Assim, como se sabe, esse ideal foi proclamado na antiguidade tanto pelos professores de filosofia como pelos de retórica. A retórica encontrava-se há muito tempo em luta com a filosofia e era sua a reivindicação de transmitir, ao contrário das ociosas especulações dos “sofistas”, a verdadeira sabedoria de vida. Vico, que era ele mesmo professor de retórica, encontra-se, aqui, portanto, em meio a uma tradição humanística procedente da antiguidade. Certamente essa tradição também é de impôftância para o que há de evidente nas ciências do espírito e, especialmente, a positiva ambiguidade do ideal retórico, que não somente surge sob o veredicto de Platão, mas também, da mesma forma, sob o veredicto do metodologismo anti-retórico da modernidade. Desse ponto de vista, muita coisa do que nos irá ocupar já ressoa em Vico. Seu apelo ao sensus communis abrange, porém, além do momento retórico, ainda um outro momento da antiga tradição. É o antagonismo entre o acadêmico e o sábio, sobre o qual ele se apoia; um antagonismo que encontrou a sua primeira configuração na imagem cínica de Sócrates que possui seu fundamento objetivo no antagonismo conceitual entre sophia e de phronesis, que foi elaborado pela primeira vez por Aristóteles, que nos Peripatéticos foi desenvolvido como uma crítica do ideal teórico de vida e que co-determinou, na época helenística, a imagem do sábio, principalmente depois que o ideal de formação grega se tinha fundido com a autoconsciência da liderança política romana. Também a ciência jurídica romana, no seu período tardio, p. ex., instala-se, como se sabe, apoiada no pano de fundo da arte jurídica e da prática jurídica, que se envolve mais com o ideal prático da phronesis do que com o ideal teórico da sophia. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Visto filosoficamente, a ambiguidade que apontamos no conceito da vivência significa que esse conceito não se realiza no papel que lhe é atribuído, isto é, de ser a última situação dada (Gegebenheit) e fundamento de todo o conhecimento. Há ainda algo totalmente diferente no conceito da “vivência”, que exige reconhecimento e que indica uma problemática não superada: seu relacionamento interno com a vida. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O conceito da arte vivencial contém uma ambiguidade característica. A arte vivencial significa, em princípio e abertamente, que a arte origina-se da vivência e dela é expressão. Num sentido derivado, o conceito da arte vivencial é então utilizado também para aquela arte que se destina à vivência estética. É evidente que ambas se inter-relacionam. O que tem sua determinação de ser no fato de ser expressão de uma vivência, não poderá ser entendido, no seu significado, a não ser através de uma vivência. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
A premissa decisiva para essa mudança de sentido foi Herder quem estabeleceu com a sua crítica ao esquema histórico-filosófico do Aufklärung. Seu ataque ao orgulho da razão por parte do Aufklärung teve sua arma mais afiada no caráter modelar da antiguidade clássica, proclamado sobretudo por Winckelmann. A história da arte na antiguidade era, sem dúvida, bem mais que uma exposição histórica. Ela era uma crítica do presente e um programa. Porém, pela ambiguidade inerente a qualquer crítica do presente, a proclamação do caráter modelar da arte grega, que deveria erigir um novo ideal ao próprio presente, significava, não obstante, um verdadeiro passo adiante rumo ao conhecimento histórico. O passado, que aqui se apresenta como modelo para o presente, mostra-se como irrepetível e único, justamente pelo fato de que se investigam e reconhecem as causas para o seu ser-assim. