A explicação da recusa a priori de Heidegger do caminho formal da hermenêutica, quer esta recusa seja “consequente”, “justa” ou não, encontra-se mais precisamente na acentuação, pelo segundo Heidegger, da dimensão de pertença ao Ser, na sua descrição posterior daquilo a que chama então a relação hermenêutica.
Para compreender isto, temos à nossa disposição um texto muito útil, “De uma conversa sobre a linguagem…” [GA12:87-140], no qual Heidegger retraça, por assim dizer, a totalidade do seu processo de pensamento sobre o tema da hermenêutica. Em particular, a mudança de formulação e de problemática que nos leva a falar de um “segundo Heidegger” é assinalada como tal. Para começar, Heidegger retoma o tema de Sein und Zeit inserindo-o numa perspectiva que já não é a da análise existencial:
“Hermenêutica, em Sein und Zeit, não significa nem a doutrina da arte de interpretar, nem a própria interpretação, mas antes a tentativa de determinar o que é a interpretação sobretudo a partir do que é hermenêutico.” [GA12:96]
O significado da estranha locução “o que é hermenêutico” só será oferecido mais tarde na entrevista. Só pode ser apreendido no contexto das opções do falecido Heidegger, que procura desdobrar a Seinsfrage independentemente da (inescapável ainda) sujeição do ser ao ente, a fim de desatar, por assim dizer, a ligação entre Ser e Essência 1, em trama desde os gregos para o grande benefício da indistinção Ciência/Filosofia 2.
A hermenêutica, então, é finalmente explicada em termos da reaproximação ἑρμηνευείν/Ἑρμῆς, uma reaproximação que permite emergir a originariedade para toda a esfera hermenêutica da anunciação (sendo Hermes o deus anunciador) 3. Então Heidegger pode dizer:
“… hermenêutica significa não primariamente interpretar, mas ainda antes disso: ser portador de anúncio e portador de conhecimento.” [GA12:115]
Em última análise, a hermenêutica aloja-se na relação do homem com a duplicidade do ser e do ente. Ela é equiparada ao fato de o homem
“é como homem na medida em que fala respondendo à palavra da duplicação, dando-a a conhecer naquilo que ela anuncia” [GA12:115].
A hermenêutica não é, pois, a palavra que “interpreta” uma outra palavra, mas o acontecimento de que o mistério originário (a decomposição do Ser em ente) vale como palavra, e esta palavra como anúncio, que vincula o homem fazendo da sua palavra uma resposta. Mas o fato de a duplicação ser uma palavra que anuncia diz também, mais profundamente, que ela se dirige a si mesma, que ela exige. A palavra do homem responde a este pedido e responde-lhe. É neste sentido que
“O elemento predominante e de apoio na relação do ser humano com a duplicação é, por conseguinte, a palavra. É a palavra que dá voz à relação hermenêutica” [GA12:115].
É este dispositivo, em que a fala transita e transporta, de forma súplice, a partir da duplicidade, que confere ao Ser um sentido para além do envolvimento no ente.
Após este primeiro contacto com o segundo discurso de Heidegger sobre a hermenêutica, em que a duplicação e o seu apelo são apresentados, interrogar-nos-emos sobre o que ele poderá mudar em termos do estatuto da coisa formal. A nova figura é sobretudo nova através de dois gestos “nominais”, que fazem sentir a sua importância em muitos sítios da obra tardia de Heidegger:
– a pré-orientação necessária à hermenêutica, que Heidegger designou em Sein und Zeit como um projeto “formal”, e que descreveu como algo articulado que comporta uma indeterminação, é identificada como um pedido;
– o elemento em que a hermenêutica tem lugar é identificado como a palavra.
- Ou pelo menos aquela categoria de Essência que sempre “orienta” antecipadamente a luz da essência de isto-sobre-que-é-essência e que é válida como ente.[↩]
- Vimos na primeira parte deste artigo a ideia que Heidegger tem desta solidariedade “metafísica”; um texto como “O que é a metafísica? (GA9) salienta-o particularmente[↩]
- Considerando que no início de Sein und Zeit a etimologia ordenava que a hermenêutica fosse entendida como explicitação, recordê-mo-lo.[↩]