Gadamer (VM): analítica

Gostaria de relembrar que o próprio Husserl já havia colocado [260] a problemática dos paradoxos que surgem do desenvolvimento de seu solipsismo transcendental. Por isso não é fácil assinalar objetivamente o ponto a partir do qual Heidegger pode colocar sua ofensiva ao idealismo fenomenológico de Husserl. Deve-se admitir, inclusive, que o projeto heideggeriano de Ser e tempo não escapa por completo ao âmbito da problemática da reflexão transcendental. A ideia da ontologia fundamental, sua fundamentação sobre a pre-sença, que coloca sua importância no ser, assim como a analítica dessa pre-sença, pareciam de fato tão-somente colocar as medidas a uma nova dimensão de questionamento dentro da fenomenologia transcendental. O fato de que todo sentido do ser e da objetividade só se torna compreensível e demonstrável a partir da temporalidade e historicidade da pre-sença — uma fórmula perfeitamente possível para a tendência de Ser e tempo — eis algo que também Husserl reivindicou em seu sentido, ou seja, a partir da base da historicidade absoluta do eu-originário. E se o programa metódico de Heidegger se orienta criticamente contra o conceito da subjetividade transcendental a que Husserl reportava toda fundamentação última, Husserl podia ter qualificado isso de ignorância da radicalidade da redução transcendental e já teria superado e excluído toda implicação de uma ontologia da substância e, com isso, também o objetivismo da tradição. Pois também Husserlse sentia em oposição ao todo da metafísica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Por isso, aqui colocamos a questão de se saber se podemos ganhar algo para a construção de uma hermenêutica histórica a partir da radicalização ontológica que Heidegger leva a cabo nesse caso. Certamente que a intenção de Heidegger era outra, e não seria correto extrair consequências precipitadas de sua analítica existencial da historicidade da pre-sença. A analítica existencial da pre-sença não inclui em si, segundo Heidegger, nenhum ideal de existência histórico determinado. Nesse sentido ela própria reivindica uma validez apriórico-neutral, inclusive para uma proposição teológica sobre o homem e sua existência na fé, como mostra, por exemplo, a polêmica em torno a Bultmann. E, inversamente, com isso não se exclui, de modo algum, que tanto para a teologia cristã como para as ciências do espírito históricas haja premissas (existenciais), determinadas quanto ao seu conteúdo, e às quais estejam submetidas. Mas precisamente por isso, ter-se-á de outorgar reconhecimento ao fato de que a analítica existencial, ela mesma, segundo seu próprio propósito, não contém uma formação “existencial” de ideais, não sendo portanto criticável nesse sentido (por mais que se tenha tentado). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Bem outra questão representa o fato de que mesmo o ser das crianças e dos animais — em oposição àquele ideal da “inocência” — continua sendo um problema ontológico. Em todo caso, seu modo de ser não é “existência” e historicidade no mesmo sentido que Heidegger reivindica para a pre-sença humana. Caberia indagar também o que significa que a existência humana encontre sustentação, por sua vez, em algo extra-histórico [268], natural. Se se quer romper o cerco da especulação idealista, não se pode evidentemente pensar o modo de ser da “vida” a partir da autoconsciência. Quando Heidegger empreendeu a revisão de sua autoconcepção filosófico-transcendental de Ser e tempo, o problema da vida teria de chamar-lhe a atenção novamente e de modo consequente. Assim, na Carta sobre o humanismo, fala do abismo que se abre entre o homem e o animal. Não há dúvida de que a fundamentação transcendental da ontologia fundamental realizada por Heidegger na analítica da pre-sença ainda não permitia o desenvolvimento positivo do modo de ser da vida. Aqui ficaram questões abertas. Todavia, tudo isso não muda nada no fato de que se perde completamente o sentido do que Heidegger chama “existencial”, quando se crê poder opor ao existencial da “cura” um determinado ideal de existência, seja qual for. Quem faz