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Essa ambiguidade tem seu fundamento último na falta de unidade interna de seu pensamento, no resíduo do cartesianismo, donde ele parte. Suas reflexões epistemológicas sobre a fundamentação das ciências do espírito não se coadunam bem com seu ponto de partida na filosofia da vida. Nas suas anotações mais tardias encontra-se um testemunho eloquente. Ali, Dilthey exigirá a toda fundamentação filosófica que se estenda a todo o campo em que “a consciência já tenha sacudido toda autoridade e procure chegar a um saber válido do ponto de [242] vista da reflexão e da dúvida”. Essa frase parece uma afirmação inocente sobre a essência da ciência e da filosofia da época moderna como tal. Não há como não perceber uma ressonância cartesiana. Na verdade, porém, essa frase encontra sua aplicação em um sentido totalmente diferente, quando Dilthey continua: “Por toda parte a vida conduz a reflexões sobre o que está colocado nela, a reflexão quanto à dúvida, e somente se a vida quiser se firmar frente a esta, então e somente então pode o pensamento acabar sendo um saber válido”. Aqui já não mais existem preconceitos filosóficos que têm de ser superados por uma fundamentação epistemológica ao estilo de Descartes, já que se trata de realidades da vida, de tradições dos costumes, da religião e do direito positivo, que são desintegrados pela reflexão e necessitam de uma nova ordem. Quando Dilthey fala aqui do saber e da reflexão, não está querendo aludir à imanência geral do saber na vida, mas a um movimento dirigido contra a vida. Ao contrário, a tradição dos costumes, da religião e do direito repousa, de sua parte, sobre um saber da vida a partir de si mesma. Inclusive já vimos que na entrega à tradição, na qual certamente está envolvido algum saber, realiza-se a ascensão do indivíduo ao espírito objetivo. Terá de se concordar prazerosamente com Dilthey que a influência do pensamento sobre a vida “procede da necessidade interna de estabelecer algo fixo em meio à mudança inconstante das percepções sensoriais, dos desejos e sentimentos, algo fixo e estável que torne possível um modo de vida continuado e unitário”. Mas esse desempenho do pensamento é imanente à própria vida e se realiza nas objetivações do espírito que, como costumes, direito e religião sustentam o indivíduo, na medida em que este se entrega à objetividade da sociedade. O fato de que, para isso, tenha-se de adotar “o ponto de vista da reflexão e da dúvida” e que esse trabalho se realize “em todas as formas de reflexão e científica (e não fora disso), não se coaduna, em absoluto, com as ideias da filosofia da vida de Dilthey. Antes, aqui se descreve o ideal específico do Aufklärung científico, que bem pouco concorda com a reflexão imanente da vida, justamente ao modo como foi o “intelectualismo” do Aufklärung, contra o qual se orienta a fundamentação de Dilthey no fato da filosofia da vida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
O postulado básico do idealismo “radical”, que é o de sempre retroceder aos atos constituintes da subjetividade transcendental, tem, obviamente, de esclarecer a universal consciência de horizonte “mundo”, e principalmente a intersubjetividade deste mundo — embora o que está assim constituído, o mundo enquanto comum a muitos indivíduos, abranja, por sua vez, a subjetividade. A reflexão transcendental, que deve suspender toda validez de mundo e todo dado prévio de tudo que é diferente dela, tem de pensar-se a si mesma como abarcada pelo mundo da vida. O eu que reflete sabe que vive sob determinações de objetivos, para os quais o mundo da vida representa o fundamento. Nesse sentido, a tarefa de uma constituição do mundo da vida (assim como a da intersubjetividade) é paradoxal. Mas Husserl considera tudo isso como sendo paradoxos aparentes. Está convencido de que, a fim de desfazê-los, basta manter de forma verdadeiramente consequente o sentido transcendental da redução fenomenológica e não ser tomado por um medo infantil ante um solipsismo transcendental. Em vista dessa clara tendência da formulação do pensamento de Husserl, parecer-me-ia sem sentido colocar na boca de Husserl alguma ambiguidade no conceito da constituição, atribuindo-lhe uma posição intermediária entre determinação de sentido e criação. Ele mesmo assegura haver superado por completo, no curso de seu pensamento, o medo de qualquer idealismo generativo. A sua teoria da redução fenomenológica pretende, antes, levar à realização, pela primeira vez, o verdadeiro sentido desse idealismo. A subjetividade transcendental é o “eu-originário” e não “um eu”. Para ela, o solo do mundo dado de antemão já foi suspenso. Ela é o não relativo por excelência, aquilo a que está referida toda relatividade, inclusive a do eu investigador. