A que apelo nos referimos? Toda a nossa existência sente-se, em toda parte – uma vez por diversão, outra vez por necessidade, ou incitada ou forçada -, provocada a se dedicar ao planejamento e cálculo de tudo. O que fala nesta provocação? Emana ela apenas de um arbitrário capricho do homem? Ou nos aborda nisso já o ente mesmo, e justamente de tal modo que nos interpela na perspectiva de sua planificabilidade e calculabilidade? Então até mesmo o ser estaria sendo provocado a manifestar o ente no horizonte da calculabilidade? Efetivamente. E não apenas isto. Na mesma medida que o ser, o homem é provocado, quer dizer, chamado à razão para armazenar o ente que aborda como o fundo de reserva para seu planificar e calcular e a realizar esta exploração indefinidamente.
O nome para todo o processo de provocação que leva o homem e o ser a um confronto de natureza tal que se chamam mutuamente à razão se denomina: arrazoamento [NT: Traduzo GeStell (Gestell) por arrazoamento. Somente a coisa mesma que se procura dizer justifica, na falta de terno mais adequado, o emprego de arrazoamento, que, segundo o projeto do Dicionário da Língua Portuguesa da ABL, de Antenor Nascentes, significa ato ou efeito de arrazoar. expor, apresentando razões pró ou contra, racionar, discorrer, conversar; discutir, altercar com outrem, disputando, argumentar. Heidegger utiliza a palavra Gestell (que em alemão significa armação, estante etc.) proveniente do verbo stellen, que tem o sentido de pôr, apontar o lugar, fixar, regular, provocar, exigir contas, contestar etc., para definir aquele âmbito que se cria pelo confronto entre homem e técnica (homem e natureza a ser transformada pela técnica), na medida em que ambos se provocam, exigem contas um do outro, chamam-se à razão reciprocamente. Prefiro o termo arrazoamento ao terno com-posição que às vezes usei, ou à palavra com-posto por outros sugerida. A palavra arrazoamento exprime também o império da razão que tudo invade pela técnica, que caracteriza uma época em que o homem busca as razões, os fundamentos de tudo, calculando a natureza, e em que a natureza provoca a razão do homem a explorá-la como um fundo de reserva sobre o qual dispõe. Os franceses traduzem Gestell por arraisonnement.] Este emprego lingüístico escandaliza. Mas por que não usar o termo “arrazoamento” se a compreensão do estado de coisas o exige? [NT: No original a passagem literalmente intraduzível diz: ‘Der Name für die Versammlung des Herausforderns das Mensch und Seis einander so zu-stellt, dass sie sich wechselweise stellen, lautet: das Ge-Stell. Man hat sich an disser Wortgebrauch gestossen. Aber wir sagen statt ‘stellen’ auch ‘setzen’ und findem nichts dabei, dass wir das Wort Ge-setz gebrauchen. Warum also nicht auch Ge-Stell, wenn der Blick in den Sachverhalt dies verlangt?”].
Aquilo, em que e de onde o homem e ser se defrontam reciprocamente no universo da técnica, interpela à maneira do arrazoamento. No recíproco confronto de homem e ser ouvimos a interpelação que determina a constelação de nossa época. O arrazoamento nos agride diretamente em toda parte. O arrazoamento é, caso ainda nos seja permitido falar assim, mais real(m)ente que todas as energias atômicas e toda a maquinaria, mais real(m)ente que a violência da organização, informação e automatização. Pelo fato de não encontrarmos mais no horizonte da representação, que nos permite pensar o ser do ente como presença, aquilo que se designa arrazoamento – o arrazoamento não mais nos aborda como algo presente -, é ele algo estranho. Antes de tudo, porém, o arrazoamento permanece estranho na medida em que não é algo último, mas em que ele mesmo algo nos comunica que perpasse propriamente a constelação de ser e homem. [MHeidegger – Identidade e Diferença 178]