Platão (R4:439a-441c) – conflito interior

— Logo, a alma do sequioso, na medida em que sente a (b) sede, não quer outra coisa que não seja beber, é essa a sua aspiração, esse o seu impulso.

— É evidente.

— Por conseguinte, se, quando tem sede, alguma coisa a puxa, encontrar-se-á nela algo de distinto que tem sede e que a leva, como um animal selvagem, a beber. Efectivamente — já o dissemos — o mesmo sujeito, na mesma parte e relativamente ao mesmo objecto, não pôde produzir ao mesmo tempo resultados contrários.

— Pois não.

— Da mesma maneira, julgo eu, que não seria bem dizer que, no archeiro, as mãos dele afastam e puxam o arco ao mesmo tempo, mas sim que uma das mãos afasta, e a outra puxa.

(c) — Absolutamente.

— Diremos além disso que há pessoas que, quando têm sede, recusam beber?

— Sim, há muitas, que o fazem muitas vezes.

— Então que se dirá acerca delas? Que na alma delas não está presente o elemento que impele mas sim o que impede 1 de beber, o qual é distinto do que impele e superintende nele?

— É o que me parece.

— Porventura o elemento que impede tais actos não provém, quando existe, do raciocínio, ao passo que o que (d) impele e arrasta deriva de estados especiais e mórbidos?

— Acho que sim.

— Por conseguinte — prossegui eu — vamos distinguir na alma a presença destes dois elementos. Porém o da ira, pelo qual nos irritamos, será um terceiro, ou da mesma natureza de algum destes dois?

— Talvez seja da do segundo, o da concupiscência.

— Uma vez ouvi uma história a que dou crédito:

Leôncio, filho de Agláion, ao regressar do Pireu, pelo lado de fora da muralha norte, percebendo que havia cadáveres que jaziam junto do carrasco, teve um grande desejo de os ver, ao mesmo tempo que isso lhe era insuportável e se desviava; durante algum tempo lutou consigo mesmo e (440a) velou o rosto; por fim, vencido pelo desejo, abriu muito os olhos e correu em direcção aos cadáveres, exclamando: «Aqui tendes, gênios do mal, saciai-vos deste belo espectáculo!»

— Também ouvi contar isso.

— Esta história, contudo, mostra que, por vezes, a cólera luta contra os desejos, como sendo coisas distintas.

— De facto, mostra.

— Ora já em muitas outras ocasiões sentimos que, (b) quando as paixões forçam o homem contra a sua razão, ele se censura a si mesmo, se irrita com aquilo que, dentro de si, o força, e que, como se houvesse dois contendores em luta, a cólera se torna aliada da sua razão. Mas não creio que digas que ela se associa aos desejos, quando, tendo a razão determinado que não se devia proceder contra ela, alguma vez te foi possível sentir estas reacções em ti, nem tão pouco nos outros.

— Por Zeus que não!

(c) — E então quando uma pessoa julga que comete uma injustiça? Quanto mais nobre for, tanto menos pode encolerizar-se, ainda que passe fome, frio e qualquer outro sofrimento no gênero, por parte daquele que, segundo ele julga, lhe inflige este tratamento com justiça, e, como digo, não consente em despertar a sua cólera contra ele.

— É verdade — confirmou ele.

— E agora, se uma pessoa se considerar vítima de uma injustiça? Acaso não ferve e se irrita e luta do lado que entende ser justo — quer passe fome, quer frio, e todos os sofrimentos dessa espécie, aguentando firme; e vence, sem (d) desistir da sua nobre indignação, antes de executar o seu propósito ou morrer, ou de ser chamado e acalmado pela razão que nele existe — como um cão pelo seu pastor?

— A comparação com o que dizes está perfeita. Pois na nossa cidade colocámos auxiliares, submetidos aos chefes, como cães aos pastores.

— Entendes perfeitamente o que eu quero dizer. Mas, além disso, vais pensar ainda neste ponto.

(e) — Qual?

— Que relativamente ao elemento irascível, é o contrário do que nos parecia há pouco. De facto, julgávamos então que se aproximava do elemento de concupiscência, ao passo que agora afirmamos que está muito longe disso; de preferência, toma armas pela razão, quando há luta na alma.

— Exactamente.

— Porventura será diferente da razão, ou uma qualquer das suas formas, de maneira que haverá na alma, não três, mas dois elementos, o racional e o concupiscível? Ou tal como, na cidade, esta se compunha de três classes — a negociante, a auxiliar e a deliberativa — também na alma a (441a) terceira servia este elemento irascível, auxiliar do racional por natureza, quando não foi corrompido por uma má educação?

— É forçoso que seja o terceiro.

— Sim — confirmei eu — se ele se revelar diferente do racional, como já se mostrou distinto do concupiscível.

— Não é difícil que se mostre. Até nas crianças qualquer pessoa pode ver que, mal nascem, são logo cheias de irascibilidade, ao passo que a razão, alguns nunca a (b) alcançam, segundo me parece, e a maioria, só tarde.

— Dizes bem, por Zeus! Até nos animais selvagens qualquer pessoa pode ver que é como tu dizes. Além disso, também é testemunho o verso de Homero que referimos acima: batendo no peito, censurou o seu coração.

É bem claro que Homero imaginou aqui um princípio a (c) repreender o outro: o que raciocinou sobre o que é melhor e o que é pior ao que se irrita sem. razão.

— O que dizes é absolutamente exacto.

— Ora pois atravessámos a nado, com grande custo, este mar de dificuldades, e concordamos perfeitamente que há na cidade e na alma de cada indivíduo as mesmas partes, e em número igual.

— É isso.

(PLATÃO. A República. Tr. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 189-201)

  1. Procurámos manter o jogo verbal entre κελευου («o que ordena») κωλΰον («o que impede»), traduzindo o primeiro por «o que impele».[]