isso perde a dimensão do questionamento que Ser e tempo abre desde o princípio. Face a essas polêmicas míopes, Heidegger podia apelar com razão à sua intenção transcendental, no mesmo sentido em que era transcendental o questionamento kantiano. O seu questionamento estava, desde os seus primórdios, acima de toda diferenciação empírica e, por consequência, também de toda diferenciação de um ideal de conteúdo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Por outro lado, é quase impossível subtrair-se ao fechamento interno do idealismo da consciência e ao empuxo do movimento reflexivo que tudo suga para dentro da imanência. Será que Heidegger não tinha razão quando abandonou a analítica transcendental da pre-sença (Dasein) e o ponto de partida da hermenêutica da facticidade? Nesse sentido, qual foi o caminho que busquei tomar? VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Decerto, precisamos aprender a ler Dilthey contra sua própria [30] concepção de método. Aparentemente, os trabalhos de Dilthey partilhavam o mesmo ponto de partida que questionamento epistemológico neokantiano. Também ele procurou ajudar as ciências do espírito a encontrar uma fundamentação autônoma, filosófica, demonstrando seus princípios próprios. Concebeu a base de todas as ciências do espírito numa psicologia descritiva e analítica. Num trabalho clássico de 1892, intitulado Ideias para uma psicologia descritiva e analítica, Dilthey supera a metodologia das ciências naturais, no âmbito da psicologia, fornecendo assim às ciências do espírito sua própria consciência metodológica. Desta forma, ele também parece estar dominado pelo questionamento epistemológico, que pergunta pela possibilidade da ciência, e não pelo que é a história. Na verdade, porém, Dilthey não se restringe a refletir a respeito de nosso saber sobre a história, como acontece na ciência da história, mas pensa sobre o ser humano, que determina pelo seu próprio saber sobre sua história. Ele caracteriza o caráter fundamental da existência humana como “vida”. Esta é para ele a realidade originária “nuclear”, na qual também radica todo conhecimento histórico. Tudo que há de objetivo na vida humana repousa no trabalho da vida, formador de pensamento, e não num sujeito epistemológico. Arte, Estado, sociedade, religião, todos os valores, bens e normas incondicionais, que encontram sua consistência nesta esfera, provêm em última instância do trabalho da vida, formador de pensamento. Se estas realidades objetivas reivindicam uma validade incondicional, isso só pode ser esclarecido pela “limitação do horizonte do tempo”, isto quer dizer, pela falta de um horizonte histórico. Aquele que conhece história sabe, por exemplo, que o homicídio não é incondicionalmente um delito maior do que o roubo. Ele sabe que o antigo direito germânico punia o roubo de modo mais severo do que o homicídio, por ser, aquele, covarde e pouco viril. Somente quem não sabe disto é que pode acreditar numa hierarquia absoluta das coisas. O Iluminismo histórico leva à ideia da condicionalidade do incondicional, à ideia da relatividade histórica. Nem por isso, Dilthey torna-se o representante de um relativismo histórico, pois o seu pensamento não se ocupa da relatividade, mas da realidade “nuclear” da vida, que serve de fundamento para toda relatividade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Na analítica de Heidegger, portanto, o círculo hermenêutico ganha uma significação totalmente nova. A estrutura circular da compreensão manteve-se, na teoria que nos precedeu, sempre nos quadros de uma relação formal entre o individual e o todo ou de seu reflexo subjetivo: a antecipação divinatória do todo e sua explicitação consequente no caso singular. Segundo esta teoria, portanto, o movimento circular oscilava no texto e acabava suspenso com sua completa compreensão. A teoria da compreensão culminava num ato divinatório que se transferia totalmente ao autor e, a partir dali, procura dissolver tudo que é estranho ou causava estranheza no texto. Heidegger, pelo contrário, reconhece que a compreensão do texto permanece sempre determinada pelo movimento pré-apreensivo da compreensão prévia. O que Heidegger descreve dessa forma não é outra coisa do que a tarefa de concretização da consciência histórica. Junto com essa concretização, exige-se tomar consciência das próprias opiniões prévias e preconceitos e realizar a compreensão guiada pela consciência histórica, de forma que a apreensão da alteridade histórica e o emprego que ali se faz dos métodos históricos não consista simplesmente em deduzir o que a ela se atribuiu de antemão. