Chauí: o encontro fortuito de causas

Convite à leitura crítica de um texto extraído de [CHAUI, Marilena. Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa. São Paulo: Editora Schwarcz, 2011->http://93.174.95.29/_ads/AF204F423E273A68996B8AE2859ACA09], p. 86-87.

Entretanto algumas recomendações são pertinentes nesta leitura: 1) não tomar referências a um “agente” como a um “sujeito”, e nem pronomes pessoais, como “nosso”, como “personalizações”. E mais importante, tentar ler a última frase assim: “Eis por que, desde Aristóteles, aprendemos a distinguir entre o acaso e o possível dizendo que o primeiro (exatamente como o necessário, ainda que por razões opostas) não está em no poder que diz e age como “nós”, e que o segundo é, exatamente, o que está em no poder que diz e age como “nós”. Ou seja, “eu”, “tu”, “ele”, “nós”, etc, é uma ilusão, mas para que haja uma ilusão há um poder de ilusão.

Desde Aristóteles, sabemos que contingência e acaso não são acontecimentos sem causa, e sim produzidos pelo encontro de séries causais independentes — ou, como diz Aristóteles, uma finalidade inesperada acontece no momento desse encontro. Assim, o primeiro nome da contingência e do acaso é encontro e encontro fortuito. Ou, como explica Aristóteles, a causa do acontecimento é acidental, pois produz um efeito que não estava previsto na causalidade de cada uma das séries, de tal maneira que um certo fim é realizado sem que estivesse previsto pelos agentes ou sem que estivesse presente nos meios, pois estes não visavam tal fim, e sim um outro. Por que encontro? Porque o acontecimento não é incausado, e sim o cruzamento de séries causais independentes. Por que fortuito? Porque a marca da contingência e do acaso é a indeterminação, pois tanto as causas que produziram o acontecimento poderiam não ter atuado como também nada assegura que o fim será realizado.

Ao contrário do acaso e da contingência, o necessário é o que acontece sempre e não pode deixar de acontecer como acontece; assim como o impossível é o que nunca acontece e jamais pode acontecer.

À distância do acaso e da contingência, situado entre o necessário e o impossível, está o possível, isto é, aquilo que, como o contingente e o acaso, pode ou não acontecer, mas que, diferentemente do contingente e do acaso, resultantes do mero encontro, é o que acontece se houver um agente com o poder para fazê-lo acontecer. Assim, o possível é o que está em poder de um agente fazer acontecer ou não. Desde Aristóteles, esse agente é a vontade como poder para escolher entre alternativas contrárias e para deliberar sobre o sentido, o curso e a finalidade de uma ação. Embora o possível seja, como o contingente, aquilo que pode ou não acontecer, no contingente o acontecimento se dá independentemente da deliberação do agente e da finalidade que este dera à sua ação, enquanto no possível o acontecimento resulta da escolha deliberada feita pelo agente, que avalia meios e fins de sua ação. Eis por que, desde Aristóteles, aprendemos a distinguir entre o acaso e o possível dizendo que o primeiro (exatamente como o necessário, ainda que por razões opostas) não está em nosso poder, e que o segundo é, exatamente, o que está em nosso poder.