Até que ponto o outro compreende o que eu quero dizer, demonstra-se pelo modo como ele prossegue a conversa. Com isso, o compreendido passa da indeterminação de sua direção de sentido para uma nova determinação, que permite ser compreendida ou mal-entendida. E isto o que acontece verdadeiramente no diálogo: O que se tem em mente articula-se, à medida que se torna algo [19] comura. A enunciação individual, portanto, está sempre inserida num acontecimento comunicativo, não podendo ser compreendida como algo singular. Por isso, falar de mens auctoris e da palavra “autor” só possui uma função hermenêutica onde não está em questão uma conversa viva, mas apenas exposições fixas. Aí surge a questão: Será que só compreendemos retrocedendo ao autor? E será que, quando retrocedemos, compreendemos suficientemente aquilo que tinha em mente o autor? E o que acontece quando isso não é possível porque nada sabemos sobre ele? VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Em todo trabalho filosófico do conceito encontra-se, portanto, uma dimensão hermenêutica, hoje em dia caracterizada de modo um tanto impreciso, com o termo “história do conceito”. Esse não representa um esforço secundário e nem significa que, em vez de falarmos das coisas, falemos dos meios de entendimento que usamos para isso, mas constitui o elemento crítico no uso de nossos próprios conceitos. Tanto o afã do leigo em exigir definições inequívocas, quanto o fascínio pela univocidade de uma epistemologia unilateral e semântica desconhecem não só o que seja linguagem, mas também o fato de que a linguagem do conceito não pode ser inventada, mudada ao bel-prazer, usada e abandonada. A linguagem do conceito brota, muito ao contrario, do elemento no qual nos movemos como seres pensantes. O que encontramos na forma artificial da terminologia são apenas as cascas endurecidas dessa corrente viva do pensamento e da fala. Também essa se introduz e sustenta pelo acontecimento comunicativo que realizamos ao falar e onde se constrói compreensão e entendimento. Esse parece-me ser o ponto de convergência entre o desenvolvimento da filosofia analítica na Inglaterra e a hermenêutica. Essa correspondência é, porém, limitada. Assim como, no século XIX, Dilthey acusou o empirismo inglês de carência de formação histórica, o postulado crítico da hermenêutica que se baseia na reflexão histórica não consiste tanto em dominar a estrutura lógica dos modos de falar, como é [114] o caso por exemplo do ideal da filosofia “analítica”, mas em apropriar-se dos conteúdos mediados pela linguagem, com todo o sedimento da experiência histórica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Há sem dúvida numerosas formas de conduta comunicativa pela linguagem que não se deixam submeter a essa finalidade. Trata-se de textos, na medida em que podem ser considerados tais ao aparecerem desligados de seus destinatários, por exemplo, em composições literárias. Mas, no próprio acontecimento comunicativo, eles opõem resistência a sua textualização. Vou destinguir três formas dessa linguagem para destacar, em seu pano de fundo, aquele que de modo eminente se torna acessível à textualização, ou melhor, o que realiza sua verdadeira vocação na figura textual. Essas três formas são os antitextos, os pseudotextos e os pré-textos. Chamo de antitextos àquelas formas de falar que resistem à textualização, porque nelas a situação de realização do diálogo é dominante. Delas faz parte qualquer tipo de chiste. O fato de não levarmos algo a sério, esperando realmente que seja compreendido como brincadeira, é um fenômeno que tem seu lugar no processo da comunicação e é ali que encontra sua sinalização: pode ser no tom de voz, no gesto que o acompanha ou na situação social etc. Mas não é possível, evidentemente, reproduzir essa expressão jocosa momentânea. É o que podemos ver também em outra forma clássica de entendimento recíproco: a ironia. O uso da ironia pressupõe um consenso comum prévio, que é seu pressuposto social. Quem diz o contrário do que pensa, mas está certo de que os outros sabem o que quer dizer, faz uso de uma situação de consenso funcional. A possibilidade de fixar por escrito essa “desfiguração”, que não é uma desfiguração, depende do grau de consenso comunicativo prévio e do acordo realmente existente. Conhecemos, por exemplo, o uso da ironia na antiga sociedade aristocrática, que inclusive passou diretamente para a forma escrita. O uso das citações clássicas, em geral degradando-as em sentido pejorativo, pertence a esse mesmo contexto. Isso serve também para a busca de uma solidariedade social, nesse caso, o controle superior dos pressupostos educativos, um interesse de classe e sua ratificação. Mas se as circunstâncias dessas condições de consenso não são tão claras, a passagem para a forma escrita torna-se problemática. O uso [348] da ironia representa, muitas vezes, uma tarefa hermenêutica extremamente árdua, e não é fácil de justificar a suposição de que se trata de ironia. Diz-se não sem razão que o tomar algo em sentido irônico não é mais que um ato de desespero do intérprete. No trato humano, ao contrário, há uma clara ruptura do consenso quando não se compreende a presença da ironia. Para que seja possível o chiste ou a ironia, é necessário um consenso básico. Por isso, quando alguém traduz seu modo irônico de expressar-se numa formulação inequívoca, isso dificulta grandemente o restabelecimento do entendimento entre as pessoas. Mesmo que isso seja possível, esse sentido unívoco da expressão assim obtido dista muito do sentido comunicativo do discurso irônico. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.