Raffoul (2010:244-246) – Dasein significa ser uma responsabilidade

Pode-se chegar até o ponto de dizer que o próprio conceito de Dasein significa ser uma responsabilidade. No curso do semestre de verão de 1930, A Essência da Liberdade Humana (GA31), lemos que a auto-responsabilidade (Selbstverantwortlichkeit) representa a própria essência da pessoa: “A auto-responsabilidade é o tipo fundamental de se determinar distintamente a ação humana, isto é, a prática ética. “(GA31, 263; EHF, 183). Como enfatizamos, o Dasein é aquele sendo para o qual e em que sendo está em questão. Não sou eu mesmo como se eu ‘tivesse’ mim mesmo no sentido de uma possessão ou predicado; antes, tenho sendo para ser como meu próprio, porque tal sendo é endereçado a mim como uma maneira possível de sendo, como uma maneira de ser, e não como um ‘quê’. Não sou este sendo no sentido de um tendo, mas tenho este sendo para ser (Zu-sein). Dasein é um sendo que nunca “é” o que é (como um ente subsistente (vorhanden)), porque “A essência deste ente jaz em seu ‘ser’” (Sein und Zeit, 42). O sendo que eu sou deve ser assumido. Essa determinação do Dasein desde o início o define como uma responsabilidade. É isso que a expressão de “cuidado” (Sorge) procura expressar, a saber, a responsabilidade primordial de um mesmo que Dasein, como Zu-sein, é. Dasein “simplesmente não ocorre entre outros entes”; ao contrário, Dasein “é/está preocupado com seu próprio sendo” (Sein und Zeit, 12). É por isso que, para o ser humano, a “demanda última”, como Heidegger explica no curso de 1929-1930 sobre Os Conceitos Fundamentais da Metafísica, é que ele “assuma sobre ele mesmo de novo, explícita e expressamente, seu próprio Dasein e para ser responsável por ele” (GA29-30, 254).

Lembramos a conhecida passagem de Sein und Zeit, onde Heidegger escreve que “A questão do sentido do Ser é a mais universal e a mais vazia das questões, mas, ao mesmo tempo, é possível individualizá-la com muita precisão para qualquer Dasein em particular” (SZ, 39). Por um lado, esta expressão deixa claro que a individuação radical do Dasein não está mais relacionada a algum polo subjetivo ou individual do ego, mas sim ao próprio ser (o Dasein é singularizado somente por meio do ser). Isso atesta o não-subjetivismo radical do pensamento de Heidegger sobre o Dasein. Por outro lado, e correlativamente, revela que o próprio ser, como Heidegger estabelece no primeiro parágrafo de Ser e Tempo, não é uma universalidade genérica, mas aponta para sua singularização. Heidegger se refere a esse fenômeno como o caráter “ofensivo” ou “desafiador” da questão do ser, seu “poder de ataque”, atingindo o ser singular assim “tocado” pelo ser.1 O ser acontece ao Dasein. Em sua própria natureza, o ser é singularizado ao “tocar” ou atingir o Dasein, ao envolver o Dasein em seu acontecimento. Nesse sentido, o ser não pode ser distinguido do acontecimento singular de uma existência que, a cada vez, é entregue a si mesma e que, nessa medida, é responsável por si mesma. O ser, portanto, não é nada além da própria existência, o que esclarece por que a ontologia fundamental, embora a analítica existencial esteja subordinada a ela, está localizada em uma análise da existência. O ser envolve uma existência singular, lançada em sua possibilidade de ser, uma existência que, de fato, nunca pode se livrar de seu ser — uma existência que está sobrecarregada com uma responsabilidade original. Heidegger enfatiza que o ser é dado ao Dasein como algo próprio e exclusivo. Aí reside a responsabilidade original do Dasein — ninguém pode responder por esse envio em meu lugar. Eu devo responder pelo ser e só posso fazer isso na primeira pessoa. Como explica Jean-Luc Marion, “o Dasein, por si só, só pode ter acesso ao ser se se colocar adequadamente em (246) jogo na primeira pessoa, assumindo esse risco como quem se expõe à morte”.2 Aqui, uma concepção genérica da universalidade do ser é deixada para trás. A existência não é uma essência genérica, mas uma responsabilidade “em relação à morte”, e o ser “em geral” é declinado apenas nessa responsabilidade singular da existência fática. A existência, então, designa o fenômeno de ser entregue a si mesmo. “Ser” significa imediatamente ‘ser próprio’, isto é, ser ele mesmo (o si é um fenômeno existencial, não uma presença substancial), pois a essência do Dasein reside ‘no fato de que em cada caso ele tem seu ser para ser, e o tem como seu próprio’ (SZ, 12). Esse ter a si mesmo não implica que eu tenha meu ser como um predicado, nem que ele seja postulado por mim. Eu pertenço a mim mesmo na medida em que sou entregue ao ser que sou, e que tenho de ser como uma possibilidade de ser. O ser é dado a mim para que eu seja (ek-staticamente) o seu Aí, e seja responsável por este. Esse ter a si mesmo, portanto, repousa sobre a dação da existência, que me chama a ser em uma responsabilidade original.

  1. Martin Heidegger, The Essence of Human Freedom, trans. Ted Sadler (London: Continuum, 2002), 10. A few pages later, Heidegger explains that the question on the totality of beings is a “going-to-the-root,” which in turn “must take aim at us” (GA31:EHF, 24), and represents a challenge to us.[]
  2. Jean-Luc Marion, “Le sujet en dernier appel,” Revue de métaphysique et de morale 96, no. 1 (1991): 77-95, here 79.[]