Hermenêutica, segundo Carneiro Leão, referindo-se ao verbo hermeneuen significa transmitir, trazer mensagens, Ho hermenéus, o mensageiro, pode ser posto em referência com Hermes, o mensageiro dos deuses. Ele traz e transmite a mensagem do destino que trama as vicissitudes da história dos homens. Nem toda interpretação é uma hermenêutica. Somente aquela que descer até a dinâmica do destino que estrutura a história 1
Paul Ricoeur que introduziu, entre nós, vários trabalhos sobre hermenêutica através de livros e ensaios, aludindo às duas maneiras de fundar a hermenêutica na fenomenologia, assevera que a “via curta” de tal ontologia da compreensão, à maneira de Heidegger é por demais simplista, já que não se adapta a uma epistemologia da interpretação. E chega mesmo a criticar Husserl que partindo de um universo platonizante em busca de uma epistemologia mas ou menos idealista da consciência puramente interpretativa, acabou abrindo na Krisis, uma brecha para o Lebenswelt, isto é, para o mundo da vida, que vai acabar na ontologia da compreensão heideggeriana. Ricoeur embora reconhecendo a grandiosidade do Dasein, adverte que esta não daria margem para uma demorada interpretação linguística, em suma, tornaria inviável uma metodologia exegética em termos analíticos, semânticos, etc.
A nós pouco importa esta discriminação, pois Ricoeur reconhece mesmo que “o compreender torna-se um aspecto do “projeto” do Da-sein e de sua abertura ao ser. A questão da verdade não é mais a do método, porém, a da manifestação do ser, para um ser cuja existência consiste na compreensão do ser. 2 E o projeto do Da-sein que não passa de um modo de ser do ente do compreender de um modo do ser, estaria para ser elevado à categoria de uma epistemologia que no plano da linguagem daria todas as chaves possíveis para se chegar a indicações precisas, a resultados mais ou menos necessários para a elucidação da problemática existencial.
Não deixa de, ser interessante a tese de Ricoeur e seus projetos analíticos e linguísticos no campo da exegese, capazes de uma formulação de conceitos intelectivos e fixistas.
Mas isto seria tirar a legítima beleza que inspira a ontologia da compreensão heideggeriana, já amplamente enriquecida semanticamente, através das línguas grega e alemã, pois ninguém pode contestar a riqueza destas duas línguas, na plenitude de seus significantes e significados.
A rigor, como já se tem dito, a filosofia existencial de Heidegger, cuja essência é a existência, é desvelante, com seu brilho próprio, do ser que ilumina o ente. Ora este ente iluminado pelo Ser, não permanece isolado no mundo, ele não é um ser com outro, ou com outros, é um ente que convive com uma pluralidade de entes na base de uma liberdade que é por si mesmo ontológica.
Ora, é exatamente pela palavra, pela linguagem que o ente se comunica com o outro, formando aí o seu mundo intersubjetivo, de intercomunicação, de convivência social, de historicidade, enfim.
Como diz Vicente Ferreira da Silva 3 “a palavra é o elemento de mediação que nos põe numa realidade revelada e intelegível, numa órbita de possibilidades humanas. Negando e transcendendo a fermentação incoerente dos existentes nos quadros simbólicos de um sistema de significados, o homem ingressa na dimensão histórica, pois a superação humana do sensível, segundo Grassi, dá-se na palavra. E Heidegger já observava que a palavra não constituía, propriamente, uma faculdade para o homem, pois ele já mora no ser, o homem existe na verdade do ser que abriga a palavra.
