde integrar-se ainda, durante um período, no pensamento científico da época moderna. A filosofia moral grega, ao contrário, marcou a posteridade e sobretudo a Idade Moderna não tanto em sua forma aristotélica mas em sua versão estóica. Mesmo assim, a retórica de Aristóteles exerceu pouca influência na tradição da retórica antiga. Para os mestres da retórica e como guia para uma oratória perfeita era demasiado filosófica. Mas justamente em virtude de seu “caráter filosófico”, que a associava, como disse Aristóteles, à dialética e à ética (peri ta ethe pragmateia, Thet. 1356 a26), encontrou seu novo momento na época do humanismo e da Reforma. Interessa-nos conhecer aqui o uso que os reformadores e sobretudo Melanchton fizeram da retórica aristotélica. Essa passou da arte de “fazer” discursos para a arte de acompanhar um discurso, compreendendo-o, quer dizer, passou para a arte da hermenêutica. Aqui confluíram duas correntes: A nova escrita e a nova leitura, iniciadas com a invenção da imprensa, e a virada teológica da Reforma frente à tradição e na direção do princípio bíblico. O lugar central da Sagrada Escritura para o anúncio do Evangelho determinou sua tradução para as línguas vernáculas, e também a doutrina do sacerdócio geral suscitou um uso da Escritura que precisava de uma nova direção. Pois, quando os leitores da Sagrada Escritura eram leigos, já não se tratava de pessoas instruídas na leitura por tradições artesanais de certas profissões nem dispunham de preleções discursivas que lhes facilitassem a compreensão. O leitor não encontra ajuda na impressionante retórica do jurista nem na do pastor de almas, nem na do literato. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Rómerbrief (Epístola aos Romanos) de Karl Barth, marcada pela recusa total a uma reflexão metodológica, representa uma espécie de manifesto hermenêutico. O fato de Barth não concordar com a tese da desmitologização do Novo Testamento, de Rudolf Bultmann, não se deve tanto ao interesse temático, segundo me parece, mas à vinculação da investigação histórico-crítica com a exegese teológica e ao fato de buscar o apoio da filosofia (Heidegger) para a auto-reflexão metodológica. É isso que impede Barth de identificar-se com os procedimentos de Bultmann. Nesse sentido, tornou-se uma necessidade objetiva não tanto recusar pura e simplesmente a herança da teologia liberal, mas antes dominá-la. A discussão atual do problema hermenêutico no âmbito da teologia — e não apenas a do problema hermenêutico — vem marcada pela discussão e confronto da intenção puramente teológica com a historiografia crítica. Alguns acham que, diante dessa situação, é necessário defender novamente esse questionamento histórico; outros, como mostram os trabalhos de Ott, Ebeling e Fuchs, colocam em [392] primeiro plano não tanto o caráter investigativo da teologia, mas seu auxílio hermenêutico para o anúncio. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Creio que a discussão atual sobre o problema hermenêutico em parte alguma é tão acirrada quanto no âmbito da teologia protestante. Em certo sentido, também aqui, como ocorre na hermenêutica jurídica, estão em questão interesses que ultrapassam a ciência. O que significa dizer, interesses de fé e de sua correta proclamação. Como consequência temos que a discussão hermenêutica se vê envolta em questões exegéticas e dogmáticas, frente às quais o leigo não pode tomar posição. Mas como ocorre na hermenêutica jurídica, também aqui mostra-se claramente a primazia dessa situação: O “sentido” dos textos a serem compreendidos não pode ser restrito à opinião imaginativa de seu autor. Em toda a grandiosa e monumental obra de Karl Barth, sua Kirchliche Dogmatik (Dogmática eclesial), encontramos contribuições implícitas ao problema hermenêutico, mesmo que nunca apareçam de forma expressa. Com Rudolf Bultmann, as coisas se dão de maneira um pouco diferente, visto que demonstra grande interesse pelas considerações metodológicas e em suas obras completas tomou posição expressa, por diversas vezes, frente ao problema da hermenêutica. Mas, mesmo no