Barbuy: A Nação e o Romantismo

1. A exposição que se vai seguir foi reconstituída de notas de aulas ministradas na Faculdade de Filosofia “Sedes Sapientiae”, da Universidade Católica de São Paulo, bem como de uma conferência pronunciada no Centro de Estudos Sociais e Políticos. Nesta última, procurei demonstrar, em síntese, que existem três espécies de nacionalismo: o Romântico, o Burguês e o Dialético ou comunista. Não podendo estender demasiadamente este ensaio, limito-me a expor aqui os principais aspectos do nacionalismo romântico 1. Procurei situar-me na perspectiva romântica afim de melhor compreender a sua visão da realidade nacional. O nacionalismo romântico tem elementos que estão intimamente ligados a todo e qualquer sentimento de Nação, de pátria e de localidade; poderia objetivar-se em formas sociais diversas, manifestando-se segundo as peculiaridades de cada Nação e sendo sempre mais amplo que todas as suas objetivações possíveis. — Todavia, esta forma de nacionalismo foi atualmente obliterada pelas manifestações intelectuais e cosmopolitas do nacionalismo burguês e comunista. A presente exposição tem o caráter duma reconstituição especulativa. Tanto mais que o nacionalismo romântico constitui um tipo de pensamento que não deve ser aplicado a regimes políticos ou econômicos necessariamente determinados; na sua ampla visão poética do mundo, nunca se objetivou em nenhuma forma de Estado.

Para expor a história do nacionalismo romântico, expomos o nacionalismo alemão, porque foi no âmbito da cultura alemã que esse nacionalismo atingiu a sua expressão mais compacta e mais homogênea. Isto se dá porque o romantismo [259] e o historicismo, nos seus resultados, são processos culturais especificamente alemães. O nacionalismo alemão se tornou a chave do nacionalismo romântico, assim como o pensamento alemão se tornou a chave da filosofia contemporânea. A poesia, a filosofia, a música, a sociologia, a economia do romantismo se manifestaram particularmente na Alemanha, de tal sorte que o exame histórico do nacionalismo romântico é ao mesmo tempo o exame histórico do nacionalismo alemão. Desde Hamann, verdadeiro fundador do romantismo, até Martin Heidegger, nos seus comentários a Hölderlin, os românticos explicitaram o nacionalismo, não só nas suas peculiaridades alemãs, mas também nos seus conteúdos universais. Não podia deixar de ser assim, numa cultura que formulou as premissas, os temas e os desenvolvimentos de toda a filosofia contemporânea, e fora da qual a filosofia só tem existido, na época atual, como repercussão e analogia.

Devemos dizer que o romantismo não se confunde com o lirismo e o sentimentalismo. É a reconstituição orgânica duma visão mágico-metafísica do homem e da natureza. Foi em função de toda a sua Weltanschauung que o romantismo promoveu novas artes e novas formas de arte; novas ciências e novas visões da ciência; a filosofia dos valores e o sentido do Valor; as novas perspectivas da história e a revitalização dos Mythos originários; a música, a poesia, e as demais exteriorizações culturais que lhe são típicas. Essencialmente estético, definiu também a Nação, pela primeira vez, como categoria estética. Na linha estética, explicitou a filosofia e a consciência emotiva de Nação.
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2. Por oposição a todo racionalismo e a toda Aufklärung, com suas tendências a ver o homem como ser abstrato, e com suas noções puramente jurídicas e políticas do Estado, os românticos erigiram a Nação num princípio metafísico, numa realidade profunda, na qual se incarna — e só nela — o processo do desenvolvimento histórico. Compreenderam que não existe uma História da Humanidade, porque a “Humanidade” em si não tem história, sendo por toda parte a mesma: o conceito de “Humanidade” é abstrato, estático e a-histórico. Inversamente, a ideia de desenvolvimento (Entwicklung), a ideia do dinâmico, do processo, do fluxo, do devir, é uma ideia romântica, congênita à ideia de Nação. A Nação se tornou a matriz original, a Urquelle, de um desenvolvimento peculiar e característico. Tornou-se uma realidade histórica que transcende o indivíduo, o qual só adquire sentido e valor quando inserido no corpo da sua Nação e quando portador da sua cultura autêntica. Os românticos identificaram a Nação com o Volk — não com o “povo” no sentido liberal e contratualista do termo — e sim com o Volk, no sentido de uma totalidade anterior aos indivíduos. O Volk é o princípio que dá sentido e forma aos indivíduos nos quais se exprime. Não é uma associação voluntária, como a que Rousseau concebeu na base de um contrato hipotético; a hipótese do contrato social é uma dessas ideias burguesas que fazem do Estado uma sociedade por ações, na defesa dos interesses individuais. O Volk não é um concours de votantes, mas um princípio metafísico, que se corporifica numa série de caracteres nacionais, ou seja, numa etnia, num grupo coeso, numa unidade que desempenha seu papel histórico como totalidade dinâmica.

Na obra de Herder, Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit, aparece pela primeira vez claramente esta ideia de Nação—Volk, que foi a base do nacionalismo romântico. Herder introduziu a ideia de Volk concebido como produto de um desenvolvimento histórico orgânico; orgânico quer dizer, como realidade anterior às partes de que se compõe, e que se desenvolve ao modo dum organismo, cujo crescimento é a explicação das possibilidades já contidas no germe originário, na Urquelle. Herder fundou a doutrina do espírito do povo, Volksgeist. Uma das aplicações de sua tese do germe original de que cada nação é portadora — e cujas múltiplas manifestações formam um todo orgânico — consistiu na sua repulsa à teoria racionalista da emigração das artes e das ciências e da fonte única e universal da cultura. Ao contrário, segundo Herder, as manifestações culturais de cada nação são o desenvolvimento do que essa nação já contém em si, de modo germinal, desde a sua origem. A história é o desenvolvimento das totalidades psíquicas originais. Em consequência, o método de Herder é genético e não estático. A faculdade que intui a História não é mais a razão abstrata dos cientistas e sim a compenetração simpática dos poetas; Herder lançou o termo Einfühlung para designar essa faculdade. Com seu método genético fundou uma nova noção do sentido da História; não do sentido da História, como o entenderam Santo Agostinho e Bossuet, como peregrinação da cidade terrestre em demanda da cidade de Deus, é sim do sentido da História como cumprimento da tábua dos valores característicos de cada totalidade cultural.

Herder recolhe de Santo Agostinho a ideia da grande harmonia universal do plano divino, na qual todas as nações poderão fundir-se; mas à ideia da História concebida linearmente, opõe a tese de que a História é processo e o processo histórico em si é o desdobramento de características culturais inconfundíveis. A Nação é um todo orgânico e pessoal e se assimila à imagem de uma planta; cada Nação tem portanto o seu destino pessoal, a sua própria noção de seus fins e de sua felicidade, animada como é pelo espírito nacional, pela alma nacional, que é a alma do Volk. Quando Herder, em sua qualidade de germanista profundo, identifica o teuto com o gótico, estabelece uma relação entre um Volk e uma expressão de sua alma, ambos coerentes com as emanações de uma só fonte, que é a Nação. Esta fonte é um selo invisível que se estampa em todas as produções originais do Volk. O Volk e o seu ambiente natural compõem uma simbiose vital; conjugam-se; mas o ambiente só age negativamente, não podendo alterar o germe das possibilidades do Volk.

Sem procurar outros antecedentes, a obra de Herder exerceu poderosa influência sobre o movimento romântico. De Herder deriva imediatamente a compreensão da História como processo de grandes unidades, como desenvolvimento de culturas determinadas. Este princípio foi aplicado ao campo de todas as exteriorizações espirituais, uma vez que são aspectos da mesma unidade original da cultura. Friedrich Schlegel, em suas profundas meditações sobre a história da literatura, aplicou este método evolutivo, concebendo, por exemplo, a cultura grega como inteiramente original e nacional, como conjunto perfeito que se exteriorizou a partir de sua evolução interna e cujas manifestações conservaram até o fim o caráter nacional. — A história da Grécia é o modelo de uma explicitação orgânica, interna, que revela em todos os seus aspectos o mesmo princípio unitário. Posteriormente, foi na mesma linha que se realizou a obra de Jacob Burckardt, com suas ideias sobre as épocas históricas e os estilos vitais homogêneos; suas obras sobre a Renascença e a Antiguidade, sua História da Cultura Grega, foram afinal orientadas pela visão romântica da História como expressão de totalidades psíquicas; Burckardt acreditava nas Imagens Primordiais que regem as culturas e as épocas históricas. A história não é cronologia, nem narrativa, nem enumeração de fatos monumentais; é o desdobramento de formas vitais definidas, cuja expressão mais forte é a cultura nacional.