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Essa recordação referente a Platão torna-se de novo significativa para o problema da verdade. Na análise da obra de arte, tínhamos procurado demonstrar que o representar-se deve ser considerado como o verdadeiro ser daquela. Com esse fim, havíamos acrescentado o conceito do jogo, o qual já nos projetou a nexos mais gerais: pois tínhamos visto que a verdade do que se representa no jogo não é “de se crer” ou “não se crer”, para além da participação no acontecer lúdico. No âmbito estético, isso se entende por si mesmo. Inclusive quando o poeta é honrado como um vidente, isso não quer dizer que reconheçamos no seu poema uma verdadeira profecia como, por exemplo, nos cantos de Hölderlin sobre o retorno dos deuses. O poeta é 492] um vidente porque representa por si mesmo o que é, o que foi e o que será, e testemunha por si mesmo o que anuncia. É certo que a expressão poética leva em si uma certa ambiguidade, como aquela dos oráculos. Mas precisamente nisso se estriba sua verdade hermenêutica. Quem considera que isso é uma falta de vinculatividade estética, que passaria ao largo da seriedade do existencial, não se dá conta de até que ponto a finitude do homem é fundamental para a experiência hermenêutica do mundo. A ambiguidade do oráculo não é o seu ponto fraco, mas justamente sua força. E igualmente atira no escuro aquele que examinar se Hölderlin ou Rilke acreditavam realmente em seus deuses ou em seus anjos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Como costuma ocorrer com as palavras derivadas do grego e adotadas em nossa linguagem científica, o título “hermenêutica abarca diversos níveis de reflexão. Hermenêutica significa em primeiro lugar praxis relacionada a uma arte. Sugere a “tekhne” como palavra complementaria. A arte, em questão aqui, é a arte do anúncio, da tradução, da explicação e interpretação, que inclui naturalmente a arte da compreensão que lhe serve de base e que é sempre exigida quando o sentido de algo se acha obscuro e duvidoso. Já no uso mais antigo da palavra, detecta-se uma certa ambiguidade. Hermes é chamado o mensageiro divino, aquele que transmite as mensagens dos deuses aos homens: No relato de Homero, ele costuma executar verbalmente a mensagem que lhe fora confiada. Mas frequentemente, e em especial no uso profano, a tarefa do hermeneus consiste em traduzir para uma linguagem acessível a todos o que se manifestou de modo estranho ou incompreensível. Assim, a tarefa da tradução sempre tem uma certa “liberdade”. Pressupõe a plena compreensão da língua estrangeira e, mais do que isso, a compreensão da verdadeira intenção de sentido do que se manifestou. Quem quiser se fazer compreender como intérprete deve trazer novamente à fala este sentido da intenção. A contribuição que a “hermenêutica” pode fazer é sempre essa transferência de um mundo para outro, do mundo dos deuses para o dos homens, do mundo de uma língua estrangeira para o mundo da língua própria (os tradutores humanos podem traduzir somente para sua própria língua). Visto, porém, que a tarefa própria do traduzir consiste em “executar” algo, o sentido de hermeneuein oscila entre tradução e diretiva, entre mera comunicação e requisito de obediência. E certo que, em sentido neutro, hermeneia costuma significar “enunciação de pensamentos”, todavia é significativo o fato de que, para Platão, não é qualquer expressão de pensamento que possui o [93] caráter de diretiva, mas somente o saber do rei, do arauto etc. A proximidade da hermenêutica com a mântica não pode ser compreendida de modo diverso: a arte de transmitir a vontade do deus segue paralela à arte de adivinhá-la ou de prever o futuro mediante sinais. Mesmo assim, quando Aristóteles trata da questão do logos apophantikos, no tratado Peri hermeneias, ele só tem em mente o sentido lógico do enunciado, concentrando-se no outro componente semântico, puramente cognitivo. De modo semelhante, desenvolve-se no mundo grego posterior um sentido de hermeneia e hermeneus puramente cognitivo, que pode significar “explicação erudita”, “comentador” e “tradutor”. É claro que, enquanto arte, encontram-se ligados à hermenêutica restos herdados da esfera sacral: é a única arte cuja palavra deve ser estabelecida como padrão de medida, que se acolhe com admiração porque pode compreender e explicitar o que oculta, seja em discursos estranhos, seja na convicção inexpressa de outro. Trata-se, portanto, de uma ars: uma técnica, como a oratória, a arte de escrever ou a aritmética. É mais aptidão prática do que propriamente “ciência”. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
