Auseinandersetzung, débat, confrontação, apartar-se, pôr-se à parte um do outro
Heidegger descreve nessa passagem o cunho propriamente dito de suas preleções sobre Nietzsche por meio de uma palavra que ele utiliza com alguma frequência e que se mostra central no contexto das questões formuladas anteriormente: a palavra Auseinandersetzung, que traduzimos pelo termo “confrontação”. Confrontação é um termo que resgata, em certo sentido, a riqueza do original alemão, mas que perde ao mesmo tempo certos matizes essenciais aí vigentes. Por isso, é importante explicitar, antes de mais nada, o sentido do original alemão. Traduzido ao pé da letra, Auseinandersetzung significa “pôr-se à parte um do outro”. O termo indica de início claramente o surgimento de um certo afastamento entre os dois aí em jogo, o aparecimento de uma certa tomada de posição indispensável para a plena consideração crítica daquilo que se mostra e para a formação do processo de interpretação. É sempre preciso se afastar de algo para poder vê-lo em sua identidade específica. Todavia, o afastamento mantém aqui incessantemente certa tensão específica, que é expressa pelo elemento inerente à confrontação, à dissenção, à discussão entre dois. Não se trata, nesse caso, de maneira alguma da tão almejada neutralidade científica e da conquista de um ponto de vista neutro que permitiria uma visão pura e objetiva de algo dado, mas muito mais de um distanciamento que instaura ao mesmo tempo proximidade. É na medida mesmo em que o pensador se aparta e conquista a sua posição que ele se aproxima efetivamente do outro pensador a ser interpretado. Essa compreensão nos aproxima do segundo traço essencial do termo Auseinandersetzung. O que está em questão com esse termo não é apenas o aparecimento de uma distância crítica indispensável para a consideração teórica e a manutenção de uma proximidade instaurada pelo próprio afastamento, mas também a conquista mútua de um próprio em meio ao surgimento dessa tensa relação. Porquanto os dois se apartam um do outro, cada um aparece para o outro como si mesmo. Não apenas aquele que está sendo interpretado, mas também e, essencialmente, aquele que realiza a interpretação. É em meio à confrontação e só aí que o próprio a cada um dos dois se mostra em sua determinação efetiva. Tal como invariavelmente acontece em toda confrontação, é somente em meio ao enfrentamento do outro que cada um vem à tona como aquele que é. É a batalha que faz Napoleão, a cruz que faz o Cristo, a travessia que faz Colombo. Por isso, a confrontação envolve um último elemento estrutural. Ela também pressupõe naturalmente um horizonte a partir do qual cada um dos dois se revela em seu si próprio. Portanto, a confrontação não implica tão somente um afastamento crítico formador tanto de distância quanto de proximidade. Ao (XI) contrário, ela também traz consigo uma determinação subsequente do próprio específico a cada um e requer concomitantemente um horizonte hermenêutico a partir do qual a dissenção possa ter lugar. Mas como se determina afinal tal horizonte hermenêutico? Onde podemos encontrar esse horizonte? Ele se encontra no sujeito da interpretação ou no objeto interpretado? Ou será que a própria noção de confrontação entre pensadores inviabiliza a colocação do problema em termos de um sujeito da interpretação e um objeto interpretado? (CASANOVA; GA6MAC:Apresentação:X-XI)
VIDE: (Auseinandersetzung->http://hyperlexikon.hyperlogos.info/modules/lexikon/search.php?option=1&term=Auseinandersetzung)
discussão
débat (ETEM)
O diálogo não é inteiramente amigável: “Perguntar de novo (wiederfragen) a questão (Frage) perguntada por Platão e Aristóteles (…) significa: perguntar mais originalmente do que eles. É — na história de tudo que é essencial — o privilégio e também a responsabilidade de todos os descendentes tornarem-se assassinos dos seus antepassados e estarem eles mesmos sujeitos ao destino de um assassinato necessário! Apenas então alcançamos o modo de colocar a questão na qual eles existiram numa proximidade dada sem esforço, mas a qual foram, por esta mesma razão, incapazes de elaborar em sua máxima transparência” (GA31, 37). Diálogo envolve Auseinandersetzung, “confrontamento, discussão”, com parte do sabor da sua fonte em latim: discutere, “despedaçar”. Isto não significa criticar e refutar, mas “trazer a outra parte e sobretudo a si mesmo para aquilo que é original e definitivo. Esta é a essência do problema e automaticamente a causa comum de ambas as partes, de modo que não precisamos nos reconciliar mais tarde. A discussão (Auseinandersetzung) filosófica é interpretação como destruição” (GA31, 292). (DH)
N.T.: Por sua riqueza semântica, o termo alemão Auseinandersetzung apresenta uma série de dificuldades de tradução. Esse termo é normalmente traduzido por discussão ou explicação, mas está longe de ser efetivamente resgatado por essas noções. A ideia exposta pelo termo é a de um encontro entre dois indivíduos que, em meio ao encontro mesmo e ao interesse comum pelo que está aí em jogo, descobrem as suas determinações próprias. Eles se colocam (-setzen) um à parte do outro (Auseinander), na mesma medida em que firmam simultaneamente as suas posições específicas. Exatamente isso vem à tona a partir de uma boa confrontação, na qual dois indivíduos medem as suas forças. Seguimos assim a opção dada por David Farrell Krell para a edição americana dessas preleções. (GA6:Nota Casanova)
Auseinandersetzung (dissensão): Considerada em sua dimensão literal, Auseinandersetzung descreve o “ato de pôr-se à parte um do outro”. Neste pôr-se à parte marcam-se posições e estabelece-se então ao mesmo tempo um diálogo. Ele implica assim o aparecimento de uma discussão e é mesmo traduzido por este termo. O problema é que discussão não abrange todo o campo semântico de Auseinandersetzung, uma vez que não traz consigo o movimento originário do aparte. Dissensão tem por sua vez a vantagem de acentuar o aparecimento de uma divergência sem perder simultaneamente o sentido de debate. (Casanova; GA66MAC:189)