A mesma orientação se afirma nas obras de filologia, propulsionadas pelo romantismo. Wilhelm von Humboldt (irmão do viajante e naturalista), em seu estudo sobre a diversidade das estruturas linguísticas, observou a identidade de cada grupo humano com sua língua, formando todas as manifestações culturais uma totalidade: Endossou a teoria da uniformidade nacional, em que se resolvem as características individuais; as características pessoais e inconfundíveis, não só não separam o indivíduo de sua nação, como ainda o vinculam a ela, pois as mesmas características se distinguem de suas equivalentes em outras nações. Um povo não é uma soma anárquica de indivíduos, ligados por atos contratuais de vontade, ou por interesses políticos e econômicos, e sim uma totalidade anterior às partes que, segundo Humboldt, encerra em si e a priori todas possibilidades do seu desenvolvimento.
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3. O método da Einfühlung — compenetração simpática — de Herder, com a ideia da originalidade de cada cultura, se reproduz na obra de Niebuhr, famoso historiador de Roma, que lançou as bases duma visão nova da Antiguidade e que nos mostra o desenvolvimento de Roma até as guerras púnicas, como um todo coerente e não como série mecânica de fatos arbitrários. A Escola Histórica encontrou um de seus pontos mais altos no exame feito por Niebuhr das lendas que envolvem a história primitiva de Roma e na comparação dessas lendas com os Eddas germânicos e a Canção de Hildebrando.

Na Escola Histórica não cabia de modo algum a noção positivista de “fato” político, de “fato” social, ou de “fato” social, ou de “fato” econômico, porque o “fato” como significando o já feito, o já acabado e morto, é a negação da História vista como processual e dinâmica; os fatos são apenas símbolos de fluxos mais profundos e só valem como indicações do processo que revelam. Assim, a noção mecânica de causa e efeito (e de cultura como adição acumulativa), nos processos históricos, que foi combatida por todos os românticos (e combatida como estreita visão burguesa do mundo) é inteiramente substituída pela visão orgânica e processual dos grandes movimentos, onde, como bem argumentou Spengler, na Introdução da Decadência do Ocidente, não cabem as noções de causa e efeito, nem portanto a de determinismo. — Organicista e historicista é também a obra do ingente historiador, Leopold von Ranke. Autor de uma História da Alemanha na Época da Reforma, e de outras grandes obras sobre o Papado, sobre a Inglaterra e a França, — onde mostra organicamente a formação dos Estudos modernos desde a Renascença —- Ranke adotou a nomenclatura de Fichte, que distinguia entre povos romanos e germânicos; mostrando a unidade das ações e reações de romanos e germanos, teve o ideal do universo europeu como Nação Romano-Germânica, cujo centro de gravidade era a Alemanha. — Ranke procurou por toda parte a síntese dos contrastes, síntese que só pode dar-se nas ideias-mestras sucessivas que dirigem as épocas. Suas elaborações sobre a História Universal o levaram a conceber a História como processo do Espírito. — Mas, o que é essencial em Ranke é que, nesse processo, cada Estado se concebe como personalidade característica: Em seu Diálogo Político, sublinha o papel da vida original dos povos, que dá forma e conteúdo às instituições políticas. As instituições políticas são recipientes vazios, são entidades mortas, sem essa íntima energia vital dos povos, que lhes dá vida e sentido.

Se nos colocamos na perspectiva da Escola Histórica, nada nos parecerá mais digno de lástima do que a noção contratualista da perfectibilidade humana indefinida, que pretende fabricar constituições perfeitas para toda e qualquer nação, com o total desprezo de suas peculiaridades, de sua história e suas formas de vida. As nações — dizia Ranke — são seres espirituais, são criações originais do gênio humano e são individualidades em si. A constituição social e a vida política devem representar o princípio espiritual característico de cada Nação, concebendo-se cada Nação como indivíduo singular, distinto de todos os demais, apesar das semelhanças e conexões históricas. As Nações segundo Ranke são, portanto, totalidades individuais, portadoras de princípios próprios imanentes; são pensamentos divinos, como se lê no Diálogo Político. Também Mommsen, que não valoriza excessivamente as origens nacionais, nos fala, desde o começo da sua História Romana, da evolução própria e individual das nações, com seu ciclo de juventude, de maturidade e de velhice. Mommsen observa que, — ao contrário dos Gregos, cuja unidade nacional se manifestava nas artes e nos esportes — os Romanos foram o único povo da antiguidade que soube constituir sob forma política a sua unidade nacional característica.

Para uma visão de conjunto da obra de Leopold von Ranke, leia-se a conferência comemorativa pronunciada em 1936, na Academia Prussiana de Ciências, por Friedrich Meinecke, e publicada como apêndice da grande obra sobre o Historicismo e sua gênese (trad. esp. Fondo de Cultura, México, 1943).
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4. Mas a veneração pelo Estado, manifestada de modo quase uniforme pelos nacionalistas românticos, requer uma compreensão especial. Os românticos lutavam ontem pela unificação da Alemanha, assim como outros homens lutam hoje pela reunificação. O Estado unitário poderia ter sido venerado como um ideal distante. Porém, unificada a Alemanha, e constituído o II Império, o culto do Estado não diminuiu, antes se aprofundou nos escritores alemães: Para compreender esta atitude, devemos conjugá-la com o fato de que o espírito da cultura alemã é estranho ao capitalismo, ao individualismo e ao coletivismo.

O culto do Estado nos românticos não vinha de que atribuíssem ao Estado poderes arbitrários e sim de que viam no Estado a imagem do Volk, que exprime da maneira mais completa os mesmos princípios que regem as vidas individuais isoladas. O culto do Estado foi próprio inclusive dos liberais românticos. Leopold von Ranke, Henrich von Treitschke e Wilhelm von Humboldt, vivamente preocupados com a liberdade individual e com o papel da personalidade na História, consignaram no entanto ao Estado os mais plenos poderes. Os economistas, poetas e filósofos românticos acreditaram no Estado. Mas na concepção romântica, os poderes não eram conferidos ao Estado enquanto fonte de opressão, e sim enquanto símbolo de Volk, e imagem da totalidade e da unidade. O Estado era então considerado como incarnando o mesmo princípio que dá realidade e sentido às liberdades individuais. O Estado tem então poder absoluto, não como antítese do indivíduo, e sim como expressão do mesmo princípio que forma o indivíduo. Nesta linha é que Treitschke respondeu ao ensaio de Stuart Mill, On Liberty, com outro ensaio Die Freiheit, onde sublinha o papel do Estado nacional contra o cosmopolitismo. Treitschke, grande historiador e historicista, lutou pelo Estado nacional, não enquanto instituição jurídica, e sim enquanto comunidade moral; foi, neste sentido, um dos mais vigorosos nacionalistas que se conheçam. Para Treitschke, o poder do Estado nacional era a medida da liberdade.

É o cosmopolitismo, o internacionalismo, e não o Estado nacional o sinônimo da opressão e da miséria moral verdadeira. O Estado nacional, que protege e explicita os valores nacionais, que nasce desses valores na medida em que é realmente nacional, é sinônimo de liberdade, justamente porque o cosmopolitismo e toda tutela internacional representam a negação da liberdade. O cosmopolitismo é próprio só de povos desfibrabrados, que perderam a unidade de si mesmos, que não têm cultura própria, e que por isso mesmo não existem historicamente.

A noção romântica de Estado, em suma, só pode ser compreendida a partir da noção romântica de Volk. O Volk não pode nem deve ser considerado uma entidade coletiva, no sentido de uma coleção avulsa de indivíduos; o indivíduo é uma realidade concreta, cuja existência aliás os românticos sublinharam. Porém, não são os indivíduos que formam o Volk, e sim o Volk é que forma os indivíduos. E este Volk, que forma os indivíduos, não se parece absolutamente com aquele “grupo social” de que falavam os sociólogos positivistas e que era um objeto superior e exterior ao indivíduo; o Volk não tem nenhuma das características atribuídas pelos positivistas ao grupo social. Ao contrário, enquanto matriz a priori, enquanto categoria cultural e metafísica, é um princípio intrínseco, originário, interior e não exterior ao indivíduo.

Os positivistas imaginaram que certos elementos sociais “objetivos” — como a linguagem, a moeda, as leis, os costumes — constituem um todo, feito e pronto, que o indivíduo recebe de fora para dentro ao nascer; estes elementos são vistos pelos positivistas como superiores e exteriores ao indivíduo. Os românticos pensaram, ao contrário, que a moeda, as leis, os costumes, a linguagem são intrínsecos ao indivíduo que nasce numa cultura; não constituem um todo feito, mas um conjunto de símbolos, e o que tem importância não é a moeda — em si uma cousa morta — e sim a particular maneira de usar a moeda, de falar a língua, de cumprir os ritos legais. São elementos interiores e intrínsecos ao indivíduo, que os traz desde antes do nascimento, juntamente com a cultura ancestral de que é portador. Esta tese romântica foi depois justificada, de maneira sugestiva, pela teoria dos arquétipos do inconsciente ancestral de Carl Gustav Jung. Já no começo do século XIX, Adam Müller, cofundador da Escola Histórica, em suas meditações sobre a natureza do Estado, da lei, da comunidade e da economia, introduziu a categoria do capital espiritual, considerado como patrimônio hereditário e cultural, portanto interior e não exterior ao indivíduo. — Müller mostrou a identidade do indivíduo, da Nação e do Estado, ligados ao passado, ao presente, e ao futuro, na sua continuidade histórica e no caráter intrínseco das suas tradições.

