A presença de Heidegger em Bultmann não se dá pela simples reprodução, por parte de Bultmann, de conceitos e problemas heideggerianos. Deve-se observar que dificilmente encontraremos textos de Bultmann onde há alguma reconstrução filosófica dos conceitos e sobretudo contextos hermenêuticos heideggerianos. Podemos até dizer que muitas vezes Bultmann operacionaliza conceitos de Heidegger, ainda que destacados do seu projeto ontológico maior, como a ontologia fundamental, no caso de Ser e tempo, ou a hermenêutica da facticidade, que atravessa diversos textos da década de 1920. Contudo, essa simples operacionalização não explica radicalmente a presença de Heidegger em Bultmann. Antes, se nos detivermos nesse modo de abordagem do problema, estaremos reinscrevendo a noção de causalidade na historicidade do pensamento. Isso porque perceberíamos que a obra de Bultmann só é ela mesma pela influência de Heidegger. Tal influência seria uma espécie de causa explicativa do movimento de realização da obra bultmanniana. Em outras palavras: Heidegger seria a causa eficiente da obra de Bultmann, pensamento este que reinsere a tendência e (im) postura metafísicas de explicar a originalidade de um autor pela relação causai (portanto, pela relação com algum elemento exterior) com aquele que de algum modo o precedeu. Nesse sentido, Platão é a causa eficiente da obra de Aristóteles; Descartes seria a razão suficiente de Leibniz, Kant e Hegel; (256) Schopenhauer seria a causa da obra nietzschiana e assim por diante. Isso certamente é impossível. A singularidade de uma obra não é explicada por qualquer relação causai com seus predecessores, nem com elementos psicológicos subjetivos. Como afirmamos na introdução, não se pode negar o caráter tradicional de todo pensamento, que está contaminado por laços históricos, portanto, está sempre referido a uma relação essencial com o passado. Todavia, tal relação, no caso dos pensadores, sempre se estrutura por meio de uma apropriação criativa, o que significa dizer que a singularidade de um autor depende de um modo também singular de incorporação de elementos provenientes do passado da tradição. Para tanto, é preciso que o pensador em questão deixe despontar o seu horizonte hermenêutico, de onde parte a sua apropriação do passado ou de conceitos alheios. À medida que tal apropriação começa a se determinar, o legado apropriado (sobretudo os conceitos de outros autores) é inscrito na singularidade de um outro horizonte hermenêutico, muitas vezes gerando uma metamorfose radical dos significados dos conceitos e problemas apropriados. É justamente isso que acontece com a apropriação bultmanniana de Heidegger. Não há uma cópia da obra heideggeriana em Bultmann. Dito de outro modo: Bultmann não é um heideggeriano, caso entendamos esse adjetivo como sinônimo do estudioso reprodutor da obra de Heidegger. Bultmann não é, de modo algum, um comentador de Heidegger e nunca pretendeu sê-lo. Antes disso, Bultmann é teólogo e, como tal, move-se no horizonte hermenêutico próprio da (sua) teologia. Por isso, Bultmann apropria-se de Heidegger para vir a ser o teólogo que ele se tomou. Ora, poder-se-ia dizer, então, que Heidegger está em Bultmann por causa dos conceitos que este operacionaliza da obra heideggeriana. Isso, entretanto, não é tão simples como parece, pois os conceitos que Bultmann operacionaliza da obra heideggeriana, grande parte das vezes, podem ser encontrados em Kierkegaard e, como se sabe, Bultmann era leitor de Kierkegaard e Heidegger também. Podemos supor, então que, primeiramente, Bultmann encontrou em Kierkegaard algo que reencontraria, sob nova formulação, em Heidegger. (257) Bultmann teria, nesse sentido, se apropriado, ainda que de modo não consciente, de um Heidegger mitigado ou de um Heidegger kierkeggardianizado, o que certamente não é improvável, uma vez que, como já afirmado na introdução, Bultmann se interessa pelos conceitos existenciais de Heidegger e não pelo projeto ontológico que atravessa a obra heideggeriana. Esses conceitos, muitas vezes, já estão, de algum modo, presentes em Kierkegaard. Nesse sentido, a presença de Heidegger em Bultmann deve ser evidenciada de outro modo.
Antes de tudo, e essa é a primeira parte da hipótese dessa investigação, Heidegger está em Bultmann através do modo como Bultmann usa a filosofia no seu labor teológico. Bultmann operacionaliza a ideia heideggeriana de que a filosofia deve relacionar-se com a teologia como elemento corretivo. Por outro lado, e esse é o segundo aspecto da nossa hipótese, Heidegger atravessa a obra bultmanniana por meio da relação analógica entre desmitologização e destruição. Dessa forma, Bultmann teria criado um procedimento hermenêutico análogo ao procedimento, também hermenêutico, da destruição fenomenológica. Deve-se observar que a nossa hipótese não se encontra desenvolvida nas obras de Heidegger e Bultmann.