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Dessa forma, também a herança cristã da metafísica grega, a escolástica medieval, concebe a palavra a partir da species, como sua perfeição, sem compreender o mistério de sua encarnação. A experiência de mundo que se dá na linguagem e que orientou originariamente o pensamento metafísico acaba tornando-se algo secundário e contingente. Através de convenções próprias da linguagem, ela esquematiza o olhar pensante que se dirige às coisas, fechando-lhe o acesso à experiência originária do ser. Na verdade, porém, é ao caráter de linguagem da experiência de mundo que se esconde por trás da aparência de prioridade das coisas frente à sua manifestação na linguagem. É sobretudo a suposta possibilidade de objetivação universal de tudo e de todos que se apoia na ideia da universalidade da linguagem, e que através dessa suposição se coloca na penumbra. À medida que a linguagem — pelo menos na família das línguas indo-germânicas — dispõe da possibilidade de estender a função nominativa geral a qualquer parte da oração e transformar tudo em sujeito para outras sentenças possíveis, ela erige a aparência universal de coisificação, que acaba degradando a própria linguagem a um mero meio de entendimento. Por mais que procure descobrir os desvios verbais pela elaboração de sistemas de signos artificiais, nem mesmo a moderna analítica da linguagem é capaz de questionar o pressuposto fundamental desta objetivação. Ensina, ao contrário, e apenas pela sua [74] autolimitação, que enquanto todos esses sistemas pressuporem a linguagem natural, nenhuma liberação real pode se realizar, a partir do âmbito da linguagem, mediante a introdução de sistemas de signos artificiais. Assim como a clássica filosofia da linguagem constatou que a questão da origem da linguagem é uma questão insustentável, também a reflexão sobre a ideia de uma linguagem artificial levou à auto-suspensão dessa ideia e com isso à legitimação das linguagens naturais. Mas, via de regra, o que isso implica permanece impensado. Sabe-se, por certo, que as línguas têm sua realidade, em geral, lá onde são faladas, isto é, onde as pessoas logram entender-se entre si. Mas que tipo de ser é este que convém à linguagem? Aquele de um meio de entendimento? Parece-me que, ao desvincular o conceito da syntheke do seu sentido ingênuo de “convenção”, Aristóteles já havia chamado a atenção para o verdadeiro caráter ontológico da linguagem. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

Em todo trabalho filosófico do conceito encontra-se, portanto, uma dimensão hermenêutica, hoje em dia caracterizada de modo um tanto impreciso, com o termo “história do conceito”. Esse não representa um esforço secundário e nem significa que, em vez de falarmos das coisas, falemos dos meios de entendimento que usamos para isso, mas constitui o elemento crítico no uso de nossos próprios conceitos. Tanto o afã do leigo em exigir definições inequívocas, quanto o fascínio pela univocidade de uma epistemologia unilateral e semântica desconhecem não só o que seja linguagem, mas também o fato de que a linguagem do conceito não pode ser inventada, mudada ao bel-prazer, usada e abandonada. A linguagem do conceito brota, muito ao contrario, do elemento no qual nos movemos como seres pensantes. O que encontramos na forma artificial da terminologia são apenas as cascas endurecidas dessa corrente viva do pensamento e da fala. Também essa se introduz e sustenta pelo acontecimento comunicativo que realizamos ao falar e onde se constrói compreensão e entendimento. Esse parece-me ser o ponto de convergência entre o desenvolvimento da