Em Gerd A. Bornheim a questão de finitude torna o mesmo posicionamento. Ele começa salientando que “o esquecimento do ser deve ser entendido através da entificação do ser. O modo como se verifica a entificação pode ser visto no conceito metafísico de participação; se o ser, é, por exemplo, a ideia, todo outro que não o ser participa da ideia, e por isso mesmo o outro que não a ideia é menos ser. Todo pensamento metafísico se move no espaço entre o logos e a physis, de tal maneira que o privilégio é emprestado ao logos em detrimento da physis. Do ponto de vista negativo, é justamente este detrimento que informa a evolução do pensamento metafísico; tudo se passa como se a physis devesse ser descartada, a fim de que o logos chegasse a ser plenamente ele mesmo – e tal for realmente o programa que se propôs explicitamente o idealismo da etapa final da Metafísica: o diferente do ser deve ser integralmente absorvido pelo ser no caso de Hegel, pelo Espírito -, porque só assim o ser pode realmente ser em toda a sua soberania”. 1. E mais adiante : “O processo de entificação do ser acarreta duas consequências principais, intimamente entrosadas. A primeira é que o ser mesmo não é pensado em sua diferença em relação ao ente, já que ele sempre assume as feições de um ente determinado. A segunda, decorrência inevitável da primeira é que mesmo o pensamento do ente se torna prejudicado. Ou melhor: a Metafísica, a rigor, só pensa um ente – o ente que desempenha a função de ser, de medida do real”2.
Mas dando prosseguimento ao tema metafísico heideggeriano, Gerd Bornheim suscita algumas questões relacionadas às dificuldades encontradas por Heidegger para conciliar o problema ontológico do pensar, isto é, o problema do ser enquanto ser com o problema da praxis, justamente na parte que interessa à ação do ente. O questionamento em tela encontra-se no capítulo II intitulado “Heidegger e a Praxis” de seu livro já citado, quando ele após observar o papel iluminado do Ser no Ente enquanto discurso de vital’ importância no processo da manifestação da Verdade, e após salientar também a importância da techne como elemento ontológico, que, para ele, não é um mero fazer humano, aproximando-a tão somente da essência da arte, assinala que técnica e praxis são conceitos próximos; cabendo mesmo dizer que, a técnica, de certo modo, é uma dimensão da praxis.
Bornheim mostra que não vale somente apresentar a praxis como aspecto incomensurável que foge ao domínio do sujeito, porque se formos levar essa tese até “as suas últimas consequências, então calamos o homem, e a praxis ser legitimada numa concepção mágica ou determinista de História. De qualquer modo, prossegue Bornheim, aquele elemento incomensurável corresponde a uma dimensão autêntica de praxis, há qualquer coisa nela como a presença próxima de um mandado do ser e é precisamente isso que impede ou torna absurda a ação aleatória”, a praxis se dá sempre no interior de um contexto, de um sentido que transcende qualquer desiderato particular. Mas justamente nesse ponto, faz-se necessário atentar para uma ambiguidade radical, característica de toda praxis. Porque se de um lado há um transbordar do sentido, nele, de outro lado, a minha ação, enquanto comportamento instaurado pela subjetividade, deve ser reconhecida e legitimada; realmente, não existe a possibilidade de considerar a praxis se não houver o reconhecimento da importância essencial da decisão, seja individual ou coletiva – o que parece valer menos para a técnica moderna. E então, observa Bornhein, podemos talvez entender a dificuldade em que tropeça Heidegger. Ele assevera que a essência da técnica não é nada de técnico. Mas pode-se afirmar que a essência de praxis dispensa a ação efetiva do sujeito? Onde estaria nesse caso a sua essência? No mandado do Ser? E se tal fosse o caso, não se desautorizaria a iniciativa humana? Porque sem essa iniciativa a praxis simplesmente não tem sentido; sequer existe. Toda a questão parece estar aqui : segundo Heidegger, se quizéssemos valorizar a praxis, teríamos que reabilitar a dicotomia sujeito-objeto, visto que a praxis, em sua essência, não pode prescindir de certa proeminência do sujeito. Coloquemos novamente a questão: porque Heidegger pergunta insistentemente o que é pensar? E porque não existe em sua obra esta outra pergunta: o que é agir? 2
Após fazer observações interessantes sobre a ambiguidade no Pensamento e na Ação, Bornheim refere-se a outros setores que não os pensados por Heidegger, e antes de tudo à ação. O modelo do pensar se aplicaria também ao agir, à praxis? Ou seja: a essencial presença do incomensurável na praxis pode ser elucidada de modo análogo ao modelo de pensar? Não se verificaria no agir muito mais uma inversão no relacionamento entre o incomensurável na praxis pode ser elucidada de modo análogo ao modelo de pensar? Não se verificaria no agir muito mais uma inversão no relacionamento entre o incomensurável e o mensurável? A preeminência, no caso da praxis, caberia então ao mensurável, porque, só assim, a praxis poderia ser praxis, só assim conseguir-se-ia atingir a praxis em seu ser próprio. E se tal for a situação, a praxis se afasta necessariamente do modelo do pensar. 3