É possível que não exista nenhum exemplo mais adequado para ilustrar os problemas aqui tratados do que a situação médica. Nessa situação, experimenta-se o conflito entre a ciência e a concreção da ajuda médica na unidade de um fazer profissional. De certo, semelhantes confusões sempre aparecem quando uma profissão baseada numa formação científica se exerce na mediação entre praxis da vida e ciência. Esse é o caso do jurista e do pároco, do pastor ou do professor. O caso da medicina, porém, reveste-se de um caráter modelar específico. Aqui as ciências modernas da natureza, em toda plenitude e grandeza de suas possibilidades, entraram em conflito direto com a situação básica de ajuda e cura medicinal que sempre se atribuiu ao médico. Esse conflito ultrapassa radicalmente a questionabilidade que de há muito acompanha a ciência médica. Na verdade, já é um problema muito antigo saber até que ponto podemos compreender a medicina como “ciência”, naturalmente como ciência prática, como tékhne, ou seja, como capacidade de produção. Isso porque, enquanto qualquer outro saber prático capaz de produção encontra a demonstração de seu saber em sua obra, a obra da medicina é marcada por uma ambiguidade insuperável. No caso concreto, é impossível distinguir até que ponto foram as medidas adotadas pelo médico ou o auxílio da própria natureza que restabeleceram a saúde do enfermo; por isso toda arte terapêutica — diferentemente de outras téknai — sempre precisou de uma apologia especial. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.
Creio que se torna necessário tematizar aqui as universalidades interativas da retórica, da hermenêutica e da sociologia em sua interdependência e esclarecer a legitimidade característica de cada uma dessas universalidades. Isso torna-se ainda mais importante à medida que comportam — principalmente as duas primeiras — uma certa ambiguidade em sua pretensão científica, co-determinada por sua relação com a praxis. Isso porque a retórica não é evidentemente uma mera teoria das formas de falar e dos recursos de persuasão. Ela pode, antes, progredir de uma capacidade natural para uma destreza prática. Sejam quais forem seus recursos e métodos, tampouco a arte da compreensão depende imediatamente da consciência pela qual segue suas regras. Também aqui a habilidade natural que todos possuem pode tornar-se numa capacidade pela qual alguém pode suplantar todos os outros, e a teoria, na melhor das hipóteses, só poderá perguntar pelo porquê. Em ambos os casos dá-se uma suplementaridade entre a teoria e aquilo de que foi extraída e que chamamos de práxis. Uma pertence à filosofia grega primitiva, a outra é uma consequência da dissolução tardia dos fortes vínculos da tradição e do esforço para manter o que está em vias de desaparecer, superando-o por uma consciência lúcida. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
Nesse sentido, o encontro com o cenário francês significa um verdadeiro desafio para mim. Derrida assevera que o Heidegger tardio não rompeu realmente com o logocentrismo da metafísica. Ao perguntar pela essência da verdade ou pelo sentido do ser, Heidegger segue falando, segundo Derrida, a linguagem da metafísica, que considera o sentido como algo que está à mão e que é preciso encontrar. Nessa questão, Nietzsche teria sido mais radical. Seu conceito de interpretação não significa a busca de um sentido simplesmente dado, mas a posição de sentido a serviço da “vontade de poder”. Somente assim rompe-se com o logocentrismo da metafísica. Essa continuação das ideias de Heidegger por obra sobretudo de Derrida, e que se apresenta como a radicalização dessas ideias, deverá repudiar logicamente a exposição e crítica de Nietzsche feita por Heidegger. Segundo Derrida, Nietzsche não representa o ponto extremo do esquecimento do ser, que culmina nos conceitos de valor e de ação. Ele constitui a verdadeira superação da metafísica, na qual Heidegger fica prisioneiro quando pergunta pelo ser, pelo sentido do ser como um logos a ser buscado. Não resta dúvidas de que, para fugir da linguagem da metafísica, o Heidegger tardio elaborou