Diz, ainda, Ferreira da Silva que “acompanhando a concepção meramente instrumental e técnica do pensamento, a palavra também foi estudada como um meio de domínio e de controle do Ente. A relação entre a linguagem e as coisas patenteou-se como uma relação intramundana entre duas classes de Entes. Com isto se dissimulou o acontecimento original da palavra, que permite que o Ente reine e se manifeste. A palavra – instrumento não realiza, entretanto, a possibilidade íntima do dizer. A interpretação falaciosa da essência da linguagem é atribuída por Heidegger ao predomínio da metafísica da subjetividade que determinou e continua a determinar todas as nossas categorias filosóficas.4 E citando Heidegger: “A decadência dá linguagem não é o fundamento, mas sem uma das consequências do fato de que a palavra, sob o domínio da metafísica da subjetividade, foi continuamente arrancada ao seu elemento. Costumamos representar a essência da linguagem como uma circunstância simbólica, intencionalmente dirigida para um mundo de significados objetivos. A linguagem seria um dos, expedientes inventados pelo eu para comunicar e assegurar seus conteúdos mentados. Heidegger entende que devemos pensar a palavra sob um ponto de vista inteiramente novo e revolucionário. Quando, entretanto, a verdade do ser tornar-se pensável pelo pensamento, a reflexão sobre a essência da palavra terá adquirido uma nova importância. Poderemos compreender, então, prossegue Ferreira da Silva de que modo a palavra possa constituir a morada do ser, e de que modo pode o homem, ek-xistindo, habitar essa morada. Nesta concepção, o homem passa a ser interior à palavra, instituído em sua configuração histórica particular pela abertura projetante do dizer poético. No Holzwege, encontramos esta afirmação: “Quando a palavra nomeia pela primeira vez o Ente, este nomear traz o Ente à linguagem e à manifestação. E através da linguagem, do edifício invisível da palavra, que estamos expostos ao Ente revelado; a palavra é pois o jato de luz que franqueia um mundo à humanidade histórica. A linguagem assim compreendida é essencialmente poesia, isto é, palavra que nomeia os entes naquilo que eles são” 4
Tão importante para Heidegger é a palavra que ele mesmo no seu Holzwege, traduzido para o francês Chémins qui ne mènent nulle part, estuda com rara beleza, a significação da palavra como horizonte do ser, esta palavra que, entretanto, expõe ininterruptamente o homem ao risco, isto é, o ser libera o ente ao risco. E é esta liberação que projeta o ente, abandonando-o na aventura de ser no mundo.
Hölderlin e Rilke são dois poetas prediletos de Heidegger que foram apreciados para a explicitação de sua temática que leva o homem inapelavelmente ao abandono. O homem, como ser, traz dentro de si a vontade que tem um caráter de autocomando, mas que imbuindo-se de caráter imperativo pode conduzi-lo a situações perigosas que são capazes de complicar-lhe a existência. Neste ponto, Heidegger diz que o homem é mais arriscado, isto é, é mais levado ao risco que os demais animais em face do caráter totalitário do querer. Entende que ele se condena ao desabrigo por imposição de seu próprio querer. Neste caso, ele só se abriga no seu interior, isto é, dentro de si próprio. Conforme os casos, tem de velar seus intentos e seus propósitos para sobreviver, sobretudo, num mundo ultracompetitivo, como o que estamos vivendo. O ser então tem de ser o guia do ente como tal.
A palavra constitui sempre um risco e o dizer é daquele que mais se arrisca, pois todo ente é um arriscado para o ser.
Compreende-se, agora, em toda linha, a amplitude e a profundeza da ontologia da compreensão em Heidegger cujo ser tem evidente a sua delimitação, como ser e vir-a-ser, como Ser e Aparência, como Ser e Pensar, como Ser e Dever Ser, conforme se lê na “Introdução à Metafísica”, na correta tradução de Emanuel Carneiro Leão para “Tempo Brasileiro”.
E foi sentindo a profunda significação da temática do desvelamento do ser pela palavra e da compreensão em Heidegger que o. conhecido psiquiatra e psicanalista Ludwig Binswanger introduziu a filosofia existencial heideggeriana na Psicanálise freudiana em seu conhecido trabalho “Introduction à l’Analyse Existencielle”, 5 mostrando como a palavra ou o modo de ser do ente intramundano pode ser utilizada com sucesso pelos analistas na terapia psicanalítica, evidentemente, pelo desocultar das coisas que estão ocultas na mente.
- NA: Carneiro Leão, E. – Op. cit. p. 195.[↩]
- NA: Ricoeur, Paul – O Conflito das Interpretações. IMAGO Ed. p. 12.[↩]
- NA: Ferreira da Silva, Vicente – Obras Completas IBF. S. Paulo, p. 121.[↩]
- NA: Ibid. p. 262.[↩][↩]
- NA: Binswanger, Ludwig – Introduction à L’Analyse Existencielle, Editions de Minuit, Paris.[↩]