(…) fenomenológica e historicamente, a presença da religiosidade, monoteística ou politeística, impõe-se à nossa atenção, mesmo que, por vezes, só como a das águas sussurrantes de uma torrente subterrânea. E nossa convicção, até agora inabalável, que, seja ela o que for, dela emerge originalmente tudo o que se possa dar por testemunho da ciência e da consciência que temos de nós e do mundo, e de suas relações mútuas. Temos de admitir, também que se trata da forma mais proeminentemente dramática do quer que hajamos por atividade gnósica. Além disso, como algum deus ou alguns deuses intervêm na representação, não há palavras ofensivas ou silêncio desdenhoso que possa destituí-la de sua superioridade, posto que um deus ou os deuses, quaisquer que sejam, não deixam de ser, na consciência de quem os cultua, a marca indefinível de uma absoluta supremacia sobre tudo o mais. A contraprova está patente: onde se não queira falar de Deus, de deuses, de religião, o «valor supremo» tomará sub-repticiamente o seu lugar. Historicamente, portanto, e sobretudo, fenomenologicamente, está antes e sob todas as formas de relacionamento do que nós somos, com a nossa circunstância (como diria (Ortega y Gasset), e para além desta, com o quer que venha a denominar-se, por via filosófica, de Ser, de Um, de Absoluto. Todos os povos, em todos os tempos e lugares, prestam culto a uma divindade, isto é, desempenham seu papel num drama ritual que — já o escrevemos repetidas vezes — é o que eles fazem, pensam e dizem, quando e porque os deuses lhes são presentes, e não quando pretendem que eles se lhes apresentem. O argumento ou o libreto do drama não se pode garantir que seja da própria autoria de quem o desempenha. Também já nos cansamos de glosar o mote da interdependência da ação e do respectivo cenário. Não se diga, pois, que uma seja a criadora, e outro a criatura; a relação entre ambos é o de simultaneidade no surgimento de duas partes da mesma criação, ou melhor, do desvelamento do horizonte que resulta da mesma Fulguração Ofuscante ou do mesmo Regime de Fascinação. Na perspectiva de um desenvolvimento fenomenológico, assim, impropriamente chamado, já que nenhuma razão nos assiste para crer na «continuidade» que tal desenvolvimento parece implicar — não há motivos suficientes para supor que o rito precede o mito; os mais certificados exemplos de semelhante precedência, só afetam o que verdadeiramente o não é — referimo-nos, é claro, ao mito «etiológico», quer dizer, àquele que manifestamente foi inventado para expor as causas de um ritual cujo sentido se perdeu na mais cerrada obscuridade de um passado distante, ou profundamente soterrado no olvido, pela complexa sedimentação de muitas e mui diversas culturas. Casos, porém, se nos deparam, em que se deixa insinuar uma suspeita bem fundada, da precedência do ritual, que não parece mera expectativa de uma «etiologia» não inventada ainda.
Eudoro de Sousa (HC:205-206) – Divindade
- Eudoro de Sousa (2002:162) – três estados do pensamento humano [Comte]
- Eudoro de Sousa (2002:163-164) – homem e mundo comparticipam mesmo projeto do Ser
- Eudoro de Sousa (2002:166-167) – Teoria dramática do conhecimento
- Eudoro de Sousa (HCSM:104-110) – Empédocles
- Eudoro de Sousa (HCSM:110-112) – mundo é uma caverna
- Eudoro de Sousa (HCSM:112-113) – Ideia do Bem
- Eudoro de Sousa (HCSM:114-115) – noûs, dianoia, pistis, eikasia
- Eudoro de Sousa (HCSM:115-118) – Mito da Caverna
- Eudoro de Sousa (HCSM:118-123) – interpretação da República VI e VII (504d-517c)
- Eudoro de Sousa (HCSM:123-124) – indizibilidade do Ser