caso de Bultmann, o centro de gravidade de todo questionamento conserva um cunho eminentemente teológico, não somente no sentido de que seu trabalho exegético representa o solo experimental e o âmbito de aplicação de seus princípios hermenêuticos, mas também e sobretudo no sentido de que a grande discussão teológica atual, a questão da desmitologização do Novo Testamento, contém muito mais tensões dogmáticas do que o que seria conveniente a reflexões metodológicas. Estou convencido de que o princípio da desmitologização contém um aspecto puramente hermenêutico. Segundo Bultmann, esse esquema não serve para se decidir previamente sobre questões dogmáticas, por exemplo, sobre quantos conteúdos dos escritos bíblicos são essenciais para o anúncio cristão e com isso para a fé, e o que, por exemplo, poderia ser eliminado. Trata-se, porém, do problema da compreensão do próprio anúncio cristão, do sentido em que este deve ser compreendido, se é que deve ser “compreendido”. Talvez, e até certamente, seja possível compreender no Novo Testamento “mais” do que o compreendeu Bultmann. O que só poderá [404] acontecer se compreendermos esse “rnais” corretamente, i. é, realmente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Na minha opinião, foi isso que marcou a orientação do debate hermenêutico mais recente. A própria fé nessa história deve ser compreendida como um acontecimento histórico, como um apelo [406] da palavra de Deus. Isso vale já para a relação do Antigo com o Novo Testamento. Também pode ser compreendido (segundo Hofmann, por exemplo) como a relação existente entre a profecia e sua realização, de modo que a própria profecia que fracassa historicamente só pode ser determinada em seu sentido a partir de sua realização. A compreensão histórica das profecias vétero-testamentárias não prejudica em nada o sentido do anúncio que elas recebem a partir do Novo Testamento. Ao contrário, o acontecimento salvífico anunciado no Novo Testamento só pode ser compreendido como um acontecimento verdadeiro quando sua profecia não é uma mera “reprodução do fato futuro”. É importante salientar sobretudo que o conceito de autocompreensão da fé, o conceito fundamental da teologia bultmanniana, possui um sentido histórico (e não idealístico). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

O outro, do qual não podemos dispor, o extra nos, pertence à essência inalienável dessa autocompreensão. Do ponto de vista cristão, aquela autocompreensão que alcançamos em nossas reiteradas experiências com o outro e com os outros continua sendo incompreensão em um sentido essencial. Toda autocompreensão humana tem o seu limite absoluto na morte. Em sã consciência, não se poderá contrapor isso a Bultmann (Ott 163) e tampouco se poderá encontrar um sentido “conclusivo” no conceito bultmanniano de autocompreensão. Como se a autocompreensão da fé fosse justamente a experiência do fracasso da autocompreensão humana. Para compreender essa experiência de fracasso não precisamos considerá-la do ponto de vista cristão. Cada vez que se faz esse tipo de experiência aprofunda-se a autocompreensão humana. Em cada caso, trata-se de um “acontecimento” e o conceito de autocompreensão é sempre um conceito histórico. Mas segundo a doutrina cristã, deve haver um “último” fracasso. O sentido cristão do anúncio da fé, a promessa da ressurreição que liberta da morte, consiste justamente em [408] pôr um fim, pela fé em Cristo, nesse contínuo fracasso da autocompreensão frente à morte e à finitude. De certo, isso não significa uma fuga da própria historicidade. Significa, antes, que o evento escatológico não é nada mais que a própria fé. Em Geschichte und Eschatologie (História e escatologia), Bultmann escreve: “O paradoxo da existência cristã, sendo ao mesmo tempo escatológica, não-secular e histórica, tem a mesma significação que possui a frase de Lutero: Simul iustus simul peccator”. É nesse sentido que a autocompreensão se torna um conceito histórico. