Na análise existencial de raiz heideggeriana, de que os Seminários de Zollikon dão enquadramento explícito, o tempo do mundo é o tempo onticamente experimentado e vivido. Tal como Heidegger o caracteriza nesses Seminários, tem as três dimensões do tempo ex-stático do Dasein (em sentido próprio ou impróprio) e a tendência para a degradação ou queda, como na exposição de Ser e Tempo, mas enriquecidas agora no exercício fáctico do viver concreto de cada um, no seio do seu mundo circundante. Essa integração conceptual da singularidade de cada caso implica, pois, a consideração de características metaontológicas no enquadramento da concretude do nosso quotidiano estar-ocupado em fazer pela vida. Ora, passado, presente e futuro significam, no nosso dia a dia, datas festivas e significativas, expectativa de encontros e de realização de tarefas, momentos de paz ou de inquietude, tempo de dor e de alegria. É o “tempo de”, o “tempo para”: aponta para algo concreto (é hora disto ou daquilo), pelo que manifesta, diz Heidegger, como primeira característica uma Deutsamkeit, definindo projetivamente metas e prazos, anúncios e determinações… É, por outro lado, marcado mediante a datação (Datiertheit) que implica, em segundo lugar, a experiência do tempo como o dia em que algo se passa, ou passou ou passará. Não tanto no sentido do calendário, mas no do estar-dado do tempo: agora, que vos estou a falar, ou logo, quando formos jantar, ou antes, quando cheguei a São Paulo, mas também o dia D. Ou o dia de aniversário (talvez a única maneira heideggeriana de marcar um nascimento…). Contudo, em terceiro lugar, esse tempo significativo e datado dilata-se — é-lhe inerente uma forma de dar-se que consiste em uma zeitliche Weite, um horizonte temporal em que se unem datas e metas, perspectivas que não se reduzem nem se medem pelo tique-taque de um relógio (não são meros pontos idênticos entre si e sem extensão), mas um agora ou um logo, que têm uma “amplitude temporal” própria e variável, que pode ser a da conversa no café ou a do inverno passado. O dia D não designa as 24 horas desse dia, mas a forma dilatada como foi vivido, como foi experimentada na consciência dos que o viveram, ou dos que o recordam, ou dos que ouviram falar dele. Tem o cunho, simultaneamente, do acontecimento (instantâneo) e do estender-se do tempo duração (dilação): a fixação do instante em que um tempo (de duração imprecisa) se abre.
O tempo do mundo é, pois, um tempo rico e denso de vida, “onde” algo acontece ou se dá, que nos afeta e que acolhemos afetivamente na compreensão, que é o exercício da nossa própria existência. Nela, por isso, abre-se no mundo o espaço de jogo do tempo em que o ser de tudo quanto há e o nosso próprio acontece. Esse acontecimento é sempre, em cada caso, meu: acontece-me. Mas, no entanto, também é público: “o agora que, datado, aponta para, estendendo-se, nunca é um agora que só esteja ligado a mim” (Heidegger, 1987, p. 60). É-me acessível no ser com os outros, no desempenho mundano do conviver quotidiano, em que, decaindo, tendemos a deixar-nos ir e arrastar pelo impessoal. O tempo articula, pois, indelevelmente, segundo Heidegger, o nosso ser uns com os outros: é uma dimensão de relação, de encontro. Não podia ser assim no início da vida infantil, que Heidegger não teve em consideração: teve que ser apreendido na lenta experiência desde a infância até a adolescência, e retido na elaboração inteligente e afetiva do adulto.
No entanto, se, sem esquecer a perspectiva genética que desenvolvemos nos dois momentos anteriores dessa proposta de leitura, tomarmos agora e para terminar a questão do ponto de vista heideggeriano da realização plena da vida humana na quotidianidade do seu ser — autêntica e inautenticamente — enquanto Dasein, desembocamos em uma conclusão, que me parece que não só não contradiz, como completa aquela via genética. Por duas razões:
Em primeiro lugar, porque, na perspectiva heideggeriana (quer na Ontologia Fundamental, quer na História do Ser — ambas unidas na articulação de Zollikon), a temporalidade é a modalidade de articulação, que é afetiva e inteligente, da existência enquanto ser-no-mundo uns com os outros. O que só pode dar-se mediante um exercício a que o primeiro Heidegger chamava a Abertura (Erschlossenheit) ao mostrar-se veritativo do ser, isto é, ao desencobrir-se das coisas e dos humanos no mundo.
Todavia, em segundo lugar, essa Abertura — que é a possibilidade de presença e de acolhimento de tudo quanto há — dá-se na instantaneidade da apropriação recíproca do ser pelo seu aí e do aí pelo ser, cuja estrutura Heidegger vem a descrever como Abertura às quatro regiões ontológicas, o Geviert, espécie de rosa dos ventos que indica os pontos de fuga pelos quais o ser humano, enquanto Dasein, espelha a quadrindade: o terreno e o celestial, o mortal e o divino na sua inter-relação e entrecruzamento. Se é certo, como sublinha Loparic (2008, p. 114), que “os bebés não moram na phy-sis nem no Geviert (a quadrindade), mas no colo da mãe, do qual o berço é uma extensão não tematizada como tal pelo bebê”, não me parece menos certo que o sentido do processo de amadurecimento deveria poder conduzir à plenitude (que aquela expressão resume) da abertura ao mundo e ao Outro, de quem existe, desde a vida intrauterina, na inconsciente clausura ôntica do casulo mãe-bebê, em que o seu ser nasce e se forja.
Gostaria de terminar usando essa expressão, para recuperar nela quer o mito de que partimos, em que se dá sentido a uma génese, quer o percurso analítico que abarca o processo genético em toda a sua complexidade. Neste, dá-se a passagem do uno ao múltiplo, mediante a fratura da unidade mãe-bebê e a introdução da díade, que o aparecimento do Pai potência e abre ao mundo, em uma triangulação poiética, sem a qual o bebé tenderia a ficar preso à fantasia alucinatória e de onipotência ligada à fase pré-temporal da relação indistinta e fusional. Na Abertura à quadrindade está, talvez, o sentido pleno da vida humana, nas suas dimensões de nascimento e ligação à Mãe-Terra e de desaparição urânica, em que se desenha a diferença entre o mortal e o imortal. Contudo, esse sentido pleno dá-se no Tempo e com o tempo, na compreensão densa de afeto que é a experiência humana.
Nós, humanos, somos todos, como Zeus Kroníon, filhos do Tempo. E temos de vencer, racional, realista e criativamente, o medo de ser devorados pelo Pai, reconhecendo embora a nossa condição de mortais.