Barbuy: Das capas da realidade

Quando começamos a perguntar o que é a realidade, começamos também a perguntar o que é. A primeira visão que se nos oferece neste mundo sujeito à mudança e à corrupção é constituída por um conjunto de qualidades, de fenômenos — (o que Heidegger recentemente denominava “mundo à mão”, zuhandene Welt); a primeira capa da realidade não é senão aquela que os sentidos percebem, feita só de mudança e de acidente, dos objetos que nos cercam e com os quais vivemos, de cuja realidade não duvidamos e com os quais estamos numa relação vital. Porém, apenas começamos a perguntar o que são estas cousas todas; apenas começamos a olhar para o mundo como para um espetáculo estranho, logo a realidade com a qual vivemos se desfaz sob um aspecto inteiramente diverso. Os fenômenos desaparecem como sombras, as qualidades se esvaem como superfícies ilusórias e no lugar de uma realidade feita de objetos tangíveis, surge um universo intangível, científico, de relações, de números, de leis invariáveis. O mundo das essências platônicas se opõe ao mundo das sombras ilusórias. — Estas duas capas da realidade, a capa dos fenômenos, dos acidentes, dos seres que somente existem em outros seres e por causa deles — e a capa sucessiva das propriedades explicativas da natureza constante das relações entre os fenômenos, são dois mundos inteiramente distintos. O mundo da experiência direta, zuhandene Welt, se distingue totalmente do mundo da experiência científica: Begrieffs Welt.

Contudo, se a primeira capa da realidade é uma capa de aparências, nem por isso a segunda é uma capa dessas realidades “realmente reais” que a metafísica procura desde os gregos. Porque as relações constantes entre os fenômenos — os aspectos abstraídos do mundo sensível — e tornados objetos das ciências particulares, não exaurem a realidade, porque esses aspectos particulares têm que ser aspectos de alguma cousa — e então — essa cousa o que é?

Quando se pergunta o que é a substância da realidade, se desfaz a segunda capa e se busca a profundeza íntima das cousas, procura-se o que é em si mesmo — o ser enquanto ser — objeto da metafísica, o qual se apresenta ao mesmo tempo como inteligibilidade e como mistério, sob uma perspectiva inteiramente diversa daquela em que as ciências se colocam na visualização da realidade.

A terceira capa da realidade é constituída pelo que existe em si mesmo, como explicativo do acidente que se verifica na substância, ou do conceito que se predica da substância. Esta terceira capa da realidade é constituída pelo ser profundo, sob o seu aspecto de mistério e sob o seu aspecto inteligível, com os seus princípios e os seus predicamentos. Chega-se por esta via, dos seres finitos e contingentes, ao Ser necessário, absoluto.

Se tudo é contingente, a contingência deve supor o necessário; se tudo quanto vemos é finito, o finito deve supor o infinito; se tudo é relativo não o é senão por oposição ao absoluto. E ainda que pretendêssemos afirmar que o necessário, o infinito e o absoluto não passam de invenções metafísicas, — onde poderíamos colocar os finitos senão em esferas gradualmente maiores de finitos e assim sucessivamente, até onde? Até o infinito. Até onde poderíamos estender a série dos contingentes senão até o infinito e então no infinito colocaríamos o Contingente dos contingentes, mudando apenas o nome do Necessário? Até onde poderíamos estender o relativo, senão até o absoluto? — É da natureza mesma da inteligência voltada para a realidade, reconhecer a solução do contingente no necessário, do finito no infinito, do relativo no absoluto e explicar a existência das séries de seres finitos pelo ato creador do Ser absoluto. O infinito, o necessário, o absoluto não são concebíveis senão como atributos do Ser dos Seres. Não são entidades em si mesmas, mas atributos do Ser, senão havíamos de cair em todas as contradições do princípio de identidade e de não contradição.

Se a segunda capa da realidade, aquela capa que poderíamos chamar científica, tem que explicar as relações constantes, a finitude, e a relatividade por uma série de atributos do Ser, esta segunda capa leva imediatamente à terceira, cujo mistério se desdobra ante a indagação do que é o Ser. Esta pergunta — o que é o Ser — não é pois uma invenção gratuita da metafísica, mas uma formulação dos princípios últimos a que conduziu a pergunta o que é a realidade.

É o que também se vê claramente na história da filosofia, a partir do instante em que os primeiros filósofos, começando a perguntar o que é a realidade, não tardam a perceber que nem todas as cousas dadas como reais, realmente são. Há cousas que se decompõem em outras cousas e essas cousas não são em si mesmas. São seres em outrem, seres acidentais e não seres em si mesmos, seres substanciais. E se não existem em si mesmas essas cousas não são e é necessário procurar o ser no qual e pelo qual elas têm existência. Por isso, o primeiro esforço do pensamento grego consistiu em buscar os princípios, os elementos irredutíveis das cousas, aqueles elementos que são em si mesmos e que não se compõem de outros. Esta busca do princípio irredutível é o princípio lógico e cronológico de todo pensar filosófico1. Através dessa investigação do elemento constitutivo da realidade, procurava-se distinguir o acidente da substância, o que existe do que consiste, e nessa distinção vinha também implícito o problema somente muito depois percebido da distinção entre a essência e a existência da realidade. Todo pensar filosófico busca, pela sua própria natureza, o ser da realidade, o que Platão denominava o realmente real — ontos on —. Buscando o princípio unitário da realidade aparente, a filosofia começou desde as suas origens a buscar a — ousia — o ser, a essência e a substância da realidade. Numa palavra, o fundamento do real. Trata-se pois para a filosofia de descrever a estrutura ôntica da realidade, de intuir na realidade o que ela realmente é. A intuição do ser é pois o pressuposto fundamental de todo pensamento metafísico.

  1. Assim Thales tinha reduzido tudo ao princípio úmido, a água. Anaximandro encontrou o fundamento do Universo no apeiron, proto-cousa das cousas. Anaxímenes no ar; e Empédocles declarou serem elementos simples a água, a terra, o fogo e o ar. A importância de todas estas teorias consiste em que no fundo delas se encontra a perquirição do que na realidade é.[]