Borges-Duarte: Dasein

O primeiro destes reptos foi, sem dúvida, aquele que o próprio uso do termo Dasein por Heidegger constitui. E hoje cada vez mais habitual contornar a dificuldade, deixando o termo por traduzir 1, com base em razões, fundamentalmente, de dois tipos: o primeiro, negativo, para evitar conotações desviadas ou espúrias (principalmente, a versão “óbvia” durante décadas em praticamente todas as línguas — e ainda hoje hegemônica em português — como “ser-aí”); o segundo, positivo, com base no argumento forte constituído pela constatação do novum de sentido instituído pelo uso heideggeriano do termo, que não se reduz às acepções tradicionais, filosóficas ou comuns (“existir”, “existência”, “vida”, “estar presente”), e até exclui algumas (a “existência” no sentido do “estar-aí-presente” das coisas, a que Heidegger chama Vorhandenheit), nem às variantes “inovadoras” inventadas — até mesmo pelo seu Autor, como être-le-là 2 — para tentar traduzir o seu sentido mais próprio. Heidegger procurou, de facto, embora tardiamente, evitar ser lido à maneira “existencialista”, quer jaspersiana, quer sartriana, directamente ligada a traduções de Dasein como “existência” (ou vida humana), ou como “ser-aí”, isto é, situado, que está e se sente “no mundo”, num sentido meramente ôntico, oscilante entre o sein bei do “estar-residindo no mundo junto dos entes”, e o caracter mais propriamente “intra-mundano” destes últimos, caracterizados, justamente, por não ser à maneira do Dasein (a “presença” das coisas de que o homem lança mão no seu quotidiano procurar fazer a sua vida). Para Heidegger é, contudo, importante essa relação vinculante entre o ”ser” e o seu “aí” compreensivo-sentinte-linguisticamente-articulado, âmbito da sua mostração fenomenológico-aletheiológica. Decidiu-se, por isso, adoptar uma tradução em que esse vínculo apareça, como em alemão, explícito, evitando embora, quer a versão mais habitual, como “ser-aí”, quer a que o próprio Heidegger sugere, como “ser-o-aí”, na medida em que ambas reduzem e orientam, em direcções distintas, o sentido pleno e original do termo, em que ambas essas conotações se conjugam, como num nó ôntico-ontológico, juntamente com as de existência e vida ou ser do ente humano, na sua facticidade. Para traduzir esse todo de sentido, por analogia com a formação da própria palavra alemã, escolheu-se a fórmula aí-ser, aqui adoptada em todas as traduções. O caracter de estranheza que, decerto, provocará a sua leitura em português, talvez crie uma rejeição, à partida e maioritariamente, em quem está habituado a ouvir outra fórmula, tacitamente vigente como versão óbvia do termo e do conceito nele capturado. Mas essa rejeição inicial deve, justamente, ser o apelo a compreender o sentido poderoso e rico do termo, que nem a sua não tradução em português, nem a sua versão vulgar permitem manter em vigor. Há, contudo, que ter em conta que o próprio Heidegger introduz, as vezes, uma ênfase especial ao separar com hífen os dois elementos da palavra: em Da-sein, em das Da-sein, chama-se a atenção para cada um dos elementos de sentido, mais que para o todo, para o plus de significação que resulta da sua aglutinação, acentuando, portanto, singularmente, um dos sentidos vigentes no termo: o de “ser aí” ou o de “ser-o-aí” 3, consoante o contexto. Decidimos, pois, deixar ao critério de cada tradutor a opção final, neste caso particular, depois de ouvido o parecer da equipa.

É, em qualquer caso, significativo que, nos Caminhos de floresta, seja esta forma hifenizada a que aparece mais amiúde, sendo relativamente escassa, e muitas vezes obrigada pelo contexto das citações dos autores que Heidegger chama ao diálogo e comenta, a sua ocorrência sem hífen. Neste último caso de citações de outros autores, houve de traduzir Dasein no seu sentido habitual de “existência”, “existir” ou mesmo “estar aí”. Esse uso não heideggeriano do termo explicita-se no corpo do texto, mediante a introdução do termo entre parênteses rectos.

  1. Veja-se, entre muitos outros, o caso paradigmático das duas traduções francesas de Ser e Tempo: tanto E Vézin como E. Martineau abdicam, com razões fundadas e próximas, de traduzir Dasein. O mesmo acontece com a maior parte das traduções recentes em língua inglesa, incluída a de Sein und Zeit por Joan Stambaugh e a dos Beiträge zur Philosophie por Parvis Emad e Kenneth Maly. Não sendo possível levar a cabo no âmbito deste Prólogo uma discussão em profundidade desta questão, limitar-nos-emos a indicar as linhas gerais de justificação da decisão por nós tomada.[]
  2. Veja-se a conhecida carta a Beaufret de 23 de Novembro de 1945: “Para mim, Da-sein não significa tanto me voilà!, quanto o que eu me permito dizer numa expressão talvez impossível em francês: être-le-là. E o le-là é igual a «aletheia»: Unverborgenheit (não-estar-encoberto) — Offenheit (abertura franca)” (in Lettre sur l’Humanisme, Paris, Aubier, 1964, 182-183ss.). Note-se que Heidegger emprega, aqui, como em muitos outros contextos, mas não em todos, o hífen para sublinhar a relação entre ser e aí, que tenta traduzir no que, em português, seria “ser-o-aí”. É sintomático, neste caso, que os próprios tradutores franceses, procedentes ou não da escola de Beaufret, não sigam a sugestão de Heidegger e decidam, pura e simplesmente, não traduzir o termo. Veja-se, a este propósito: E. Vézin, “Übersetzung ais phänomenologische Arbeit”, Heidegger-Studies 3/4 (1987/88), 142 ss.[]
  3. Recorde-se que, na já mencionada carta a Beaufret, é justamente para expressar a intenção de sentido de Da-sein (e não de Dasein) que Heidegger sugere être-le-là (ed. cit, 182).[]