Bornheim faz em seguida, exemplificações a respeito das distinções existentes entre pensar e praxis, isto é, aos dois aspectos fundamentais da praxis: o incomensurável e o mensurável. Observa : o mensurável encontra a sua última medida no incomensurável, no sentido de que á ação particular termina como que se perdendo no imponderável da evolução histórica. Mas de outro lado, o incomensurável, se for destituído da função construtora do mensurável, perde a sua própria razão de possibilidade; se a História se explicasse somente pelo incomensurável deixaria de ser humana, o que significa que o ser mesmo do incomensurável depende essencialmente do mensurável. A praxis vive nessa ambiguidade. O elemento mensurável de praxis efetiva encontra sua medida, a despeito de si, no incomensurável, talvez para assumir um novo sentido, já que a praxis não pode saber ou prever todas as implicações que traz em seu bojo. Mas o incomensurável só é, só tem ser, porque se nutre da ação concreta do homem, a ponto de se poder dizer que o homem deve agir como que ignorando o elemento incomensurável. E isso não se verifica no pensar, todo voltado para a sondagem do incomensurável. Nesse sentido, a relação entre os dois aspectos, o mensurável e o incomensurável se revela oposta na ação e no pensar”. 4
Comentando, a obra de Heidegger, Carta sobre Humanismo, ainda sobre a questão do pensar e do agir, Bornheim diz que a ação não participa da história do ser de modo análogo ao pensar. Advém de tudo isso que o Ente tende a ser esquecido com o escapismo de Heidegger em relação à praxis. 5 Com efeito, adverte Bornheim e Heidegger persegue a diferenciação sempre maior do ser, isso se fez a favor do ser, e o ente tende a ser esquecido. A diferença do ser incide em certa indiferença em relação ao ente. Digamos que Heidegger situa o ente na perspectiva do ser, e não considera o ser na perspectiva do ente – a praxis, por exemplo. E a razão é sempre a mesma : o perigo do esquecimento do ser. Mas Heidegger só pode exacerbar a ideia de ser, dissemos, porque não pensa o ser na relação ou na diferença; a diferença é necessariamente diferença de algo, e só há diferença em função desse algo”, 6
Por isso, assevera Bornheim; “o ser só é o ser, e desde si relaciona-se com o ente, mas a relação inversa não existe. Cria-se, assim um.abismo entre a história do ser e a história do que o homem faz. A Metafísica não tinha olhos para a contingência humana e para o fazer. histórico. Heidegger prolonga essa cegueira”. E mais adiante: “Convém insistir no aspecto que nos parece mais essencial em toda esta problemática. O pensamento da diferença só apresenta sentido se estiver endereçado à reabilitação do ente. O que quer dizer aqui reabilitar o ente? Quer dizer considera-lo em seu ser próprio, em sua finitude irredutível. Tudo deve desaguar na desalienação do ente, mesmo porque, se não for assim, a exaustiva crítica a que Heidegger submete a Metafísica perde a sua razão de ser. O processo metafísico de entificação do ser acarreta o desprestígio do mundo dos entes finitos e, nesse sentido, vimos que a Metafísica é essencialmente niilista, ela modifica a finitude, a entidade do ente. Quando se-diz que o ser é a Ideia, e que tudo tem que ser na medida em que participa da Ideia, então a alteridade, o outro que não a Ideia, termina diminuído em seu ser próprio; o outro não é propriamente, só a Ideia presente nele é. Ou quando digo que o ser é a matéria, e que tudo se explica pela matéria, obstaculizo o caminho de acesso ao ser da história, ao ser da linguagem, ao ser da consciência, etc.; mesmo no caso de ciência provar que a linguagem ou a consciência são redutíveis à matéria, ou se explicar como tendo na matéria a sua causa, isso deixará incólume a questão ontológica, porque a consciência não é matéria, e a linguagem não é matéria; matéria, linguagem, consciência, história, tem o seu ser próprio. Se quisermos acceder à realidade finita naquilo que é, devemos abandonar as teses metafísicas espiritualistas e materialistas juntamente por serem metafísicas, ou seja, por reduzirem o real a uma identidade primordial e em si mesma indiferenciada, razão pela qual não conseguem alcançar as diferenças do real. O pensamento finito da finitude move-se no espaço das diferenças, precisamente para poder atingir a finitude. Portanto, o que interessa não é pensar uma suposta identidade metafísica que não existe, e sem a diferença que envolva tudo o que é finito pelo simples fato de ser finito. E nesse ponto crucial, o pensamento de Heidegger revela-se precário. Devemos pensar, sim, a diferença, entre ser e ente, mas esse pensamento só apresenta sentido se redundar no pensamento da diferença do ser do ente finito, porque, se isso não se verificar, desmente-se toda a crítica à Metafísica pela adoção de uma metafísica mitigada. De que serve afirmar a finitude radical- do ser, pergunta Bornheim, se o sentido dessa afirmação não estiver no reconhecimento da finitude radical do ente”? 7
As conclusões de Bornheim são, neste aspecto, isto é, “embora a praxis não encontre a sua medida na dicotomia – já que ela se insere na totalização – “nada impede que ela se verifique dentro da dicotomia, pois na medida em que ela não pode prescindir da dicotomia, a praxis se dá através do homem, e não apenas para o homem. E se tal é o caso, o processo totalizador se faz com o concurso humano, ou seja, o desvelamento do ser passa a depender deste ente particular que é o homem : o homem participa do desvelamento.
Há, como se vê, uma maneira de ajustamento, fazendo com que o ente se vincule ao ser. O processo totalizador coincide com o mandato do ser, que não pode por sua vez, de modo algum, prescindir da praxis. Neste caso, o sujeito não deve ser marginalizado.