Se a língua é um patrimônio hereditário, ela já está inserida na constituição psíquica e somática do seu portador, exprime a sua própria visão ancestral do mundo. O indivíduo que nasce num Volk é portador da Nação na sua interioridade; ele é a Nação corporificada agora e aqui; o Estado não lhe é estranho, — como nas teorias que opõem o indivíduo e o Estado —; o Estado é ele mesmo, enquanto objetivação do Volk. A Nação portanto não é objeto superior, nem exterior ao indivíduo; é uma categoria cultural imanente, que vive na sua intimidade vital; sua relação com a autêntica língua nacional não é a relação dum sujeito com um objeto; a língua nacional é ele mesmo, como forma do seu pensamento e da sua Gemüt, revivendo na sua particular maneira de falar, no seu modo individual de ser; ele é a língua nacional enquanto essa língua é a tradução dos seus estados mais íntimos e das noções e conceitos que emanam da sua visão do mundo, uma visão do mundo que emana por sua vez da matriz originária da cultura nacional. — Se reconhecemos que a Nação é movimento e vida, devemos reconhecer que nada do que é individual está fora da órbita do Estado. Só a especulação estéril, — dizia Adam Müller — pode imaginar o indivíduo sem relações com o Estado. Mas as teorias arquitetadas sobre a hipótese do indivíduo abstrato, nunca passaram dum acervo de conceitos inúteis e mortos.
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5. A Nação é uma totalidade fechada. Mas segundo os românticos, como Herder por exemplo, a preservação da cultura nacional não excluía o contacto com o estrangeiro. O essencial era que os elementos estranhos não fossem excessivos e pudessem ser totalmente assimilados, assim como em todas as línguas se assimilaram milhares de palavras exóticas. O essencial na doutrina romântica é que a cultura se compara a um organismo vivo, e que não possa — como qualquer organismo vivo — assimilar elementos estranhos. A teoria da cultura como organismo — ou como organização — é, já por si, anti-cosmopolita. Exclui toda hipótese de considerar a cultura como soma de resultados adquiridos acumulativamente e arbitrariamente. — A língua, por exemplo, não é uma soma de palavras; é um todo psíquico, um nexo, uma visão do mundo de que as palavras são os símbolos. A riqueza das línguas não está na quantidade do seu vocabulário (senão qualquer língua poderia enriquecer-se indefinidamente, agregando ao seu dicionário tantas palavras quantas quisesse). A riqueza das línguas está na sua estrutura interna, na sua plasticidade, na sua capacidade de síntese, no seu sistema nervoso. O que é preciso preservar da contaminação, segundo os românticos, é essa estrutura interna que se exprime no vocabulário autêntico.

A língua nacional, como expressão da cultura original, é um dos temas desenvolvidos por Fichte em seus Discursos à Nação Alemã. Fichte teve, sobre o romantismo, uma influência ainda maior que a de Schelling e Hegel, com os quais compõe a trilogia de Filósofos do Idealismo Absoluto. Sua obra Reden an die deutsche Nation é de capital importância para a história do conceito de Volk, de Estado, de educação nacional e para a filosofia do nacionalismo. São 14 Discursos exclusivamente dirigidos a alemães e sem a menor intenção de valer para outros povos. Escritos e pronunciados entre 1807 e 1808, na Alemanha dividida, na Prússia destruída e reduzida a menos da metade do seu território e da sua população, estes Discursos, que foram lidos em Berlim, como um desafio às baionetas francesas, vêm revestidos de forte tonalidade mística; constituem por isso mesmo um dos mais importantes monumentos do nacionalismo romântico, na sua forma absoluta. — A tese do nacionalismo linguístico já vinha de Hamann e Herder; mas Fichte erige essa tese num princípio que adquire toda a sua amplitude com os conceitos de Urvolk e Ursprache. É nestes Discursos que o conceito de Nação emerge claramente pela primeira vez. Como logo depois em Hegel, a Nação aparece em Fichte como ser dotado de valor absoluto, como unidade substantiva, realidade originária transpessoal, identificando-se com o Estado.

O romântico inglês Blackwell havia já sustentado que a língua e o destino do povo estão intimamente ligados. Hamann havia observado que os autores do Renascimento, que escreveram em italiano, não conseguiram atingir a perfeição porque trabalharam com uma língua que não lhes era congênita 2. Fichte defendeu a tese de que o povo alemão não é um povo como os demais povos germânicos, e muito menos um povo parecido com os românicos, e sim um Volk originário, um Urvolk, que se exprime na língua materna originária, a sua Ursprache. É de suma importância esta unidade do Urvolk com a sua Ursprache, isto é, essa unidade do povo com sua língua histórica originária, porque esta é a condição da autenticidade da Nação. O povo alemão, ao contrário dos outros povos germânicos, se conservou num território de habitação primitiva e se conservou a si mesmo como um povo primitivo. Isto, segundo Fichte, não implicava necessariamente a pureza racial, desde que reconhecia na Prússia uma certa mistura eslava. Mas implicava, isto sim, uma unidade subjetiva, que se inscreve na noção fichteana de Totalidade, Allheit. Uma nação é um conjunto fechado, uma Totalidade. Esta totalidade nacional é coerente consigo mesma, é autêntica, na medida em que, na sua qualidade de Urvolk fala a sua língua original, única na qual pode exprimir com intimidade e vida a sua própria visão original do mundo. A língua original de um povo não é o resultado histórico arbitrário; ela é o que é necessariamente. Não é o povo que se exprime na língua, e sim a língua é que se exprime no povo. Quer dizer, “não é o povo quem expressa seus conhecimentos (por meio da língua), senão que são os próprios conhecimentos que se expressam mediante sua palavra exterior”. A língua é o que é necessariamente, porque se desenvolve segundo uma lei interna e fixa, como um organismo. É a língua que conserva o caráter primitivo de um Volk e não a sua própria pureza racial, já que nenhuma nação germânica pode vangloriar-se dessa pureza.

Tudo o que se pensa é vivo na língua original, porque entre as imagens sensíveis e as supra-sensíveis há uma perfeita correlação. Se disséssemos por exemplo a um alemão as palavras de procedência estranha Humanität, Popularität, Liberalität, estas palavras nada lhe diriam, sem o conhecimento racional completo do seu significado; ao contrário, quando a um alemão dizemos a palavra Menschlikeit ele a compreenderá imediatamente, sem nenhuma explicação histórica; porque a palavra Humanidade, Menschheit, permaneceu em alemão no estado de cousa puramente sensível, que precedeu a noção sintética de Humanidade.

Um grupo nacional se degrada quando adota uma língua estranha, cujas raízes estão mortas e cujas palavras exprimem entidades puramente supra-sensíveis, sem nexo com as imagens sensíveis da língua materna. Assim os grupos germânicos, que vieram fundar outras nações, adotaram línguas estranhas como foi o caso do latim; e do latim já degenerado pelo Cristianismo, formado de elementos estranhos a essa língua e que destruíram os princípios constitutivos do latim, como foi vivido, enquanto língua conatural, pelos antigos romanos; esses grupos que adotaram línguas estranhas se dividiram de sua própria alma original; falam uma língua e sentem obscuramente em outra; suas criações poderão ser laboriosíssimas, mas nunca poderão ser autênticas, em virtude desse corte que separa a alma e a sua expressão. O Urvolk, ao contrário, não está dividido de si pela sua língua, que, ao contrário, é a manifestação visível da sua essência; esse povo, ao contrário dos outros, pode ter Gemüt, intimidade, caráter e seriedade. Seu poder criador vem dos seus arcanos mais profundos e por isso suas criações são autênticas, originais. No Urvolk, as palavras são realmente vida e estímulo de vida; as palavras são espírito e podem formar a vida. Só a língua original pode produzir imagens que, em vez de refletir simplesmente a realidade, podem ser modelos da realidade: Esse povo pode criar novas realidades. Mas tal poder não existe nos povos que adotaram línguas estranhas; usam línguas cujos sons não lhes dizem nada, cujas imagens não sentem e que são aliás artificiais. Neste caso, a formação espiritual segue uma trilha e a vida outra; as classes instruídas se separam do povo e fazem deste último o instrumento cego de seus planos egoístas. A instrução não atinge mais do que a razão e não exerce a menor influência sobre as condições da vida real. Fabricam constituições políticas perfeitíssimas, engrenagens que devem funcionar com precisão; e quando, no curso dos acontecimentos sociais se produz algum choque, vão procurar saber qual foi a engrenagem que falhou e a substituem; mas não têm a menor noção da força misteriosa que dirige a máquina toda. E garantem com isso uma liberdade que não é vida original, mas vacilação indecisa entre muitas cousas igualmente possíveis. Os homens primitivos, ao contrário, amam a verdadeira liberdade, e quando formam uma coletividade, formam um povo primitivo, um Urvolk.