filosofía analítica na Inglaterra e a hermenêutica. Essa correspondência é, porém, limitada. Assim como, no século XIX, Dilthey acusou o empirismo inglês de carência de formação histórica, o postulado crítico da hermenêutica que se baseia na reflexão histórica não consiste tanto em dominar a estrutura lógica dos modos de falar, como é [114] o caso por exemplo do ideal da filosofia “analítica”, mas em apropriar-se dos conteúdos mediados pela linguagem, com todo o sedimento da experiência histórica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Na realidade, a objeção que fiz é óbvia. Eu disse que o paciente [259] e o médico estariam envolvidos e limitados a um determinado jogo de papéis sociais, suposto que o trabalho de reflexão emancipatória seja exercido com responsabilidade profissional. Não pertence à legitimação social do médico (ou do analista leigo) ultrapassar seu âmbito terapêutico e a partir da reflexão emancipatória “tratar” a consciência social dos outros como “doentia”. Com isso, não estou desconsiderando o caráter específico do tratamento, próprio à terapia psicanalítica, aquele amálgama complexo de possessão (transferência) e liberação cujo controle no tratamento constitui a arte do analista. Tanto a excelente descrição do método de Lorenzer, onde se apoia Habermas, quanto a apresentação de Giegel reconhecem que tal “tratamento” não pode ser caracterizado como uma técnica, mas como um trabalho comum de reflexão. Reconheço ainda que o analista não pode simplesmente deixar de lado sua experiência analítica e seu saber, quando exerce seu papel como comparsa social e não mais como médico. Mas isso não modifica o fato de que justo essa intromissão da competência psicanalítica significa um fator perturbador no trato social. Não digo que isso possa ser evitado. Na verdade, escrevemos e enviamos cartas também a grafólogos, sem que isso signifique que se queira solicitar sua competência grafológica; e mesmo fora dessas competências específicas, quando conversamos, quando ouvimos razões e quando nos deixamos influenciar afetivamente por um outro, também colocamos em jogo o conhecimento das pessoas, outras informações e a observação distanciada, colocando assim limites e fechando-nos para o diálogo racional “puro”. Basta recordarmos, por exemplo, a famosa descrição de Sartre sobre o olhar do outro. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Mesmo assim, a situação hermenêutica na relação social dos interlocutores é bem diferente da que se dá na relação analítica. Quando conto um sonho a alguém sem ser movido por uma intenção analítica ou por meu papel de paciente, a comunicação não tem o sentido de introduzir uma interpretação analítica do sonho. Se fizer isso, o ouvinte não atina com o scopus hermenêutico. A intenção é antes compartilhar os jogos inconscientes da própria fantasia onírica, do mesmo modo que na fantasia por exemplo participamos das lendas ou no caso da imaginação poética. Essa reivindicação hermenêutica é legítima e nada tem a ver com a resistência que é um fenômeno bem conhecido dentro da análise. É perfeitamente justificável rechaçar a atitude de alguém que não leve em conta essa situação hermenêutica descrita e, em vez de compreender por exemplo as poesias oníricas de Jean Paul como jogos significativos da imaginação, trata de interpretá-los como uma [260] gravidade significativa do simbolismo inconsciente de uma biografia entulhada. É oportuna aqui a crítica hermenêutica à legitimidade da psicologia profunda, e não se limita de modo algum a fantasias estéticas. Quando alguém, por exemplo, procura convencer argumentativamente um outro sobre uma questão política, tomado de uma emoção apaixonada e uma veemência beirando a irritação, sua pretensão hermenêutica será escutar contra-argumentos e não ver suas emoções serem analisadas por vias da psicologia profunda, segundo a máxima de que “quem se irrita jamais tem razão”. Mais adiante voltaremos a discutir essa relação entre reflexão psicanalítica e hermenêutica e os perigos de uma confusão desses dois “jogos de linguagem”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

