Gadamer (VM): Hermes

No século XIX a hermenêutica experimentou, como disciplina auxiliar da teologia e da filosofia, um desenvolvimento sistemático que a transformou em fundamento para o conjunto das atividades das ciências do espírito. Ela elevou-se fundamentalmente acima de seu objetivo pragmático original, ou seja, de tornar possível ou facilitar a compreensão de textos literários. Não é somente a tradição literária que representa um espírito alienado e novo, necessitado de uma apropriação mais correta, mas, antes, tudo que já não está de maneira imediata no seu mundo e não se expressa nele, e para ele, junto com toda tradição, a arte, bem como todas as demais criações espirituais do passado, o direito, a religião, a filosofia etc, encontram-se despojadas de seu sentido originário e dependentes de um espírito que as faça aflorar e intermedie, espírito que, de acordo com os gregos, chamamos de Hermes, o mensageiro dos deuses. E a gênese da consciência histórica, a que a hermenêutica deve uma função central, no âmbito das ciências do espírito. Mas a questão é de se saber, se o alcance do problema, que com isso se coloca, pode se tornar claro para nós, de maneira correta, a partir das premissas da consciência histórica. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Como costuma ocorrer com as palavras derivadas do grego e adotadas em nossa linguagem científica, o título “hermenêutica abarca diversos níveis de reflexão. Hermenêutica significa em primeiro lugar praxis relacionada a uma arte. Sugere a “tekhne” como palavra complementaria. A arte, em questão aqui, é a arte do anúncio, da tradução, da explicação e interpretação, que inclui naturalmente a arte da compreensão que lhe serve de base e que é sempre exigida quando o sentido de algo se acha obscuro e duvidoso. Já no uso mais antigo da palavra, detecta-se uma certa ambiguidade. Hermes é chamado o mensageiro divino, aquele que transmite as mensagens dos deuses aos homens: No relato de Homero, ele costuma executar verbalmente a mensagem que lhe fora confiada. Mas frequentemente, e em especial no uso profano, a tarefa do hermeneus consiste em traduzir para uma linguagem acessível a todos o que se manifestou de modo estranho ou incompreensível. Assim, a tarefa da tradução sempre tem uma certa “liberdade”. Pressupõe a plena compreensão da língua estrangeira e, mais do que isso, a compreensão da verdadeira intenção de sentido do que se manifestou. Quem quiser se fazer compreender como intérprete deve trazer novamente à fala este sentido da intenção. A contribuição que a “hermenêutica” pode fazer é sempre essa transferência de um mundo para outro, do mundo dos deuses para o dos homens, do mundo de uma língua estrangeira para o mundo da língua própria (os tradutores humanos podem traduzir somente para sua própria língua). Visto, porém, que a tarefa própria do traduzir consiste em “executar” algo, o sentido de hermeneuein oscila entre tradução e diretiva, entre mera comunicação e requisito de obediência. E certo que, em sentido neutro, hermeneia costuma significar “enunciação de pensamentos”, todavia é significativo o fato de que, para Platão, não é qualquer expressão de pensamento que possui o [93] caráter de diretiva, mas somente o saber do rei, do arauto etc. A proximidade da hermenêutica com a mântica não pode ser compreendida de modo diverso: a arte de transmitir a vontade do deus segue paralela à arte de adivinhá-la ou de prever o futuro mediante sinais. Mesmo assim, quando Aristóteles trata da questão do logos apophantikos, no tratado Peri hermeneias, ele só tem em mente o sentido lógico do enunciado, concentrando-se no outro componente semântico, puramente cognitivo. De modo semelhante, desenvolve-se no mundo grego posterior um sentido de hermeneia e hermeneus puramente cognitivo, que pode significar “explicação erudita”, “comentador” e “tradutor”. É claro que, enquanto arte, encontram-se ligados à hermenêutica restos herdados da esfera sacral: é a única arte cuja palavra deve ser estabelecida como padrão de medida, que se acolhe com admiração porque pode compreender e explicitar o que oculta, seja em discursos estranhos, seja na convicção inexpressa de outro. Trata-se, portanto, de uma ars: uma técnica, como a oratória, a arte de escrever ou a aritmética. É mais aptidão prática do que propriamente “ciência”. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Mas tampouco posso compreender por que o autor se distancia assim da relação dessa palavra com o Deus Hermes. Não posso partilhar o sentimento de triunfo do autor quando acentua que a moderna ciência da linguagem constatou que a derivação da palavra “hermenêutica” de Hermes não passa de uma ficção e que ignoramos seu significado etimológico (84, nota 160). Tomo conhecimento disso e não me deixo enganar quando vejo como Agostinho e toda a tradição compreenderam essa palavra. A referência a Benveniste (41, nota 17a) não pode alterar em nada a questão. O testemunho da tradição pesa muito, não como um argumento de linguagem, é claro, mas como uma indicação válida do alcance e universalidade com que se deve ver e se viu o fenômeno hermenêutico: como “mensageiro do pensamento”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.