Na tese de Fichte, a natural evolução das línguas não se opõe a que as mesmas se conservem primitivas, ao contrário. O essencial é que a evolução proceda geneticamente, na linha da raiz primitiva. A língua original evolui segundo as leis do seu processo interno, não tolerando palavras estranhas que não possam entrar no círculo das suas noções matrizes; evolui assim como um corpo cresce, explicitando as virtualidades naturais da fonte materna. Exprime com autenticidade a sua cosmo-visão matinal. É uma língua que se fala a si mesma, formando o seu povo e evoluindo através dele. Se do povo original se aproximam, por exemplo, outros descendentes do mesmo tronco, que falem já línguas estranhas e não sejam mais capazes de penetrar o círculo das ideias da língua original, esses recém-chegados não terão influência alguma sobre o povo original, até o dia em que possam por fim achar-se a si mesmos e compreender-se a si mesmos a partir das suas nações matrizes; e nesse dia estarão novamente formados pela língua original, longe de a terem formado. O caráter da Nação deriva em suma do caráter de sua língua. Tal é a tese de Fichte, que fundamenta todos os nacionalismos linguísticos.
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6. O nacionalismo linguístico de Fichte traduz um sentimento comum aos românticos. Reflete-se, por exemplo, em Arndt, contemporâneo de Fichte, e considerado um dos maiores poetas do sentimento nacional; em Görres, romântico católico; em Wilhelm von Humboldt, filólogo e historiador, que, como já dissemos, considerava a linguagem como a forma externa do espírito dos povos e afirmava que nunca se poderá exprimir com bastante força a identidade da língua e do espírito do povo. A língua corresponde externamente ao que o romântico inglês Shaftesbury denominava a “forma interna” da cultura. A teoria linguística de Fichte amplia singularmente o princípio da originalidade do Volk, cujas raízes estão imersas na floresta primeva. Liga intimamente a identidade nacional com certos caracteres somatológicos do povo: Dentre estes, o mais importante para Fichte era a língua; para outros românticos será, além da língua, a música, que é a língua falada em outra dimensão. 3

Assim sendo, não há nada menos internacional do que a língua e a música. As obras de arte plástica, a literatura e a música, são obras de indivíduos dotados para assumir a capacidade de exprimir a cultura de que são portadores. Schubert e Beethoven, Brahms e Wagner são compositores universais, mas são compositores especificamente alemães. Sem Wagner não poderia haver a música wagneriana; mas sem a cultura que se corporifica em Wagner, sem os motivos arquetípicos que assumem em Wagner a consciência da sua expressão, essa música não poderia ter existido.

Na perspectiva romântica, só não tem fronteiras a arte que se transformou em técnica e virtuosismo, tendo perdido a alma que a técnica deveria exprimir. A arte nasce de territórios culturais definidos, manifesta conjuntos de sentidos — e de sentidos de sentidos — que não têm validade fora da cultura a que pertencem. O valor universal da arte vem da sua vinculação profunda à própria cultura, nunca do seu internacionalismo. A arte é universal quando toca as raízes mais secretas da sua cultura, numa região onde todas as culturas se encontram, podendo falar assim a todas as sensibilidades. — As artes são manifestações de entes históricos, realizadas por indivíduos portadores da cultura histórica, assim como o são também todas as expressões culturais, tudo quanto cabe no mundo dos valores e das Ciências do Espírito.
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7. Fichte, Schelling e Hegel são essencialmente os filósofos do processo dinâmico. Concebem o mundo com todos os seus fenômenos como posição, oposição e síntese provisória dos contrários. Deus, a Natureza e o Estado são partes de um processo absoluto no qual o ser, o vir-a-ser e o dever-ser se identificam. Schelling não altera essa perspectiva quando põe o Estado, não como sujeito do processo dialético, e sim como a condição desse processo. Schelling diz, na sua Philosophie der Mythologie (23.a lição), que o Estado, com sua raiz na Eternidade, é a base durável e indestrutível de toda a vida humana e de todo o desenvolvimento posterior do espírito. Ele é o que é estável e o que não comporta revoluções. No processo dinâmico, o Estado é o reflexo do que permanece; todas as reformas devem dar-se dentro dele e não contra ele; a missão do Estado é garantir ao indivíduo a máxima liberdade, uma liberdade que se exerça acima e fora do Estado e nunca no âmbito do Estado; o Estado é uma base, uma hipótese, uma ponte de passagem necessária no processo do Espírito. O Estado, como espelho da Nação, deve permanecer desenvolvendo-se, refletindo o processo de que é a emanação.

Hegel insere a Nação no processo universal dialético, como o desenvolvimento coerente de um princípio particular que exprime o Espírito Absoluto. A Nação é uma determinação particular, característica e inconfundível, do Espírito universal; o Volksgeist, ou espírito do povo, é a manifestação do Welt-geist, ou espírito do mundo; mas há no Volk um absoluto, enquanto ele encarna um destino intransferível, constituído pela explicitação das suas virtualidades.

Em Hegel, a Natureza e a História são exteriorizações do Espírito, que toma consciência de si, determinando-se em entidades particulares. O Espírito Absoluto é a essência da Natureza e da História, que são etapas do seu desenvolvimento. A História é o Espírito nas épocas e nas Nações. A Nação, que se identifica com o Estado que a espelha, aparece como realidade muito mais concreta que o indivíduo, porque mais universal do que este último e porque encarnação mais ampla do Espírito universal. Um Volk em Hegel se define como determinação do Absoluto incarnando-se no Estado. É uma determinação do Espírito Absoluto sob a forma do Espírito de um Povo. O Espírito do Povo é a fonte da liberdade; Hegel diz, numa passagem da Filosofia do Espírito (§ 73), que a pessoa só existe como tal pela força interna e pela necessidade que o espírito do povo lhe comunica; a pessoa só é livre no espírito do Povo. Em outra passagem (§ 257) Hegel diz que o Estado é a realidade em ato da Ideia moral objetiva; é o espírito moral como vontade substancial revelada, ciara a si mesma, que se conhece, se pensa, e realiza o que sabe por sabê-lo; o indivíduo tem sua liberdade substancial ligando-se ao Estado, como à sua essência, como fim e como produto de sua atividade.

Seria absurdo então confundir o Estado com a sociedade civil, como a Revolução Francesa e os regimes individualistas confundiram. Quando o Estado é confundido com a sociedade civil e visto como instituição destinada à segurança e à proteção da propriedade e da liberdade individual — quando em suma os interesses individuais são vistos como o fim do Estado, então o Estado não passa de um contrato civil e se torna facultativo ser membro ou não de um Estado. Mas se o Estado, como afirma Hegel, é o Espírito objetivo, então o indivíduo não tem objetividade, nem verdade, nem moralidade senão com a condição de exprimir o espírito do seu Volk, cuja corporificação deve ser o Estado. O Volk é uma categoria mais geral que o indivíduo; nele se nasce e se morre; nele não se entra, dele não se sai por um ato de vontade deliberada. Sair do seu Volk seria o mesmo que querer sair de si mesmo, ser o que não se é. Numa passagem da Filosofia do Espírito (§98) Hegel critica os conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade; e noutra passagem (Phil. des Rechts, § 279) critica a noção de “soberania do povo”. Tais críticas decorrem espontaneamente da visão hegeliana do Estado e da noção do Volk como totalidade anterior às partes que a representam e como fonte da liberdade. Em Schelling também (Phil. de Myth., lição 23) o Estado, longe de suprimir a liberdade individual, ao contrário, a torna possível, elevando o indivíduo à dignidade de pessoa. A lei, que o Estado impõe, só se torna opressiva quando não se processa a libertação moral interior.

Mas o Estado, assim visto por esses filósofos, não é o Estado burguês, o Estado mercador e o Estado de classes, e sim o Estado como reflexo da imagem divina, como forma superior da comunidade, no sentido verdadeiro de Gemeinschaft.

Não só em Fichte, Hegel e Schelling, mas nos românticos em geral, inclusive nos católicos, a nacionalidade, com o Estado que dela decorre, assume o significado de um reflexo da imagem divina, isto é, do que Hegel chamava o Espírito Absoluto. Schleiermacher, teólogo, Arndt, poeta, Humboldt, filólogo, veem a Nação sob essa perspectiva. Define-se claramente em Schleiermacher e Hegel a tese de que Deus confere a cada nacionalidade a sua missão terrena, animando-a de um espírito definido, que promove as suas inconfundíveis características peculiares, e cujo fim é sublimar o Espírito de Deus no mundo. Os católicos se lembravam da antiga doutrina patrística de que cada Nação tem a marca do seu Anjo.

Só no Estado se realizam todas as características do Volk, e o Volk é uma totalidade que assume e transcende o indivíduo. O destino do indivíduo se define em função duma escala de valores que emanam da cultura do seu Volk; os destinos e as realizações individuais não se compreenderiam fora dessas opções cuja essência está no Volk. O Espírito do Povo, assim como é concebido pelos românticos, não é portanto resultado do desenvolvimento histórico (ou dos sentimentos comuns, ou das experiências e derrotas sofridas em comum) e sim ao contrário, o desenvolvimento histórico de um povo é que é o resultado do seu Espírito particular. O Espírito particular emana de uma determinação do Absoluto, que projeta esse Volk, juntamente com a sua particular visão do mundo, com todo o conjunto das exteriorizações orgânicas da sua vitalidade, com sua língua e com sua música, numa determinada e intransferível missão histórica. De Hegel — como de Fichte e Adam Müller — derivam todas as doutrinas de Weltanschauung, toda a Völkerpsychologie, bem como a teoria spengleriana das fisionomias culturais. Porque Spengler, afinal, pertence à linhagem dos idealistas, e não dos positivistas, como se tem erradamente afirmado.