É verdade, porém, que na época da nova ciência e do racionalismo, desenvolvido durante os séculos XVII e XVIII, o vínculo entre retórica e hermenêutica se afrouxa. H. Jaeger chamou a atenção ultimamente para o papel que desempenhou Dannhauer com sua ideia do boni interpretis. Esse autor parece ter sido o primeiro a utilizar a palavra “hermenêutica” em sentido terminológico, em estreita conexão com o escrito correspondente do Organon de Aristóteles. Isso mostra que a intenção de Dannhauer é continuar e acabar o que Aristóteles havia iniciado com seu escrito Peri hermeneias. Como ele mesmo afirmou: “os limites do Organon de Aristóteles se ampliam com a anexação de uma nova cidade”. A sua orientação é, pois, a lógica, à qual ele quer justapor como uma parte a mais, [288] como outra ciência filosófica, a ciência da interpretação, e isto de um modo tão universal que ela preceda a hermenêutica teológica e a hermenêutica jurídica, como a lógica e a gramática precedem toda aplicação específica. Dannhauer deixa de lado o que ele chama de exposição retórica, ou seja, o uso e a utilidade que se busca com um texto e que se costuma chamar de accomodatio textus, para tentar alcançar pela sua hermenêutica uma infalibilidade humana e racional equiparável à lógica, na compreensão geral dos textos. É essa tendência a uma espécie de nova lógica o que a leva a um paralelismo com a lógica analítica e a uma distinção explícita desta. Ambas as partes da lógica, a analítica e a hermenêutica, se relacionam com a verdade e ambas ensinam a refutar o erro. Mas diferem no fato de que a hermenêutica ensina a investigar o verdadeiro sentido de uma frase errônea, enquanto que a analítica deriva a verdade da conclusão de princípios verdadeiros. Aquela se refere, pois, unicamente ao “sentido” das frases, não à retidão objetiva. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Jaeger afirma que Dannhauer adere desse modo à teoria mais recente sobre a Analítica que dominava o aristotelismo da época e que se conhece como methodus resolutiva (51s). Sobre isso, teremos algo mais para aprender quando apresentar sua anunciada obra maior. Pelo que me parece, esse método é uma continuação livre do sincretismo da Antiguidade tardia da lógica aristotélica e da dialética platônica sobre a qual Aristóteles apresenta apenas algumas amostras escassas: Aristóteles refere-se sempre ao conceito geométrico de analyein, tanto ao transformar o procedimento dedutivo e demonstrativo num tema da lógica como ao aplicá-lo à estrutura da reflexão prática (busca dos meios para o fim). Isso não deveria ser obscurecido pela referência de Jaeger ao uso neoplatônico da Analítica como via de acesso aos princípios (52). O recurso a essa analítica torna-se determinante para o programa hermenêutico de Dannhauer. Na verdade, esse considerou o escrito aristotélico Peri hermeneias como um procedimento de síntese (reunião das partes do discurso). A essa lógica sintética do enunciado justapõe a hermenêutica como um trabalho analítico. Pois bem, essa ampliação da analítica aristotélica tem uma importante consequência. Como a doutrina do raciocínio formal garante unicamente a dedução imanente e não a retidão objetiva, também a hermenêutica, em Dannhauer, pretende descobrir o reto sentido de um enunciado e não o sentido de um enunciado correto. Não busca uma derivação do enunciado partindo de princípios. Dannhauer é muito radical nisso, e Jaeger mostra que desse modo segue uma antiga doutrina medieval sobre a distinção entre sensus e sententia (56). Outros, ao contrário, reconheceram na hermenêutica um caminho próprio, embora indireto e subordinado, para o conhecimento da verdade. Tal foi ainda a concepção de Kerckermann (1614), que [294] fala por isso de uma clavis intelligentiae (71s). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Seja como for, Dannhauer está a favor da confluência entre a hermenêutica e a analítica; em outros termos, a favor da inserção da hermenêutica na lógica (61). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

