Rachel Bespaloff (2009) – encobrimento [Verschlossenheit]

Ou como você traduz Verschlossenheit 1? Você dirá que o Ser é velado, encoberto, inacessível, que ele se evade e se recusa, que estamos proibidos de captá-lo em sua integridade, que a Existência humana está simultaneamente na verdade e na falsidade, que diante do Ser ela é tanto dotada de clarividência quanto afligida pela cegueira? (Zur Faktizität des Daseins gehören Verschlossenheit und Verdecktheit 2.) Tudo isso, entretanto, está implícito na Verschlossenheit. Entendamos que o Ser é elusivo porque no coração da Existência há um defeito, uma lacuna, uma nulidade original. A existência foi lançada no Ser, ela não o escolheu: foi transmitida a ele, entregue a ele (überantwortet). Seiend ist das Dasein geworfenes, nicht von ihm selbst in sein Da gebracht 3. Há essa “vergonha” em sua origem. Das Dasein ist nie existent vor seinem Grunde, sondern je nur aus ihm und als dieser 4. A existência assume o ônus do Ser: ao existir, é seu próprio fundamento, mas não o estabeleceu. Essa fenda pela qual o nada entra, nada pode preenchê-la: é a Geworfenheit des Daseins 5. Mas não devemos confundir esse nada com uma negação vazia. Para Heidegger, ao contrário, o nada “é algo”. Ist es denn aber so selbstverständlich, dass jedes Nicht ein Negativum in Sinne eines Mangels bedeutet?6 A falha original da Existência é ser das (nichtige) Grundsein einer Nichtigkeit 7. Revelar o que existe é disputá-lo com as aparências, extorqui-lo, roubar-lhe o segredo. Isso requer uma decisão corajosa: é isso que é Entschlossenheit. Mesmo o que já foi descoberto, oferecido, deve ser redescoberto, apropriado. Das Dasein muss wesenhaft das auch schon Entdeckte gegen den Schein sich ausdrücklich zueignen8.

Mas, antes de tudo, Entschlossenheit é a vontade de estar consciente de nosso nada íntimo: Gewissen-haben-wollen 9. E aqui voltamos ao nosso ponto de partida: essa vontade de estar ciente do nada da Existência é, como autocompreensão, um aspecto — e não o menos sério, o menos importante — da Erschlossenheit dos Daseins.

Tudo isso por três prefixos…

[BESPALOFF, Rachel. Sur Heidegger. Paris: Éditions de la revue Conférence, 2009]
  1. “Fechamento”, SZ:184, 222, 308, 348[]
  2. “O fechamento e a recuperação pertencem à facticidade do Dasein”. (SZ:222)[]
  3. “Ente, o Dasein é lançado — ele não é trazido para o seu Aí por si mesmo.” (SZ:284)[]
  4. O Dasein “nunca é existente antes de seu fundamento, mas sempre apenas a partir dele e como tal”. (SZ:284)[]
  5. “O ser-jogado do Dasein.” (SZ:284); §38 (ET38).[]
  6. “É então tão “óbvio” que todo não significa uma negativa no sentido de um defeito?” (SZ:285-286)[]
  7. “O ser-fundamento (nulo) de uma nulidade”. (SZ:285)]. Essa falha, na maioria das vezes, nós podemos e queremos ignorar: é por isso que a Existência está tanto na verdade — Erschlossenheit — quanto no erro — Verschlossenheit.

    Mas, mais uma vez, vamos mudar o prefixo: Erschlossenheit — Verschlossenheit — Entschlossenheit. Espírito de decisão, coragem resoluta? É seco, carece de grandeza, tensão, peso. Entschlossenheit é o esforço difícil, muitas vezes perigoso, que temos de fazer para nos afastar da mentira original. Wahrheit (Entdecktheit) muss dem Seienden immer erst abgerungen werden. A pessoa que está sendo vista entra em contato com a verdade… Entdecktheit ist gleichsam immer ein Raub [[“A verdade (ser-descoberto) deve sempre ser primeiro arrancada do ser. O ser é arrancado da retirada. Em todos os casos, a descoberta fáctica é, por assim dizer, sempre uma abdução”. (SZ:222)[]

  8. “O Dasein deve essencialmente se apropriar expressamente até mesmo daquilo que já foi descoberto contra a aparência.” (SZ:222.)[]
  9. “Vontade-de-ter-consciência”. (SZ:234 e §§ 58 (ET58), 60 (ET60) e 62 (ET62)).[]