Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Cioran (LI): ilusão da autodeterminação

sábado 25 de julho de 2020

Todas as vivências totais, todas essas vivências que mais nos envolvem, na realidade, nos superam. E nos superam pelo sentimento de irresponsabilidade que temos sempre que vivemos tais experiências. Por que só podemos conhecer os homens nos grandes acontecimentos da vida? Porque aqui a decisão e o cálculo racional não têm valor algum; tudo o que deriva dos valores e critérios exteriores desaparece para dar lugar a determinações mais profundas. É curioso que os homens exagerem o valor da decisão, da atitude nos grandes acontecimentos, quando neles somos mais irresponsáveis, estamos mais perto de nosso fundo irracional. Não temos durante as vivências totais o sentimento de uma invasão irresistível, de um processo que se desenvolve secretamente em nós e nos domina? De onde procede a ilusão da autodeterminação? A interpretação posterior dos homens os torna insensíveis à irracionalidade de um processo que só compreenderão mais tarde de maneira esquemática. E, ainda que na experiência do processo a irresponsabilidade seja evidente, o orgulho do animal racional não quer admitir o papel do destino interior nas grandes encruzilhadas da existência. Esse orgulho desaparece naqueles cuja existência é uma soma de encruzilhadas e em quem as vivências totais são tão frequentes que se sentem superados a cada momento. Quando se vive de forma extremamente intensa, os conteúdos do ser transbordam os limites de uma existência individual; tem-se então a impressão de que em nós palpitam forças desconhecidas, profundas e longínquas, que realizamos um destino do qual somos irresponsáveis. O nulo valor da decisão racional surge então com toda sua dolorosa evidência. Como indivíduos, temos fatalmente consciência de nossa limitação, de nossa insuficiência individual; por esse motivo nos sentimos doídos e surpreendidos quando a tensão íntima explode em conteúdos tão vivos, tão profundos e transbordantes, dando-nos a impressão de um interior infinito na consciência da fatal insuficiência de qualquer individuação.

[Excerto de CIORAN  , Emil. O Livro das Ilusões. Tr. José Thomaz Brum. São Paulo: Rocco, 2014 (ebook)]


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