A virada da teoria hermenêutica iniciada com a crítica de Heidegger ao idealismo da consciência tem, por outro lado, uma história muito antiga. Encontramos aqui a conexão do problema hermenêutico com a tradição da filosofia prática desde Aristóteles, defendida por J. Ritter e por eu mesmo. Essa tradição não é tão fácil de se liquidar, e não consigo compreender por que Jaeger se enoja da “interpretação” e a “compreensão”. São, sobretudo, os procedimentos analíticos os que nada têm a ver com qualquer tipo de aventura irracionalista. Ajustam-se muito mais à tradição clássica da retórica e, segundo o artigo de Jaeger, que tem para mim o mérito de me haver incitado ao estudo de Dannhauer, sei que também a lógica aristotélica e analítica, no sentido de methodus resolutiva, constituiu uma outra, possível orientação para a formação da teoria hermenêutica. O certo é que o douto trabalho de Jaeger só me serviu para esse “também”. Não sei por que o aristotelismo lógico de Dannhauer não deva ocupar um lugar de destaque dentro da res publica litteraria, frente a Flacius e à hermenêutica teológica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Meu ponto de partida foi a crítica ao idealismo e ao metodologismo da era da teoria do conhecimento. Foi de especial importância para mim o aprofundamento do conceito de compreensão, por Heidegger, que o converteu num existencial, quer dizer, numa determinação básica categorial da pre-sença (Dasein) humana. Foi o estímulo que me levou a uma superação crítica do debate metodológico e a uma ampliação da problemática hermenêutica, contemplando não somente todo tipo de ciência, mas também a experiência de arte e a experiência da história. Ora, para sua análise crítica e polêmica da compreensão, Heidegger apoiou-se no antigo discurso sobre o círculo hermenêutico, reivindicou-o como um círculo positivo e em sua analítica da pre-sença elevou-o a conceito. Não devemos esquecer, porém, que não se trata aqui da circularidade como metáfora metafísica, mas de um conceito lógico que encontra seu verdadeiro lugar na teoria da demonstração científica como doutrina do círculo vicioso. O conceito de círculo hermenêutico significa que no âmbito da compreensão não se pretende deduzir uma coisa de outra, de modo que o erro lógico da circularidade na demonstração não é aqui nenhum defeito do procedimento, mas representa a descrição adequada da estrutura do compreender. Dilthey, seguindo a Schleiermacher, introduziu a expressão “círculo hermenêutico” em contraste com o ideal de raciocínio lógico. Se considerarmos o verdadeiro alcance do conceito de compreensão no uso da linguagem, veremos que a expressão “círculo hermenêutico” sugere na realidade a estrutura do ser-no-mundo, quer dizer, a superação da divisão entre sujeito e objeto na analítica transcendental da pre-sença levada a cabo por Heidegger. Quem sabe usar uma ferramenta não a converte em objeto, mas trabalha com ela. Assim também o compreender, que permite à pre-sença conhecer-se em seu ser e em seu mundo, não é uma conduta relacionada com determinados objetos de conhecimento, mas seu próprio ser-no-mundo. Desse modo a metodologia hermenêutica de cunho diltheyano se transforma numa “hermenêutica da facticidade” que guia a pergunta de Heidegger pelo ser, incluindo a indagação fundamental do historicismo e de Dilthey. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Nisso baseia-se o conceito teológico da autocompreensão. Também esse conceito foi desenvolvido a partir da analítica transcendental da pre-sença de Heidegger. O ente cujo ser está em jogo, [407] pelo fato de compreender seu ser, apresenta-se como o caminho de acesso para a questão do ser. A própria mobilidade da compreensão do ser é demonstrada como histórica, como a constituição fundamental da historicidade. Isso é de grande importância para o conceito bultmanniano de autocompreensão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A atual discussão hermenêutica que se apoia em Bultmann parece querer superá-lo apenas numa certa direção. Se para Bultmann o apelo do anúncio cristão se dirige ao homem, no sentido de que deve renunciar à vontade de dispor de si mesmo, a própria convocação desse apelo é de certo modo uma