GA3: § 37. – A idéia de uma antropologia filosófica.

Que comporta uma antropologia filosófica? Que é isto, em geral, uma antropologia e como ela se torna filosófica? Antropologia quer dizer ciência do homem. Compreende tudo aquilo que pode ser explorado da natureza do homem enquanto é um ser constituído de um corpo, de uma alma e de um espírito. O domínio da antropologia não engloba somente o estudo das propriedades, dados e constatações, que diferenciam propriamente a espécie humana relativamente ao animal e à planta, mas ainda aquele de suas disposições latentes e das diversidades de caráter, de raça e de sexo. E como o homem não aparece apenas sob a forma de um ser natural mas que ainda age e cria, a antropologia deve também buscar saber aquilo que o homem como ser atuante “tira de si mesmo”, aquilo que pode e deve tirar de si. Seus poderes e suas obrigações repousam finalmente sobre algumas posições fundamentais que o homem é capaz de adotar enquanto é humano. Estas posições levam o nome de Weltanschauungen e a “psicologia” destas circunscreve toda a ciência do homem.

Posto que a antropologia deve considerar o homem segundo sua dimensão somática, biológica, os resultados de disciplinas como a caracteriologia, a psicanálise, a etnologia, a psicologia pedagógica, a morfologia da cultura e a tipologia das Weltanschauungen devem nela convergir. O conteúdo de tal ciência é, por conseguinte, impossível de percorrer com o olhar, e mais profundamente heterogêneo em razão de diferenças fundamentais tocando a maneira de colocar os problemas, a exigência da justificação dos resultados adquiridos, o modo de apresentação dos fatos, as formas de comunicação, e sobretudo, os pressupostos fundamentais que orientam as investigações. Na medida onde todas estas diferenças, e finalmente a totalidade do ente, se deixam sempre relacionar ao homem de alguma maneira, e assim importam para a antropologia, esta se incha a ponto de que a noção desta ciência perde qualquer precisão.

A antropologia então só tem hoje em dia o nome de uma disciplina científica e este termo designa, todavia, uma tendência fundamental característica da posição atual do homem a respeito dele mesmo e da totalidade do ente. Segundo esta tendência, um objeto só conhecido e compreendido se recebeu uma explicação antropológica. Hoje em dia, a antropologia não busca mais somente a verdade concernente ao homem, mas pretende decidir sobre o sentido de qualquer verdade.

Nenhuma época acumulou sobre o homem conhecimentos tão numerosos e tão diversos como a nossa. Nenhuma época conseguiu apresentar seu saber do homem sob uma forma que nos toca sobremaneira. Nenhuma época conseguiu fazer deste saber algo prontamente e facilmente acessível. Mas também, nenhuma época soube menos o que é o homem. Para nenhuma época o homem apareceu tão misterioso. (Cf. Die Stellung des Menschen in Kosmos. 1928)

No entanto, a extensão e a incerteza dos problemas antropológicos não são próprios a fazer surgir uma antropologia filosófica e a favorecer potentemente seu desenvolvimento? A ideia de uma antropologia filosófica não fez nascer a disciplina à qual deverá se ordenar toda a filosofia?

Há alguns anos, Max Scheler falou desta antropologia filosófica: “Em um certo sentido, todos os problemas centrais da filosofia se deixam conduzir à questão de saber o que é o homem e qual é sua posição e situação metafísicas na totalidade do ser, no mundo e em Deus.” (Cf. Zur Idee des Menschen. Abhandlungen und Aufasätze, vol. I (1915, p. 319). Na segunda e terceira edição, os volumes são publicados sob o título Vom Umsturz der Werte.). Mas Scheler tembém viu, com uma acuidade particular, que a diversidade das determinações relativas à essência do homem não se deixa reunir sob uma definição comum: “O homem é um ser tão considerável, tão polimorfo e tão diverso que escapa sempre por um aspecto a qualquer definição. Seus ângulos são numerosos.” (Op. cit., p. 324.). Eis porque a preocupação de Scheler, preocupação que em seus últimos anos se reforçou e se renovou frutuosamente, era não apenas de alcançar uma ideia unitária do homem, mas ainda desenvolver as dificuldades essenciais e as complicações ligadas a tal tarefa. (Cf. Die Stellung des Menschen im Kosmos. 1928)

Mas talvez a dificuldade fundamental de uma antropologia filosófica não consista em obter uma unidade sistemática das determinações essenciais que se poderia fornecer deste ser diversificado. Não jaz ela no conceito mesmo de antropologia, sem que o saber, mesmo mais rico e o mais “espetacular”, possa ainda pretender camuflá-la?

Como, no fundo, uma antropologia se torna filosófica? É somente porque seus conhecimentos adquiriram um grau de generalidade que os distingue do conhecimento empírico, sem que inicialmente se possa precisar en que grau precisamente cessa o conhecimento empírico e começa o conhecimento filosófico?

Certo, a antropologia pode ser dita filosófica se seu método é filosófico, quer dizer se ela se aplica em considerar a essência mesmo do homem. Neste caso, a antropologia se esforça por distinguir o ente que chamamos homem da planta, do animal e dos outros tipos de entes, e busca por esta delimitação por em luz a constituição essencial específica desta região determinada do ente. A antropologia filosófica afirma-se, desde então, como uma ontologia regional tendo o homem por objeto, coordenada às outras ontologias que com ela partilham o domínio total do ente. Uma antropologia filosófica assim compreendida não pode ser considerada sem outra explicação como o centro da filosofia, e ela o pode menos ainda fundando esta pretensão sobre a estrutura interna de sua problemática.