O destino, ou a missão histórica de cada nacionalidade se explica em função do espírito que a produz. Cada povo que desempenhou um papel realmente histórico, executou uma parte da tarefa divina. De Hegel pode-se dizer que realmente deu forma à filosofia da História como processo: Processo global evolutivo, marcado pelo desenvolvimento, pelo conflito e pela harmonia final das individualidades nacionais. Com Hegel tomou corpo um tipo de pensamento histórico, que se afastava em linha diametral da noção racionalista e profana da História. — Voltaire havia lançado a expressão philosophie de l’histoire: era como se deveria chamar uma explicação puramente racional e geométrica dos acontecimentos históricos, explicação que Voltaire jamais encontrou, acabando por fazer derivarem os grandes acontecimentos de causas pessoais e fúteis; o esforço de Voltaire para encontrar as leis universais da história, faliu na sua própria obra, onde o acaso e o capricho dos indivíduos se tornaram mais importantes do que as “leis” universais da razão. — Os discípulos de Herder, ao contrário, graças ao método genético, puderam formular uma visão da História” sistemática e coerente. Puderam eliminar todas as explicações causais mecânicas, e puderam ver a História, não como crônica de fatos estáticos, que se passam no espaço e no tempo físico, mas como processo vital, que projeta e funda seus espaços e tempos próprios.
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8. Os românticos restauraram o prestígio e o poder dos mitos como força plasmadora das Nações 4. Mas o Mytho, tal como é interpretado na linha romântica, não tem nada de parecido com o “mito”, no sentido vulgar de mentira e de invenção humana. O Mytho, para os românticos é a projeção da vontade divina, uma força que plasma a história e plasma a nação, longe de ser plasmada por elas. O Mytho se identifica com o primordial, com o fundamento, com o arquetípico; como diz Kérényi 5, o mito é a motivação dos fins (Begründung) pelo retorno espontâneo ao fundo das causas, Grund. — Particularmente numa filosofia como é a filosofia alemã, onde o ser e o vir-a-ser se identificam, o Mytho assume toda a sua importância identificando a essência com a primordialidade. Ou seja, a essência de um ser é o que ele tem de primordial, de mítico. E a atualidade de um ser, no seu desenvolvimento histórico, é o mito desdobrando-se no tempo 6.

Nessa perspectiva, a Nação se assimila facilmente ao Mito, como princípio arquetípico do seu desenvolvimento, que se torna conhecido à medida em que se explicita. Eis porque a essência do nacionalismo romântico é o historicismo metafísico, que vê na História o desenrolar-se de um Princípio Absoluto. — A insopitável repugnância de todos os românticos à “Ilustração”, ao intelectualismo, ao racionalismo, isto é, a tudo quanto está separado das raízes maternas da vida, tem sua razão de ser nesse culto do Mito, que justamente por ser um culto, é anotado pelos românticos como a base da única verdadeira Cultura.

Os românticos baniram portanto todas as interpretações humanísticas segundo as quais os mitos são representações de formas políticas, sociais ou econômicas. O culto de Hölderlin pelos Mitos, por exemplo, não pode ser identificado com nenhuma espécie de humanismo, como tem sido: Antes, é o culto do não-humano, ou do sobre-humano. O Mito aparece nesse culto, não como representação de formas políticas, sociais ou econômicas, mas ao contrário, como a fonte dessas formas. O Mito é a expressão concreta a sintética duma certa visão do mundo, cujas formas externas são a sua explicitação. Spengler, por exemplo, mostrou que todas as nossas noções da realidade e todas as descobertas científicas, já estavam contidas nos pressupostos originais da cultura fáustica, isto é, da cultura ocidental. E outros autores identificam a visão cristã do mundo com todos os processos técnicos que dominam a vida atual.

A identificação do Volk-Nation com o mito originário se manifesta já nas expressões Urvolk, Ursprache, Urquelle, Urflüssige. Este prefixo UR, sugerindo a noção da essência primordial, indica a força plasmadora do espírito original na História. A ideia de Nação se reveste de grande poder emocional, quando associada à ideia de mito originário. Torna-se uma categoria emotiva e religiosa, objeto daquela Einfühlung ou compenetração simpática de que falava Herder.

Os românticos, pela sua natureza mesma, sempre se apoiaram no valor cognoscivo da emoção, do sentimento, da intuição mística, da Gemüt, contra os esquemas e excogitações racionais. Opuseram o Mito à fórmula, a natureza à razão e simbolicamente a Noite ao Dia. Combateram pois todos os projetos abstratos de sociedade, de Estado e de nação. Dedicaram-se a denunciar todas as contradições da teoria iluminista da perfectibilidade indefinida da “espécie humana”. Repeliram todas as explicações mecânico-causais, como índices confessos da mentalidade diurna, quotidiana, burguesa e superficial do mundo e da vida. Foram eles que descobriram o Inconsciente 7 ++++
9. A descoberta romântica do Inconsciente enriqueceu extraordinariamente todos os campos do conhecimento e da imaginação humana. O Inconsciente é o reino esquecido aonde se recolhem todas as vivências do passado pessoal e popular. Não é um depósito de recalques, como supunha Freud, mas um princípio ativo pelo qual o passado age no presente. — No mesmo ano, (1814), apareceram a Simbólica dos sonhos de G. H. von Schubert (que, com Carus formulou a tese do Inconsciente), e os Contos Populares dos Irmãos Grimm, que fundaram o que depois veio a ser o Volklore. O Inconsciente está associado a todos os contos populares, os contos de heróis e de fadas, tesouros que dormem na alma popular.

Ao inconsciente, como relicário das memórias ancestrais, está ligado o culto nostálgico da idade heroica e da Mutterland perdida. Os Irmãos Grimm lançaram um movimento linguístico e literário que depois acompanhou toda a evolução do romantismo e nutriu o culto das grandes nostalgias e das grandes façanhas. O movimento de ressurreição da Idade Média, iniciado na época do Sturm und Drang, e do qual Goethe participou, teve, na Alemanha, um forte aspecto nacionalista, que assumiu a sua plenitude com os Irmãos Grimm. A Gramática Alemã, a História da Língua Alemã, a Mitologia Alemã foram escritas por Jacob Grimm; a reconstituição das lendas heroicas germânicas, inclusive a Rolandslied, se deve a Wilhelm Grimm. O resultado foi a introdução do método histórico no estudo da gramática e a revitalização de todas as antiguidades e lendas germânicas: Foi como a ressurreição das fontes da língua, que retornou ao presente com todas as lendas e contos populares a que deu forma. Juntos, os Irmãos Grimm começaram um gigantesco Dicionário da Língua Alemã, cuja preocupação era restabelecer os antigos radicais germânicos, expurgando os termos de procedência estrangeira 8. Este movimento, associado à ideia do inconsciente popular, portador das antigas tradições, teve enorme importância para o nacionalismo cultural.

A imagem da comunidade primordial, os deuses pré-cristãos, o Walhalla, Wotan e Thor, os heróis legendários, a árvore Ygdrasil, o sopro e a tempestade das grandes florestas, tudo o que retomou sua forma na música wagneriana, são tesouros do inconsciente do Volk. Os deuses, ardentemente chamados por Hölderlin, voltaram efetivamente com Wagner. Em Wagner, mais do que em Schubert, Beethoven e Brahms, a música se explicitou como linguagem específica do inconsciente nacional. A música não tem, como a linguagem falada, um conjunto de significados mais ou menos delimitados, conscientes e lógicos; a música irrompe do inconsciente mais profundo, trazendo consigo a nostalgia, a evocação, os transes emocionais inexplicáveis^ a música evoca as matrizes originais. Por isso, mais do que a linguagem falada, a música se apresentou muitas vezes aos românticos como a efusão direta da sua Urquelle. O tesouro encontrado por Siegfried na caverna subterrânea é a imagem da riqueza sepulta no inconsciente; os anões que guardavam o tesouro petrificaram-se, assim como nas torrentes do movimento emocional se petrificam os obstáculos conscientes à revelação das vivências profundas. E cada povo, segundo os românticos, se encontra e se manifesta a si mesmo, quando descobre esse tesouro oculto no seu inconsciente.
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10. Para compreender, portanto, uma proposição como esta: A Nação Romântica é um Princípio Anímico, basta associar a ideia de Nação às vivências do Inconsciente. A oposição entre Espírito e Alma nasceu com o movimento Sturm und Drang, embora nem sempre fosse explícita, embora muitas vezes fosse confusa, e a palavra Espírito englobasse também, frequentemente, o significado de Alma. Posteriormente essa distinção se tornou clara, vindo Ludwig Klages, em sua obra, a opor o Espírito e a Alma, como dois polos em luta. 9

Princípio anímico significa princípio irracional e vital; os românticos, como Herder, como Schleiermacher e Fries sempre acreditaram no poder cognoscitivo do sentimento e do pressentimento. Faculdades noturnas que se opõem à razão diurna; esta oposição é o tema essencial de Görres e Novalis.