ele próprio sua linguagem semipoética. De ensaio em ensaio aparece uma nova linguagem, que impõe ao leitor a tarefa [334] de constante tradução dessa linguagem para seu próprio uso. A questão é saber até que ponto alguém consegue encontrar a linguagem para expressar essa tradução. A tarefa, porém, está proposta. É a tarefa de “compreender”. Sobretudo ao defrontar-me com os seguidores franceses, tenho plena consciência de que minhas próprias tentativas de “traduzir” Heidegger denunciam meus limites, e mostrando sobretudo até que ponto eu mesmo estou preso à tradição romântica das ciências do espírito e do legado humanista. Mas é exatamente frente a essa tradição do “historicismo” na qual estou imerso que adotei uma postura crítica. Numa carta pessoal já publicada, Leo Strauss já me chamara a atenção de que se Nietzsche constituía o ponto de orientação crítica para Heidegger, Dilthey o era para mim. Talvez a característica determinante da radicalidade de Heidegger tenha sido o fato de que sua própria crítica ao neokantismo fenomenológico de cunho husserliano acabou levando-o a considerar Nietzsche como o ponto extremo do que ele chama história do esquecimento do ser. Mas essa é uma afirmação eminentemente crítica que não se detém aquém de Nietzsche, mas ultrapassa-o. Na corrente nietzschiana francesa, sinto falta de um esclarecimento do que significa a dimensão sedutora do pensamento nietzschiano. Creio que é por causa dessa falta que chegam a pensar que a experiência do ser que Heidegger buscou descobrir por trás da metafísica é superada pela radicalidade do extremismo nietzschiano. Na verdade, a imagem de Nietzsche apresentada por Heidegger mostra melhor a profunda ambiguidade que se apresenta em seu pensamento quando se alcança segui-lo até seu ponto extremo e de ver em ação, justamente ali, o absurdo da metafísica, uma vez que a criação e transmutação de todos os valores acabam convertendo o próprio ser num conceito axiológico a serviço da “vontade de poder”. A tentativa de Heidegger de pensar o ser supera essa conversão da metafísica em pensamento axiológico, ou melhor, retrocede para além da própria metafísica, sem conformar-se com o extremismo de sua autodissolução, como acontece em Nietzsche. Esse perguntar retrospectivo não suspende o conceito de logos e suas implicações metafísicas, mas descobre sua unilateralidade e, por fim, sua “superficialidade”. Nesse sentido, o fato de o ser não se esgotar em sua automanifestação, mas, com a mesma originariedade com que se mostra, também se retraia e subtraia, isso reveste-se de uma importância decisiva. Essa é uma intuição autêntica defendida primeiramente por Schelling contra o idealismo lógico de Hegel. Heidegger retoma esta questão, reforçando-a com uma riqueza conceitual da qual Schelling carecia. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Mas a coisa se modifica quando se trata de um texto literário, e justamente por essa razão. A função do jogo de palavras não compactua com a ambiguidade polivalente da palavra poética. E verdade que as conotações que acompanham um significado principal emprestam à linguagem sua magnitude (Volumen) literária. Mas, pelo fato de subordinarem-se à unidade de sentido do discurso e evocar outros significados como meras ressonâncias, os jogos de palavras não são simples jogos de ambiguidade ou de polivalência que dão origem ao discurso poético. Neles confrontam-se unidades de sentido autônomas. O jogo de palavras rompe assim a unidade do discurso e exige ser compreendido numa relação de sentido reflexiva e superior. O uso reiterado de jogos de palavras e trocadilhos nos irrita, porque rompem a unidade do discurso. O princípio desarticulador do jogo de palavras dificilmente será eficaz numa canção ou num poema lírico, ou seja, sempre que prevaleça a figuração melódica da linguagem. Muito diferente é, obviamente, o caso do discurso dramático, onde a contraposição domina a cena. Basta lembrarmos a Stichomythia ou a autodestruição [355] do herói que se anuncia no jogo de palavras com o nome próprio herói”. Também é diferente o caso em que o discurso poético não origina o fluxo da narração, a desenvoltura do canto nem a representação dramática, mas se move conscientemente no jogo da reflexão, de cujos jogos especulativos faz parte a desarticulação