Carneiro Leão (2015:551-553) – o que é o sentido de ser?

Mas o que é o sentido de ser?

Sempre procuramos responder a esta pergunta dando uma definição direta e cabal do ser; sempre nos esforçamos por apreender-lhe o sentido, dentro de uma determinação imediata e exaustiva de seu uso e de sua significação. Mas todas estas tentativas e esforços terminam num fracasso. Por isso, tentamos sempre de novo, buscando caminhos indiretos através da filosofia, da ciência, da arte e da religião, ou mediante as ordens do conhecimento com seus modelos, da ação com seus padrões, e do sentimento com suas vivências. E fracassamos de novo. É que o ser não somente não pode ser definido, como também nunca se deixa determinar em seu sentido por outra coisa nem como outra coisa. O ser só pode ser determinado a partir de seu sentido como ele mesmo. Também não pode ser comparado com algo que tivesse condições de determiná-lo positivamente em seu sentido. O ser é algo derradeiro e último que subsiste por seu sentido, é algo autônomo e independente que se dá em seu sentido.

Mas então por que não temos escolha e somos sempre colhidos pela tentação de defini-lo em seu sentido, de delimitá-lo em sua verdade, de circunscrever sua vigência? E será mesmo que com todo esse esforço não obtemos nada, a não ser insucessos e fracassos ao longo de toda a história do Ocidente?

A resposta a esta pergunta só pode ser ambivalente e paradoxal e por isso mesmo estranha e curiosa: decerto que não e decerto (551) que sim. Do contrário, não poderia haver nem ter havido a história que há e que houve. De um lado, nunca se obteve nem se obtém uma definição do ser. Mas, em compensação, ganha-se sempre uma experiência essencial de seu sentido: a experiência de que o ser sempre se esquiva e desvia em todos os desempenhos de apreendê-lo, em qualquer esforço por representá-lo e defini-lo. Pois tudo que fazemos ou deixamos de fazer serve para nos distanciar. E nunca terminamos de nos afastar. Pois não temos escolha. Somos colhidos pela tração do retraimento. E, na força desta tração, significamos o sentido do ser. Por isso, só nos resta encarar de frente o ser no movimento de seu sentido a fim de não perdê-lo de vista e esquecê-lo nas obnubilações do tempo. Os percalços e peripécias do tempo nos proporcionam o horizonte de doação do sentido que se dá, na medida em que se retrai.

E como poderemos perder de vista e esquecer o que ainda nem vimos e apreendemos? Como o ser poderá esquivar-se de nós se nunca conseguimos apanhá-lo ou mesmo acompanhá-lo no arrastão do retraimento? — Mas será mesmo que é assim este mistério de Ser e Tempo? Será que realmente não podemos ver nem apreender, sentir nem convir por onde e para onde o ser nos atrai com sua retração? Ou será somente que temos receio, ou será apenas que sentimos angústia ao nos aventurarmos no arrastão do tempo? E por isso recuamos diante da necessidade de nos desprender das presas, evitando assim o empenho radical que supõe todo esforço pelo sentido do ser no tempo!

O que nos rendem os fracassos ao caracterizarmos o ser em seu sentido, seja por via direta, seja por via indireta? Qual o resultado negativo ou positivo das tentativas que sempre somos levados a fazer? — Não é nada mais nem nada menos do que a experiência originária do tempo como “pronome do ser”, em retração. O ser não se deixa apreender ou determinar nem por via direta nem por desvios, nem por outra coisa nem como outra coisa. Ao contrário, exige e impõe que nos contentemos com o tempo de seu sentido e nos relacionemos com todas as realizações a partir de seu nada, isto é, a partir de seu retraimento e de sua ausência.

É por esta vertigem de Ser e Tempo que pensar é o modo de ser do homem, no sentido da dinâmica de articulação de sua existência. (552) Pensando, o homem é ele mesmo, sendo outro. Para o pensamento não há lugar preenchido num tempo ocupado. Tudo está vazio de realização. Só o saber, só o fazer, só o crer, só o sentir não são suficientemente pobres, nem bastante desprendidos para a embriaguez que se entrega ao imprevisível, para a paixão que se abandona ao inesperado. — Os criadores sabem alguma coisa desta embriaguez, pois vivem do arrebatamento desta paixão.

Pensar o sentido de ser é escutar a realidade nos vórtices das realizações, deixando-se dizer para si mesmo o que é digno de ser pensado como o outro. O pensamento de ser, no tempo das realizações, é inseparável das falas e das línguas da linguagem com o respectivo silêncio. E se dão muitas falas. A fala da técnica, a fala da ciência, a fala da convivência, a fala da fé, a fala da arte. Pois a fala do pensamento é escutar. Escutando, o pensamento fala. A escuta é a dimensão mais profunda e o modo mais simples de falar. O barulho do silêncio constitui a forma originária de dizer. No silêncio, o sentido do ser chega a um dizer sem discurso nem fala, sem origem nem termo, sem espessura nem gravidade, mas que sempre se faz sentir, tanto na presença como na ausência de qualquer realização ou coisa. Aqui o discurso simplesmente se cala por não ter o que falar e, neste calar-se, tudo chega a vibrar e viver na originalidade de sua primeira vez. É o tempo originário do sentido.