Gadamer (VM): Bildung

Para o conteúdo da palavra “formação”, que nos é familiar, a primeira importante constatação é a de que o antigo conceito de uma “formação natural”, que se refere à aparência externa (a formação dos membros, uma figura bem formada), e sobretudo à configuração produzida pela natureza (p. ex., “formação de montanha”), foi naquela época quase inteiramente desvinculado do novo conceito. Formação integra agora, estreitamente, o conceito de cultura, e designa, antes de tudo, especificamente, a maneira humana de aperfeiçoar suas aptidões e faculdades. Através de Kant e de Hegel completa-se o cunho que Herder deu ao nosso conceito. Kant ainda não utiliza a palavra “formação” nesse contexto. Ele fala da “cultura” da faculdade (ou da “aptidão natural”), que, como tal, é um ato de liberdade do sujeito atuante. É por isso que, entre os deveres para consigo mesmo, cita o de não deixar enferrujar seus talentos, sem, nesse caso, utilizar a palavra “formação”. Hegel, ao contrário, já fala de formar-se e de formação ao acolher o mesmo pensamento kantiano do dever para consigo mesmo, e Wilhelm von Humboldt, com a capacidade auditiva que o celebriza, já percebe perfeitamente uma diferença de significado entre cultura e formação: “Quando nós, porém, em nosso idioma dizemos formação, estamos com isso nos referindo a algo ao mesmo tempo mais íntimo, ou seja, à índole que vem do conhecimento e do sentimento do conjunto do empenho espiritual e moral, a se derramar harmonicamente na sensibilidade e no caráter”. Aqui, formação não significa mais cultura, isto é, aperfeiçoamento de faculdades e de talentos. A ascensão da palavra formação desperta, mais do que isso, a antiga tradição mística, segundo a qual o homem traz em sua alma a imagem de Deus segundo a qual ele foi criado, e tem de desenvolvê-la em si mesmo. O equivalente latino para formação é formatio e corresponde noutros idiomas, p. ex., no inglês (em Shaftesbury) a form e formation. Também no alemão existem as correspondentes derivações do conceito de forma, p. ex., Formierung e Formation, há muito tempo em concorrência com a palavra BILDUNG (formação). Forma vem sendo inteiramente desvinculada de seu significado técnico desde o aristotelismo da Renascença, sendo interpretada de uma maneira puramente dinâmica e natural. Da mesma forma, o triunfo da palavra formação sobre forma não parece só acaso. Porque em “formação” (BILDUNG) encontra-se a palavra “imagem” (Bild). O conceito da forma fica recolhido por trás da misteriosa duplicidade, com a qual a palavra “imagem” (Bild) abrange ao mesmo tempo “cópia” (Nachbild) e “modelo” (Vorbild). VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Corresponde, no entanto, a uma frequente transferência do devir para o ser, o fato de que a formação (BILDUNG) (assim também a palavra “Formation” dos nossos dias) designa mais o resultado desse processo de devir do que o próprio processo. A transferência, aqui, é bastante compreensível, porque o resultado da formação não se produz na forma de uma finalidade técnica, mas nasce do processo interno de constituição e de formação e, por isso, permanece em constante evolução e aperfeiçoamento. Não é por acaso que, nesse particular, a palavra formação se iguala à palavra grega physis. Formação não conhece, como tampouco a natureza, nada exterior às suas metas estabelecidas. (Será mantida a desconfiança que a palavra e o assunto “meta de formação” merece, por ser, como tal, uma formação secundária. No fundo, formação não pode ser meta, não pode ser, como tal, desejada, a não ser na temática refletida do educador.) É justamente nisso que o conceito de formação supera o mero cultivo de aptidões pré-existentes, do qual ele deriva. O cultivo de uma aptidão é o desenvolvimento de algo já existente, de maneira que o exercício e a manutenção dela é um mero meio para o fim. Assim, o material de ensino de um manual linguístico é um simples meio, e não, um fim. Sua aquisição serve apenas à perícia linguística. Na formação, ao contrário, no que e através do que alguém será instruído, pode também ser inteiramente assimilado. Nesse sentido, tudo que ela assimila, nela desabrocha. Mas na formação aquilo que foi assimilado não é como um meio que perdeu sua função. Antes, nada desaparece na formação adquirida, mas tudo é preservado. A formação é um conceito genuinamente histórico, e é justamente o caráter histórico da “preservação” o que importa para a compreensão das ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1