É assim possível que a antropologia seja filosófica se, enquanto antropologia, ela determina ou a meta da filosofia, ou seu ponto de partida, ou ainda um ou outro a cada vez. Se a meta de uma filosofia reside no desenvolvimento de uma Weltanschauung, a antropologia terá a circunscrever a “posição do homem no cosmos”. Quando se tenta fundar a certeza do conhecimento, e proceder segundo a ordem que este esforço prescreve, o homem se põe como o ente absolutamente primeiro e certo. Mas, desde então, é inevitável que, seguindo o plano de uma filosofia assim concebida, a subjetividade humana venha a se pôr no centro da problemática. A primeira tarefa da antropologia é além do mais compatível com a segunda e todas as duas podem, enquanto sobressaem da investigação antropológica, se inspirar do método e dos resultados de uma antropologia regional do homem.

Mas estas diversas possibilidades de definir o caráter filosófico de uma antropologia já são suficientes para esclarecer a imprecisão desta ideia mesmo. Esta imprecisão cresce ainda se se tem conta da diversidade dos conhecimentos empírico-antropológicos sobre os quais toda antropologia filosófica deve se apoiar, pelo menos de partida.

Tão natural e compreensível pareça, apesar de sua equivocidade, a ideia de uma antropologia filosófica, tão irresistivelmente ela se reafirme apesar destas objeções, é igualmente inevitável que a “antropologia” no interior da filosofia seja alvo de ataques sempre renovados. A ideia de uma antropologia filosófica a principio é insuficientemente determinada, mas, além disto, seu papel no conjunto da filosofia resta obscuro e indeciso.

Estas falhas têm sua razão nos limites que a ideia de uma antropologia filosófica intrinsecamente comporta. Esta, com efeito, não foi justificada explicitamente a partir da essência da filosofia; só foi concebida em função da meta da filosofia tal qual aparece do exterior, e de se possível ponto de partida. Assim, a delimitação desta ideia acaba por reduzir a antropologia a uma espécie de refugo de todo os problemas filosóficos essenciais; salta aos olhos que esta maneira de considerar a antropologia é superficial e filosoficamente contestável.

Mas se, em certo sentido, a antropologia reúne todos os problemas essenciais da filosofia, como se faz que estes se deixem conduzir à questão da essência do homem? Esta redução não é possível porque se decidiu empreendê-la ou, ao contrário, detém, ela mesma, a natureza destes problemas? E se esta possibilidade é intrínseca, onde está então o fundamento desta necessidade? Pode ser talvez que os problemas essenciais da filosofia têm sua fonte no homem, não apenas no sentido que por ele são postos, mas ainda porque seu conteúdo intrínseco comporta uma relação ao homem? Mas em que medida todos os problemas essenciais da filosofia têm seu lugar na essência do homem? E quais são, portanto, estes problemas essenciais e onde é seu centro? Que é isto, filosofar, se a problemática filosófica é tal que encontra seu lugar e seu centro na essência do homem?

Enquanto estas questões não sejam desenvolvidas e precisadas no seu encadeamento sistemático, não se poderão ver os limites essenciais da ideia de uma antropologia filosófica. Só a discussão destas questões fornece uma base ao debate dobre a essência, os direitos e o papel de uma antropologia filosófica no seio da filosofia.

Sem cessar surgirão novas tentativas de uma antropologia filosófica que poderão se apresentar com argumentos plausíveis e defender o papel central desta disciplina sem, no entanto, poder fundá-la sobre a essência da filosofia. Sem cessar também aparecerão adversários da antropologia que poderão fazer notar que o homem não está no centro dos entes e que uma “infinidade” de entes encontram-se “a seu lado”, uma refutação do papel central da antropologia filosófica que não é em nada mais filosófica que sua afirmação.

Assim uma reflexão crítica sobre a ideia de uma antropologia filosófica não somente ilumina sua imprecisão e sua fatal insuficiência, mas manifesta antes de mais nada que não dispomos nem de uma base nem de quadros necessários para um exame aprofundado de sua essência.

Certamente Kant reconduz as três questões da metafísica propriamente dita a uma quarta questão sobre a essência do homem; mas será prematuro considerar neste caso esta questão como antropológica e confiar a instauração do fundamento da metafísica a uma antropologia filosófica. A antropologia não é suficiente, pelo único fato de ser antropológica, para fundar a metafísica.

Mas o verdadeiro resultado da instauração kantiana não foi de ter estabelecido a conexão da questão concernente a essência do homem com aquela do fundamento da metafísica? Esta conexão não deve fornecer o fio diretor da repetição da instauração?

A crítica da ideia de uma antropologia filosófica mostra, no entanto, que não é suficiente simplesmente pôr a quarta questão, aquela da essência di homem; ao contrário, sua imprecisão mesmo nos indica que finalmente ainda não tomamos, mesmo agora, posse do resultado decisivo da instauração kantiana do fundamento.