experiência privada que o homem faz enquanto dispõe de si mesmo. Nesse sentido, Bultmann interpretou o conceito heideggeriano da inautenticidade da pre-sença de uma maneira eminentemente teológica. Em Heidegger, porém, a inautenticidade não está ligada à autenticidade no mesmo sentido em que a decadência é tão própria à existência humana quanto a “decisibilidade”, e que o pecado (a falta de fé) lhe é tão próprio quanto a fé. Em Heidegger, a origem comum de autenticidade e inautenticidade ultrapassa o ponto de partida baseado na autocompreensão. É a primeira forma sob a qual, no pensamento de Heidegger, o próprio ser veio à fala em sua polaridade de desvelamento e velamento. Assim como Bultmann se apoia na analítica existencial da pre-sença, de Heidegger, para explicitar a existência escatológica do homem entre fé e falta de fé, pode-se também tomar esta dimensão da questão do ser a partir do ponto de vista teológico, na medida em que se traz para a “linguagem da fé” o significado central que possui a linguagem nesse acontecimento do ser. Essa dimensão aparece melhor explicitada no Heidegger tardio. Já na discussão hermenêutica feita por Ott, marcada por um tom altamente especulativo, encontramos uma crítica dirigida a Bultmann, muito próxima à Carta sobre o humanismo de Heidegger. Corresponde à sua própria tese positiva, p. 107: “A linguagem, na qual ‘vem à fala’ a realidade, na qual e com a qual se realiza a reflexão sobre a existência humana, essa linguagem acompanha a existência em todas as épocas de seu acontecer”. Creio que também as ideias hermenêuticas do teólogo Fuchs e Ebeling têm sua origem no Heidegger tardio, na medida em que priorizam decisivamente o conceito da linguagem. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Essa função analítica da filosofia iniciada aqui pode ser qualificada como hermenêutica, na medida em que seu ponto de partida não é uma estrutura artificial de meios de informação nem uma teoria da informação ou uma semiótica geral dedicada a construir a partir de si a sintaxe da linguagem e expor sua ação comunicativa. Aqui descreve-se, antes, a própria conduta da vida e da linguagem, a qual cria suas próprias regras e formas estruturais. Comparada com o pólo oposto da assim chamada teoria da informação, a hermenêutica representa um outro modo de consideração que não busca esclarecer o fenômeno da linguagem a partir de processos elementares, mas a partir de sua própria realização vital. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Já nas suas ideias “para uma psicologia descritiva e analítica” Dilthey havia distinguido a tarefa de deduzir “o adquirido nexo da vida da alma”, das formas de explicação próprias do conhecimento da natureza. Havia empregado o conceito de estrutura para, com ele, destacar o caráter vivencial dos nexos da alma com relação aos nexos causais dos acontecimentos da natureza. O que caracterizava logicamente essa “estrutura” era que aqui intentava-se a um todo de relações, que não repousava sobre a sucessão temporal do ser efetivado, mas sobre relações internas. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Na esteira de Schleiermacher e com base na teoria romântica da criação inconsciente do gênio, foi sobretudo a interpretação psicológica que passou a constituir a base teorética, cada vez mais decisiva, do conjunto das ciências do espírito. Isso mostra-se sumamente instrutivo já em Steinthal e em Dilthey culmina numa refundamentação sistemática da ideia das ciências do espírito com base numa “psicologia descritiva e analítica”. Schleiermacher ainda não pensa, certamente, na fundamentação filosófica das ciências históricas. Ele se encaixa muito melhor no contexto de pensamento do idealismo transcendental fundado por Kant e Fichte. Em especial a obra de Fichte, Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre (Princípios da teoria geral da ciência), alcançou uma significação epocal quase igual à Crítica da razão pura. Como já indica o título, trata-se de deduzir todo saber a partir de um “princípio supremo” unitário, a espontaneidade da razão (Fichte diz “força do ato” [Tathandlung] em