de expectativas do discurso. O jogo de palavras pode exercer assim uma função fecunda numa lírica muito reflexiva. É o que ocorre na lírica hermética de Paul Celan. Mas há que se perguntar também aqui se o caminho dessa sobrecarga reflexiva de palavras não acaba se perdendo no descaminho. Surpreende com efeito que Mallarmé utilize jogos de palavras em ensaios de prosa, como em Igitur. Onde se trata, porém, de conjuntos sonoros de figuras poéticas, ele quase não joga com as palavras. Os versos de Salut parecem estratificados e preenchem uma expectativa de sentido em planos tão diversos como o de um brinde à saúde e de um balanço de vida, oscilando entre a espuma do champanhe na taça e o rastro ondulado que o barco da vida deixa para trás. Mas ambas as dimensões de sentido podem se realizar na mesma unidade de discurso como o mesmo gesto melódico da linguagem. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Decerto, o interesse do historiador é seguir e investigar, na formação do jogo da arte, os traços e as relações que o entrelaçam com sua época. Parece-me, no entanto, que Carl Schmitt menospreza a dificuldade dessa tarefa, legítima para o historiador. Ele crê poder reconhecer uma ruptura no jogo, através de cuja abertura transparece a realidade contemporânea, deixando entrever a função contemporânea da obra. Esse procedimento, porém, está cheio de ganchos metodológicos, como nos ensinou o exemplo da investigação de Platão. Mesmo que seja fundamentalmente correto desconectar os preconceitos de uma pura estética da vivência e inserir o jogo da arte e seu contexto histórico-temporal e político, parece-me errado encorajar alguém a ler o Hamlet como um romance policial. Creio que aqui não se dá uma irrupção do tempo no jogo, que seria reconhecível no jogo como uma ruptura. Para o próprio jogo não há contradição entre tempo e jogo, como admite Carl Schmitt. O jogo inclui e relaciona, ao contrário, o tempo junto com, e em seu jogo. Essa é a grande possibilidade da poesia, através da qual ela pertence a seu tempo e este a escuta. Nesse sentido geral, também o drama de Hamlet pode ser visto em sua atualidade política. Mas se, de sua leitura, deduzirmos que o poeta toma ocultamente partido a favor de Essex e Jakob, será difícil provar isso pela própria poesia. Mesmo que o poeta realmente estivesse entre os que tomam esse partido, o jogo produzido por sua poesia [380] deveria esconder de tal modo seu partidarismo, que mesmo a agudeza intelectual de Carl Schmitt fracassaria diante disso. O poeta que queira alcançar seu público deve levar em consideração que entre seu público encontra-se também o partido contrário. O que temos aqui, na verdade, é a irrupção do jogo no tempo. Ambíguo como é, o jogo só pode desencadear seu efeito imprevisível em jogando-se. Por sua própria essência, o jogo não pode ser um instrumento de fins mascarados, os quais teríamos de entrever para poder compreendê-lo de modo unívoco; enquanto jogo, permanece em uma ambiguidade insolúvel. A ocasionalidade presente nele não é uma referência preestabelecida, a única que poderia conferir significado a tudo. É, antes, a capacidade enunciativa da própria obra que consegue corresponder a cada ocasião. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO II
É evidente que não consegui convencer a Betti sobre o fato de que uma teoria filosófica da hermenêutica não é uma doutrina do método — correta ou falsa (“perigosa”). Quando Bollnow chama a compreensão de uma “produção essencialmente criadora”, isso pode ser um equívoco. Apesar de que o próprio Betti não vacila em qualificar dessa forma a atividade complementar ao direito na interpretação da lei. O certo, porém, é que não basta fundamentar-se na estética do gênio, como faz o próprio Betti. Uma teoria da inversão não permite superar a redução psicológica, que no mais ele mesmo reconhece como correta em si (na linha de Droysen). Desse modo, não supera de todo a ambiguidade que manteve a Dilthey entre psicologia e hermenêutica. Quando para explicitar a possibilidade da compreensão das ciências do espírito se vê obrigado a pressupor que somente um espírito de mesmo nível é capaz de compreender um outro, fica claro que uma tal ambiguidade psicológico-hermenêutica é insatisfatória. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.