Se, na teoria da ordem social, tomamos a palavra Espírito, não no seu sentido mais amplo, e sim no sentido de faculdade puramente racional, de faculdade científica e organizatória, então a Alma se lhe opõe como princípio de vida, como força da solidariedade tribal e não da solidariedade contratualista e premeditada. O Espírito é racionalização, esquematização e técnica, mas a Alma são as forças cósmicas, obscuras, a fonte das energias irrefreáveis. A luta entre o Romantismo e a Ilustração foi essa luta entre a Alma e o Espírito. Em todas as obras românticas encontramos a repercussão dessa antítese. Na sociologia, por exemplo, a oposição entre Comunidade e Sociedade, a Comunidade fundada no sangue e na Alma, a Sociedade na razão e no Espírito. A oposição entre Cultura e Civilização em Oswald Spengler é a oposição entre Alma e Espírito. — A volta ao noturno, ao passional, ao voluntarioso, ao primordial, ao mítico, ao pré-consciente, ao que está cheio de vida, ao princípio materno, ao histórico, ao legendário, são as motivações da literatura romântica. Disto decorre a tese de que o Espírito, como razão científica, apreende o ser falsificando-o, paralisando o fluxo vivente, solidificando e estratificando o ritmo cósmico. A verdadeira volta à Natureza é a volta à Alma, por oposição ao Espírito.

E era justo afinal que os românticos pusessem como base das doutrinas do Volk, da comunidade e da Nação, este princípio anímico: É que a crença, a fé, a Weltanschauung, o Mito, a Música, a Poesia não são racionalmente demonstráveis. Irrompem dos arcanos do Inconsciente como Valores absolutos, como os únicos valores que realmente valem. Os valores são emocionais: Não podem ser apreendidos por nenhuma faculdade racional, mas só e unicamente pela intuição anímica 10. Os valores podem ser imutáveis e eternos, porém o Volk, ou a personalidade que os exprime, são receptáculos duma particular captação dos Valores, isto é, duma cosmo-visão originária, que coincide, no Volk, com a sua particular missão no mundo. Assim os Valores, mesmo eternos, assumem características particulares em cada cosmo-visão originária.
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11. Na percepção dos Valores, a razão se opõe ao sentimento. Desde que os românticos puseram a Nação como ente valioso, a Nação deixou de ser simplesmente uma organização político-jurídica. Tornou-se um ente vital, congênito a uma escala particular de Valores, da qual os aspectos político-jurídicos são apenas a consequência. Como sabemos, a Escola Histórica combateu energicamente a ideia dum direito natural universal, principalmente de um direito positivo universal, afirmando ao contrário as características populares de cada povo com o seu direito. Friedrich Karl von Savigny, expoente máximo da Escola Histórica do Direito, fala num Volksrecht e não num direito abstrato e internacional. O direito, segundo a Escola Histórica, é vital e orgânico, particular e intransferível; é exteriorização do Volk e congênito a ele. O direito da Escola Histórica está em diametral oposição às teorias racionalistas que pretendiam encontrar uma fórmula de governo que fosse a receita internacional da felicidade. A ideia do direito pré-fabricado, que moveu toda a Revolução Francesa no seu ódio contra os valores tradicionais, essa ideia se torna mais que absurda na Escola Histórica: Torna-se impensável. Porque o direito, segundo Savigny, emana do passado total da Nação, emana da íntima essência nacional, e a Nação é um organismo dinâmico, que tem sua vida própria. Cada Nação deve ser considerada como um Indivíduo em ponto grande, como já ensinava Möser, no século XVIII 11. O Direito, em suma, cresce com a Nação, chegando um momento em que o direito popular se desdobra numa jurisprudência manipulada pelos juristas: E seria absurdo que a jurisprudência viesse a ser uma contradição do direito.
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12. O pensador inglês sir Edmund Burke, em sua luta contra a Revolução Francesa, havia publicado um ensaio, Reflections on the Revolution in France (1790), no qual sublinhava a importância da vivência histórica nacional como fundamento das instituições. Repelindo toda ideia da sociedade concebida como contrato, Burke considerava o Estado como entidade natural, como criação e reflexo de forças e valores anteriores a toda vontade premeditada. Fazia ver que o Estado é muito mais complexo do que supunham os simplórios da Revolução Francesa, pois o Estado é o conjunto de todo o patrimônio moral, espiritual e material da Nação, abraçando os vivos e os mortos, a tradição e o renovamento. Fundados em seu profundo senso histórico é que os ingleses mediam sua liberdade — não à luz de textos abstratos e constituições declarativas — e sim à luz de sua tradição. Ora, uma liberdade fundada na tradição só pode nascer de instituições que vivem historicamente, que se desenvolvem organicamente, que nunca são inteiramente novas quando se transformam, nem inteiramente antiquadas quando se conservam. As teses de Burke eram historicistas, no sentido de que defendiam a razão histórica contra a razão abstrata. A vivência contra o raciocínio. Os direitos nacionais do cidadão concreto, contra os direitos igualitários e artificiais da Revolução. 12

Na mesma linha, e sublinhando a tese de que as nações são essencialmente organismos históricos, se desenvolveram as considerações políticas de Joseph de Maistre. Assimilava as nações e as instituições sociais à imagem da planta; as nações crescem como as plantas; e por isso mesmo, a ideia de fabricar uma nação e um governo, com o desprezo das tradições históricas, é tão absurda como pretender fazer com que um homem nasça adulto. O homem — dizia de Maistre — pode sem dúvida plantar um pepino; pode cultivar uma árvore, aperfeiçoá-la pelo enxerto, podá-la de cem maneiras; mas nunca lhe passou pelo espírito que pudesse fazer uma árvore; como pôde imaginar que pudesse fazer uma constituição? 13. Assim, os direitos de cada povo não emanam de fabricações arbitrárias e sim da sua história. As nações são como as florestas, cujos milhões de ramos, raízes, fustes e lianas cresceram pelo trabalho imemorável do tempo. Uma constituição política só é tal quando obedece os imperativos históricos. Quando, dada a população, com os costumes, religião, a situação geográfica, as relações políticas, as riquezas, as boas e más qualidades nacionais, se encontram as leis que lhe convêm. Mas este problema não se resolve com princípios abstratos e sim com a realidade histórica. — Para de Maistre, como para a Escola Histórica alemã, as nações, como os indivíduos, têm o seu caráter, de onde deriva a sua missão. São autênticas unicamente quando, como a árvore, crescem na linha da semente primordial.
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13. O Estado compreendido como organismo ou organização não é o Estado compreendido como articulação de repartições públicas e de indivíduos que governam arbitrariamente. O Estado, segundo Hegel, é um universal, é a própria substância do Volk, não havendo nenhuma divisão entre Estado e Volk, ou entre Estado, governo e Nação.

Mas quando o Estado se nega como realidade universal e se individualiza em grupos de interesse ou em determinada classe, ele perde seus característicos e já não pode justificar seu direito de ação. O Estado romântico, o Estado de Fichte e Hegel, é, como já dissemos, uma totalidade orgânica, onde por isso mesmo cada órgão funciona no seu devido lugar, sob severa hierarquia e disciplina inquebrável. Não é um grupo ou uma classe, mas é toda a Nação, a Nação substancializada na sua vontade profunda, que é uma vontade do seu Espírito; não se trata da soma das opiniões, mas de uma vontade que assume a sua consciência nas elites, que por isso mesmo assumem o destino da Nação inteira. As elites autênticas são compreendidas como a fiel representação de todo o povo, como o espelho do Volk. E tal é também, diga-se de passagem, a doutrina de Vilfredo Pareto, com sua lei da circulação das elites, onde estas últimas se constituem do processo de seleção e filtragem do corpo social inteiro. As elites representam os valores ideais e os modelos ideais de vida; são a cristalização dos modelos 14.

Quando o indivíduo e o Estado se opõem é porque o indivíduo não vê no Estado uma vontade substancial e universal e sim uma vontade particular — tão particular como a sua — e que se contrapõe a ela. Mas quando o Estado é realmente a corporificação do Volk, ele é também a condição da liberdade individual, que se integra numa substância superior, mais universal. Nos quadros da filosofia romântica, um Estado que corporifica o Povo não se confunde em nada com o Estado como representante do povo, tal como foi concebido teoricamente pela Revolução Francesa; o Povo não é uma soma de opiniões, mas uma categoria metafísica, um princípio unitário, o símbolo duma alma. Por isso, deve-se ter bem em conta, para compreender esta forma de nacionalismo, que o Estado não está apoiado em ideologias, mas num princípio metafísico.