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A atual discussão hermenêutica que se apoia em Bultmann parece querer superá-lo apenas numa certa direção. Se para Bultmann o apelo do anúncio cristão se dirige ao homem, no sentido de que deve renunciar à vontade de dispor de si mesmo, a própria convocação desse apelo é de certo modo uma experiência privada que o homem faz enquanto dispõe de si mesmo. Nesse sentido, Bultmann interpretou o conceito heideggeriano da inautenticidade da pre-sença de uma maneira eminentemente teológica. Em Heidegger, porém, a inautenticidade não está ligada à autenticidade no mesmo sentido em que a decadência é tão própria à existência humana quanto a “decisibilidade”, e que o pecado (a falta de fé) lhe é tão próprio quanto a fé. Em Heidegger, a origem comum de autenticidade e inautenticidade ultrapassa o ponto de partida baseado na autocompreensão. É a primeira forma sob a qual, no pensamento de Heidegger, o próprio ser veio à fala em sua polaridade de desvelamento e velamento. Assim como Bultmann se apoia na analítica existencial da pre-sença, de Heidegger, para explicitar a existência escatológica do homem entre fé e falta de fé, pode-se também tomar esta dimensão da questão do ser a partir do ponto de vista teológico, na medida em que se traz para a “linguagem da fé” o significado central que possui a linguagem nesse acontecimento do ser. Essa dimensão aparece melhor explicitada no Heidegger tardio. Já na discussão hermenêutica feita por Ott, marcada por um tom altamente especulativo, encontramos uma crítica dirigida a Bultmann, muito próxima à Carta sobre o humanismo de Heidegger. Corresponde à sua própria tese positiva, p. 107: “A linguagem, na qual ‘vem à fala’ a realidade, na qual e com a qual se realiza a reflexão sobre a existência humana, essa linguagem acompanha a existência em todas as épocas de seu acontecer”. Creio que também as ideias hermenêuticas do teólogo Fuchs e Ebeling têm sua origem no Heidegger tardio, na medida em que priorizam decisivamente o conceito da linguagem. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A consciência de não podermos dizer que somos os últimos a quem se dirige a palavra de Deus vem unida com esse prestar ouvidos. Mas disso segue-se que “podemos e devemos permitir que nos sejam indicados nossos limites históricos, tal como tomam forma na nossa compreensão histórica de mundo. Com isso, recebemos a mesma tarefa que vale de há muito para a auto-reflexão da fé. É uma tarefa que partilhamos também com os autores do Novo Testamento”. Desse modo, Fuchs ganha uma nova base hermenêutica, que pode ser legitimada a partir da própria ciência neotestamentária. O anúncio da palavra de Deus é uma tradução das proposições do Novo Testamento, cuja justificação é a teologia. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

O artigo intitulado Übersetzung und Verkundigung (Tradução e anúncio) esclarece melhor em que sentido essa doutrina hermenêutica busca ultrapassar a interpretação existencial proposta por Bultmann. Sua orientação básica é o princípio hermenêutico da tradução. Esse princípio é indiscutível: “A tradução deve criar o mesmo espaço que queria criar um texto quando o espírito se pronunciou nele” (409). Mas, frente ao texto — e esta é uma consequência audaz e inevitável — , a palavra tem a primazia, pois é acontecimento da linguagem. Isso deve deixar claro que a relação entre palavra e pensamento não é no sentido de que a palavra expressa só alcança o pensamento a posteriori. A palavra é como um raio certeiro. A seguinte afirmação de Ebeling vem de encontro a isso: “Na realização da pregação, o problema hermenêutico experimenta sua densidade mais extrema”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Não podemos reportar aqui como, a partir dessa base, se apresentam “os movimentos hermenêuticos no Novo Testamento”. Talvez o ponto alto a ser observado seja o fato de que, segundo Fuchs, já no Novo Testamento a teologia é por seu próprio princípio a disputa entre um pensamento que ameaça estabelecer desde o princípio o direito e a ordem e a própria linguagem”. A tarefa do anúncio é a transposição em palavras. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.