lugar de “fato” [Tatsache]). Esta conversão do idealismo “crítico” de Kant para o idealismo “absoluto” torna-se a base para todos os seus sucessores: Schiller e Schleiermacher, Schelling, Friedrich Schlegel e Wilhelm von Humboldt — chegando até Boeckh, Ranke, Droysen e Dilthey. Erich Rothaker, em particular, demonstrou que, apesar de rechaçar a construção apriorística da história do mundo no estilo de Fichte e Hegel, a “escola histórica” comunga com a base teórica da filosofia idealista. As preleções do famoso filólogo August Boeckh sobre a “Enciclopédia das ciências filológicas” foram muito influentes. Ali, Boeckh definiu a tarefa da filologia como o “conhecer do conhecido”. Com isso encontrou-se uma boa fórmula para expressar o caráter secundário da filologia. O sentido normativo da literatura clássica, redescoberto pelo humanismo, e que motivou primariamente a imitatio, empalideceu e tornou-se indiferença histórica. Partindo da tarefa fundamental desse “compreender”, Boeckh distinguiu os diversos modos de interpretação em gramatical, segundo o gênero literário, histórico-real e psicológico-individual. Esse foi o ponto que Dilthey conectou com sua psicologia compreensiva. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Antigamente, quando na filosofia se refletia sobre os fundamentos das ciências do espírito, mal se falava de hermenêutica. A hermenêutica era uma simples disciplina auxiliar, um cânon de regras que tinha como objeto o trato com textos. Em todo caso, ainda se diferenciava por levar em conta e contemplar o modo específico de determinados textos, por exemplo, como hermenêutica bíblica. Havia ainda uma disciplina auxiliar um pouco diferente, também chamada hermenêutica, na figura da hermenêutica jurídica. Continha regras para a complementação de lacunas no direito codificado, tendo, portanto, caráter normativo. A problemática filosófica central que se encontrava inserida no factum das ciências do espírito — em analogia para com as ciências da natureza e sua fundamentação através da filosofia kantiana — era abordada, ao contrário, na teoria do conhecimento. A crítica da razão pura de Kant justificou os elementos apriorísticos do conhecimento experimental das ciências da natureza. Assim, convinha que se implementasse uma justificação teórica correspondente para o modo de conhecimento das ciências históricas. Em sua Historik, J.G. Droysen projetou uma metodologia das ciências históricas, exercendo grande influência. Essa metodologia visava uma plena correspondência com a tarefa kantiana. Wilhelm Dilthey, que iria desenvolver a verdadeira filosofia da escola histórica, perseguiu desde o princípio e conscientemente a tarefa de uma crítica da razão histórica. Nesse sentido, também sua autoconcepção possuía um cunho epistemológico. Sabe-se que para ele o fundamento epistemológico das chamadas ciências do espírito repousava em uma psicologia “descritiva e analítica”, purificada da alienação das ciências da natureza. Na execução dessa tarefa, Dilthey acabou superando seu originário ponto de partida epistemológico, tendo sido ele a fazer surgir o momento filosófico da hermenêutica. É verdade que nunca renunciou ao fundamento epistemológico buscado na psicologia. A base sobre a qual procurou erigir o edifício do universo histórico das ciências do espírito continuou sendo o fato de as vivências serem caracterizadas pelo tomar consciência de si mesmas, de modo que ali não surge nenhum problema a respeito do conhecimento do outro, do não-eu, como acontece na base do questionamento kantiano. O universo histórico, porém, não é um nexo de vivências nos [388] moldes da autobiografia, onde a historia se apresenta em função da interioridade da subjetividade. Por fim, o nexo histórico deve ser compreendido como um nexo de sentido que supera fundamentalmente o horizonte vivencial do indivíduo. E como um texto grande e estranho, para cuja decifração precisa da ajuda de uma hermenêutica. É assim que Dilthey procura a passagem da psicologia para a hermenêutica, a partir da constringência da própria coisa em questão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.