O conflito entre indivíduos e Estado se soluciona pela tese de que a Vontade nacional está toda inteira em cada indivíduo: E por isso, se a vontade individual se contrapõe à Vontade profunda do Estado, é o indivíduo que está extraviado de si e da sua própria liberdade. Assim Burke compreendia as liberdades inglesas, que segundo ele haviam nascido nas florestas germânicas, como liberdades especificamente inglesas, inseridas no corpo da tradição inglesa; uma liberdade inglesa contra o Estado inglês teria sido para Burke absolutamente impensável. E o historiador alemão — Justus Möser observava que na Inglaterra o mais insignificante dos cidadãos realizava o bem comum como se fosse um negócio privado. Na Inglaterra, as sátiras, as comédias e os apólogos morais estavam na mais estreita relação com os interesses do Estado. Esta tese coincide, afinal, com o ponto de vista de Schelling, segundo o qual a liberdade individual só se pode exercer fora e acima do Estado, porque no âmbito do verdadeiro Estado, do Estado que é a própria Nação, uma vontade que contrariasse o Estado seria a negação de si mesma.
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14. Segundo Fichte, no âmbito do Estado, a vontade se exerce pela escolha duma determinação necessária e por uma educação que torne impossível escolher o contrário do que ordena a verdadeira vontade. Se bem compreendemos Fichte, a liberdade de querer o que não se deve é uma liberdade contraditória; trata-se, portanto, como diz o seu II Discurso, de fundir a liberdade da vontade com a necessidade de querer de um só e determinado modo. Por parodoxal que pareça à primeira vista, a tese de Fichte está muito perto da Ética tradicional católica. Esta Ética nos ensina que a liberdade da vontade nos é dada em face dos bens particulares, justamente porque a vontade é necessitada pelo Bem Absoluto. Somos livres para escolher entre os bens particulares, porém queremos necessariamente o Bem Absoluto. E por isso mesmo que os bens particulares devem estar em função do Bem Absoluto, a prática do mal é uma contradição da vontade, pois a vontade é livre unicamente para querer o bem e se nega a si mesma quando quer o mal; querer o mal é como procurar o bem onde ele não está; é como usar para determinado fim os meios que não conduzem a ele; é como querer, num silogismo, tirar na conclusão o que não está contido na premissa maior. Santo Tomás define a liberdade como vis electiva mediorum, servato ordine finis. Livre escolha dos meios, ressalvada a ordem dos fins. Porém se os meios não se comportam de acordo com os fins, a liberdade é a negação de si mesma. Na ordem política — ria qual se moviam os Discursos de Fichte —, querer de um só e determinado modo significa: Querer um só e mesmo fim e por todos os meios em conexão e harmonia com esse fim.
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15. Muitos românticos puderam, coerentemente, adotar a tese da Nação como totalidade fechada e ser ao mesmo tempo católicos. Isto se explica pelo pressuposto de que concebiam a Igreja como universal — e não como cosmopolita —, como ecumênica, — e não como internacional. Franz von Baader, por exemplo, esposou a tese da sociedade nacional como organismo, e neste sentido foi que dirigiu ao capitalismo críticas muitos mais sérias e mais profundas que as de Marx 15; Baader pôde considerar a Nação como totalidade orgânica e acreditar ao mesmo tempo na ordem universal regulada pela Ética da Igreja. Joseph von Görres procurava as raízes da alma nacional nos mitos mais antigos, comparava a Nação a uma planta celeste e via na história nacional um organismo biológico em crescimento; relacionava a linguagem com as disposições internas da alma popular, como duas faces da mesma unidade; romântico nacionalista dos mais acendrados, esta condição não o impediu de acreditar no sentido universal da Igreja.

Os românticos, católicos e protestantes, cultuaram a nostalgia da perdida unidade, a lembrança poética do Sacro-Império Romano-Germânico. Um dos testemunhos mais pungentes dessa reminiscência foi o escrito de Novalis, Die Christenheit oder Europa. Novalis, que era protestante, pregava, na linha dos românticos católicos, a reconstituição ecumênica da Europa. Novalis pensava numa Europa confederada, dirigida — não por um governo internacional — mas por um venerando concílio europeu, do qual a Cristandade devia renascer.

Os românticos viam que a união da Igreja e do Império havia dado ao Império um sentido espiritual transcendente e ao Papado uma tradição de nobreza e cavalheirismo. A luta secular entre Papado e Império havia sido a ruína de ambos: o Império perdeu seu sentido ecumênico, sua significação de fulcro e centro da Cristandade. O Papado perdeu sua condição de árbitro universal da Cristandade. Deixou de ser a coroa de uma ordem hierárquica ecumênica. Da guerra entre o Papado e o Império nasceu a fragmentação da Cristandade; desapareceu o caráter sagrado das instituições imperiais e preparou-se o mundo moderno, com seu racionalismo e sua falta de sentido religioso.

Muitos foram os românticos que viram, na ação conjunta do Papado e da monarquia francesa, uma guerra insidiosa e secular contra a temida unidade da Alemanha e a restauração do Sacro-Império. Todas as tentativas de Reforma religiosa e toda a Reforma luterana têm sua raiz nessa fragmentação da Cristandade, que perdeu a lembrança de suas origens ancestrais e se afirmou numa série de princípios particulares e divergentes. Dessa desaparição da Cristandade, como conceito e como realidade, nasceu a ordem burguesa, internacional e cosmopolita, tudo quanto há de anti-racional, de anti-imperial e de anti-religioso. As lendas imperiais, como a de Frederico Barbaroxa, que renasceram tão fortes na época romântica, vêm dessa nostalgia da unidade perdida.

Esta reminiscência da perdida unidade era uma reminiscência da ordem ecumênica. A ordem ecumênica universal supõe a autonomia das partes e a sua adesão a princípios sucessiva e hierarquicamente superiores. O Sacro-Império foi universal e não internacional. Na sua universalidade couberam todas as peculiaridades, todas as liberdades, sendo um universo integrado de culturas particulares, que se distinguiam umas das outras pelas tradições, pelos dialetos, pelos costumes, pelos trajos, pelas leis consuetudinárias. A elevação de todos esses mundos particulares a uma unidade superior, a um Imperium, uma Kaisertum, que os continha e que os supunha necessariamente a todos, tal era a universalidade por oposição ao internacionalismo. Este último corresponde à destruição de todas as peculiaridades, corresponde à padronização, ao nivelamento, à morte de todas as culturas.

Entre o internacionalismo e a ideia romântica de Nação como Allheit, já vimos que a oposição é absoluta. Mas entre a Nação como Allheit e a universalidade, a conciliação é sempre possível. Os historiadores protestantes, que descreviam as lutas medievais, procurando condenar no Papado a ambição de converter-se numa potência terrena em substituição ao Império, não sonhavam menos do que os católicos com essa antiga Cristandade. Cristandade era sinônimo de Europa ecumênica: Christenheit oder Europa.
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16. Além disso, todos os românticos encontravam a unidade de seus pontos de vista na repugnância ao cosmopolitismo, a toda e qualquer ordem burguesa, fundada nos enunciados sócio-econômicos do liberalismo. Para tanto, a Nação corporificada no Estado, apareceu como a defesa natural contra a anarquia burguesa dos interesses individuais, contra a separação do indivíduo e do seu Volk, contra as políticas anti-nacionais. O pressuposto era que, na medida em que o Estado é o que deve ser, isto é, na medida em que se identifica com a comunhão nacional, não pode ser liberal, nem individualista. O interesse individual em si é uma ficção porque gira em torno de valores culturais, valores explicitados pela cultura do Volk. O Estado exprime, ou deve exprimir, o mundo dessa cultura do Volk orgânica; é a forma objetiva da comunidade no legítimo e antigo sentido da palavra Gemeinschaft.

Romântica é a obra de Ferdinand Tönnies, Gemeinschaft und Gesellschaft que desenvolve a distinção, já implícita no romantismo anterior, entre a comunidade e a sociedade. A comunidade entende-se como um todo anterior às partes, cujas diferenciações internas são pequenas e cuja solidariedade é orgânica e não mecânica. A sociedade, ao contrário, entende-se como soma das partes que a constituem, grupo mecanicamente integrado por interesses pessoais, formado pela associação voluntária premeditada. A comunidade é portadora da cultura, tem caracteres próprios e inconfundíveis, é a expressão legítima do Volk, dominado pela figura do camponês ou do artífice. A sociedade não é cultura, mas apenas civilização; não tem caráter próprio, por ser internacional e cosmopolita; é a expressão das massas urbanas, erradicadas e sem alma; transpola todos os valores para o ideal do lucro e do conforto e seu centro de gravidade está no indivíduo e na figura do mercador.

Os românticos, com seu ódio inextinguível à figura do mercador, conceberam a Nação segundo o modelo da comuna medieval, dilatada porém, de modo que a Mutterland local se fundisse com a Vaterland nacional. Conservar os caracteres da comunidade original, imprimindo à Nação um ritmo enérgico de atividades, centradas na tábua dos valores culturais, tal foi o programa dos sociólogos e economistas da Escola Histórica. Nada seria mais interessante do que expor as importantes teses elaboradas por Fichte neste sentido, em sua obra Der geschlossene Handelstaat, onde, pela primeira vez, aparece a doutrina da autarquia econômica nacional e a teoria do papel-moeda; por Adam Müller, com sua importantíssima tese do capital espiritual como fator da produção, com sua visão do todo nacional como a unidade duma longa série de gerações passadas, presentes e futuras que constituem uma íntima e essencial realidade; por Heinrich von Thünnen, com suas teorias da renda, dos círculos concêntricos do mercado e suas preocupações com o salário social justo; por Friedrich List, com seu sistema nacional de política econômica e com sua aplicação da ideia de capital espiritual, onde a Nação, como força que produz a riqueza, se torna muito mais importante do que a riqueza mesma.

