Flusser (PH) – a medicina é o maior escândalo da atualidade

A medicina é o maior escândalo da atualidade.

Mas é também um dos pontos de partida para a reformulação da ciência atualmente em crise. A medicina é híbrida na qual os elementos científicos, técnicos e intuitivos são mal aglomerados. A razão disto é que o doente é simultaneamente sujeito (agente) e objeto (paciente), e que, enquanto objeto, é objeto extremamente complexo. O médico assume posição insustentável com relação ao doente.
[…] O escândalo da medicina não é tanto a situação nos hospitais e manicômios, nem a injustiça flagrante da medicina social sobretudo no Terceiro Mundo, mas o escândalo é precisamente tal viscosidade epistemológica da medicina. Mas, precisamente, por destarte colidirem os fatores da crise científica mais claramente na medicina, pode ela representar um dos pontos, a partir dos quais uma superação da crise pode ser empreendida. A posição do médico face ao doente é de tal forma insustentável, que se vê obrigado a procurar por outra posição, por atitude científica nova. O médico se vê obrigado a mudar de atitude, não por considerações da teoria do conhecimento, mas pela problemática provinda [59] da sua práxis, a qual, por sua vez, é aplicação de teorias de conhecimento em crise. A crise da ciência moderna se manifesta, no médico, sob forma de conflito de consciência, e é pois interiorizada.

O engenheiro civil sabe, tanto quanto o cirurgião, da crise atual do conhecimento. Sabe que a exatidão, com a qual calcula a ponte, é problema. E sabe que a ponte terá efeitos sobre a situação que não são quantificáveis: efeitos estéticos por exemplo. Sabe ainda, que a ponte vai modificar a vida dos homens. Mas, enquanto funcionário do aparelho rodoviário, não se vê obrigado a assumir a responsabilidade por tais problemas. A sua competência é apenas a de construir pontes. O cirurgião está em posição diferente. A exatidão pela qual opera com o esqueleto é comparável com a da operação com o aço da ponte, os efeitos que a operação terá são igualmente incalculáveis, e a operação vai igualmente modificar uma vida humana. Mas o médico não pode safar-se da responsabilidade como o faz o engenheiro: queira ou não queira, o cirurgião se reconhece no operado. [FLUSSER, Vilém. Pós-história. Vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: É Realizações, 2019, capítulo 7]