Todos esses economistas dirigiram severas críticas à economia liberal de Smith-Ricardo. Mostraram por exemplo que a teoria econômica não se pode fundar no indivíduo isolado, porque o indivíduo pressupõe o Estado com sua moeda, sua economia, seu caráter nacional e suas perspectivas históricas; mostraram como A Riqueza das Nações de Smith ignorava o que era riqueza e não sabia o que era Nação; como o preço não exprime o valor, porque o preço é contingente, mas o valor é essencial, derivando da função de cada objeto na estrutura do Estado. Observaram que o pensamento liberal, fundado na teoria dos interesses e dos instintos do indivíduo, constitui a negação dos fatores essenciais que são os fatores históricos; falta-lhe a tensão da temporalidade; é cosmopolita, internacional, a-histórico. Friedrich List não pôde perdoar aos liberais o terem esquecido o elemento temporal da economia; os liberais pregaram a liberdade do indivíduo, mas uma liberdade abstrata, fora do seu âmbito histórico, fora do campo das possibilidades onde se dão suas decisões, isto é, fora do campo das perspectivas culturais que possibilitam as decisões entre as quais a liberdade escolhe. E fabricaram o indivíduo abstrato pela sua incapacidade de pensar em termos históricos e concretos. — Os românticos, ao contrário, tiveram a preocupação essencial da temporalidade; sabiam que a história é tempo e não espaço; fundaram por isso a noção do processo como continuidade vital; sabiam que tudo o que é processual é histórico; a sociologia, como a estética e a economia, se lhes apresentou sempre como ciência de categorias históricas.
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17. O histórico, o cultural e o nacional são termos que se associam. A cultura nacional se lhes apresentou como força mais enérgica do que a civilização urbana para imprimir à Nação o ritmo de um desenvolvimento dotado do sentido e dos fins que a civilização já perdeu. Assim a árvore cresce tanto mais forte quanto mais profundas estão suas raízes imersas no solo natal. A ideia de Nação como totalidade, composta de partes autônomas — como a floresta é composta de árvores individuais — é uma ideia que radica na Comunidade, por oposição à sociedade; dessa ideia decorre uma filosofia social, uma sociologia e um conjunto de doutrinas econômicas que são comunitaristas, e não capitalistas, nem socialistas. Repelem o individualismo e o coletivismo; a economia se torna meio e não fim; e torna-se meio para fins culturais, no processo global do Espírito, que visa a realização duma finalidade última, escatológica, essencialmente religiosa 16. Tal é o panorama do nacionalismo romântico, nos seus principais relevos: Um panorama que só podemos ver no seu conjunto, quando colocado na perspectiva mesma que o projetou.

  1. Trata-se evidentemente duma exposição incompleta.[]
  2. Meinecke, op. cit., pág. 215.[]
  3. O nacionalismo linguístico de Fichte, exposto nos Discursos à Nação Alemã, bem como a tese contida em seu ensaio Über die franzözische Revolution, foi dirigido contra a França. A França, fundada como Frankreich pelos Francos e parte do Império de Carlos Magno, era o exemplo da nação que se tinha extraviado de sua língua original. Era um povo em que as elites se separavam da plebe e cuja desunião intrínseca tinha promovido a Revolução de 1789. Mas, à parte essa aplicação ao caso francês, os românticos defenderam o nacionalismo de Fichte como transcendendo as demarcações territoriais e as circunscrições políticas. Há nações que não coincidem com Estados e Estados que não coincidem com nações, com é o caso dos Estados que compreendem várias nações e das nações que compreendem vários Estados. O rigoroso estatismo de Fichte não se dirige a um Estado qualquer, mas ao Estado que coincide com a Nação e que realmente a reflete. O nacionalismo linguístico de base fichteana se reavivou na última guerra, quando fundou a concepção de “mundo anglo-americano”, unido pela comunidade da língua. O simples título da obra de Churchill, História dos Povos de Língua Inglesa, mostra esse nacionalismo fichteano. Apesar de que, os ingleses reconhecem que a língua inglesa, mais do que qualquer outra língua “germânica”, está penetrada de elementos e estruturas estranhas.[]
  4. A fé nos povos originais promoveu muitas vezes nos românticos a identificação da Grécia com a Alemanha. Nos poemas de Hölderlin, a Grécia e a Alemanha se fundem numa visão mítica. Nas investigações de Heidegger, procura-se o retorno ao grego mais arcaico, como o princípio germinal de desenvolvimento. Hölderlin foi uma chave para Heidegger; ao mesmo tempo, Hölderlin é o poeta dos Mitos mais antigos e o poeta do sentimento nacional; não será o caso de citar seus poemas diretamente nacionais, como por ex., Gesang des Deustchen, An die Deutchen, Der Tod Fürs Vaterland, Germanien, porque quase todos os seus poemas são realmente nacionais, fundindo a nação e o Mito, numa única visão.[]
  5. Na importante obra que escreveu juntamente com C. G. Jung, traduzida para o francês sob o título Introduction à l’Essence de la Mythologie, Payot, 1953, págs. 16 e 17.[]
  6. Por isso, identificar a História com o processo do Mito, não é tornar a História estática (como sugere Meinecke), mas ao contrário, é identificar a História com seu próprio desenvolvimento.[]
  7. Descobriram o Inconsciente, justamente porque cultuaram o magnetismo, o sonambulismo, a astrologia, a alquimia e o meta-psiquismo. O Inconsciente, Unbewusstsein, descoberto pelos românticos, veio depois a revolucionar completamente toda a psicologia; Freud encontrou o Inconsciente já descoberto há quase cem anos, quando formulou a sua psico-análise. A teoria do Inconsciente vem de Carus e de G. H. von Schubert, (se não quisermos lembrar as sugestões no mesmo sentido feitas por Leibniz e Hegel), Carus; e von Schubert receberam a influência de Schelling, que se dedicava a estranhas experiências de sonambulismo. A mística, o sortilégio, o inconsciente, o sub-consciente, a magia branca e a magia negra, o hipnotismo, a dupla personalidade (Doppelgang), o poder misterioso dos eflúvios da natureza, a audiência das entidades invisíveis, foram temas que fascinaram os românticos. O romantismo foi herdeiro direto da alquimia medieval e da sua mística. Os antecedentes da sua filosofia estão em Meister Eckhart e Jakob Böhme. Franz von Baader, pelas suas conferencias sobre Böhme, pelo seu convívio com Schelling e pelo seu pensamento próprio é um elo importantíssimo nessa corrente que vem até os neo-platônicos da atualidade. Os românticos cultuaram o Inconsciente como aspecto noturno da personalidade; tiveram o culto da Noite, não só da noite individual e subjetiva, mas também e principalmente da Noite Cósmica, como anterior ao Dia e mesmo revelação dos segredos mais profundos da natureza. G. H. von Schubert escreveu uma obra expressiva até no seu título: Aspectos do lado Noturno das Ciências da Natureza. A obra de Friedrich von Hardenberg, — Novalis — está centrada no culto da Noite e por meio da Noite na compenetração simpática da Natureza. Seus Hinos à Noite e seu estranho fragmento Os Discípulos de Saís, exprimem esse sentimento profundo, Naturgefühl, que faz com que o poeta e a natureza se identifiquem como duas faces do mesmo espírito: A identidade do Espírito e da Natureza, tal é o tema da filosofia idealista, que vê o mundo gerado pela magia do Espírito. Joseph von Görres, místico católico, teve o culto da Noite Cósmica (vide Alfred Beaumler, Der Mythus von Orient und Occident, Beck’sche Verlag, 1956) e dentre suas obras uma das mais importantes foi dedicada à Magia: Die Christliche Mystik: Mystik, Magie und Dämonie.[]
  8. Esse gigantesco Dicionário, começado pelos Irmãos Grimm, foi terminado em 1961, depois de cem anos de trabalho e colaboração de várias gerações. Compõe-se de 32 volumes, redigidos na linha da inspiração original.[]
  9. Sobre os diferentes significados da palavra Espírito (Geist) e suas implicações psicológicas, vide C. G. Jung, Symbolik des Getetes, Zürich, 1948; obra escrita com a colaboração de Riwkaf Schärf, na parte referente ao significado de “Satan”. Ludwig Klages, que foi um dos últimos românticos, explicitou a oposição entre Espírito e Alma, em sua obra Der Geist als Widersacher der Seele, três volumes publicados em Leipzig, de 1929 a 1932.[]
  10. Max Scheler demonstrou, ao longo de toda sua obra, que os Valores são objeto de um sentir intencional originário.[]
  11. Vide F. Meinecke, op. cit, págs. 276, 277.[]
  12. O ensaio de Burke, acima citado, foi traduzido para o espanhol, juntamente com outros textos, por V. Herrero, Fondo de Cult., México, 1942. Sobre Burke, vide também a já citada trad. esp. El Historicismo y su Génesis, de Meinecke. Fondo de Cult. México, 1943. Alexandre Correia, Premesse Per una Valutazione delia Concezione Storica dei Diritto, editado por Ant. Giuffre, Milano, 1948.[]
  13. Alexandre Correia, op. cit. pág. 215.[]
  14. VIDE: [LÉXICO DE FILOSOFIA->http://hyperlexikon.hyperlogos.info/modules/lexikon/entry.php?entryID=11919].[]
  15. Vide Othmar Spann, História das Doutrinas Económicas, Trad, de José Ramon Perez Bances, Madrid, 1934, pág. 155.[]
  16. Sobre a inserção da Economia no processo do Espírito: Charlotte Engel-Reimers, Der Idealismus in der Wirtschaftwissenschaft, Verlag von Duncker U. Humboldt, Leipzig, 1932.[]