A distinção que Kant faz entre Vernunft e Verstand, “razão” e “intelecto” (e não “entendimento”, o que me parece uma tradução equivocada; Kant usava o alemão Verstand para traduzir o latim intellectus, e, embora Verstand seja o substantivo de verstehen, o “entendimento” das traduções usuais não tem nenhuma das conotações inerentes ao alemão das Verstehen) é crucial para nossa empreitada. Kant traçou essa distinção entre as duas faculdades espirituais após haver descoberto o “escândalo da razão”, ou seja, o fato de que nosso espírito não é capaz de um conhecimento certo e verificável em relação a assuntos e questões sobre os quais, no entanto, ele mesmo não se pode impedir de pensar. Para ele, esses assuntos — aqueles dos quais apenas o pensamento se ocupa — restringiam-se ao que agora chamamos habitualmente de as “questões últimas” de Deus, da LIBERDADE e da imortalidade. Mas independentemente do interesse existencial que os homens tomaram por essas questões, e embora Kant ainda acreditasse que “nunca houve uma alma honesta que tenha suportado pensar que tudo termina com a morte” [Werke, vol. I, p. 989], ele também estava bastante consciente de que a “necessidade urgente” da razão não só é diferente, mas é “mais do que a mera busca e o desejo de conhecimento” [“Prolegomena”, Werke, vol. III, p. 245]. Assim, a distinção entre as duas faculdades, razão e intelecto, coincide com a distinção entre duas atividades espirituais completamente diferentes: pensar e conhecer; e dois interesses inteiramente distintos: o significado, no primeiro caso, e a cognição, no segundo. Embora houvesse insistido nessa distinção, Kant estava ainda tão fortemente tolhido pelo enorme peso da tradição metafísica que não pôde afastar-se de seu tema tradicional, ou seja, daqueles tópicos que se podiam provar incognoscíveis; e embora justificasse a necessidade de a razão pensar além dos limites do que pode ser conhecido, permaneceu inconsciente ao fato de a necessidade humana de reflexão acompanhar quase tudo o que acontece ao homem, tanto as coisas que conhece como as que nunca poderá conhecer. Por tê-la justificado unicamente em termos dessas questões últimas, Kant não se deu conta inteiramente da medida em que havia liberado a razão, a habilidade de pensar. Afirmava, defensivamente, que havia “achado necessário negar o conhecimento […] para abrir espaço para a fé” [Critique of Pure Reason, Bxxx]. Mas não abriu espaço para a fé, e sim para o pensamento, assim como não “negou o conhecimento”, mas separou conhecimento de pensamento. Nas notas de suas lições sobre a metafísica, escreveu: “O propósito da metafísica […] é estender, embora apenas negativamente, nosso uso da razão para além dos limites do mundo dado aos sentidos; isto é, eliminar os obstáculos que a razão cria para si própria” (grifos nossos) [Kant’s handschriftlicher Nachlass, vol. V, Akademie Ausgabe, vol. XVIII, 48-49]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]
O conceito de aparência e, portanto, o de semblância (de Erscheinung e de Schein) nunca desempenharam um papel tão central e decisivo quanto na obra de Kant. A noção kantiana de uma “coisa-em-si”, algo que é mas que não aparece embora produza aparências, pode ser explicada — como de fato o foi — nos termos de uma tradição teológica: Deus é “algo”; Ele “não é um nada”. Deus pode ser pensado, mas somente como o que não aparece, o que não é dado à nossa experiência e, portanto, como o que é “em si mesmo”; e como Ele não aparece, não é para nós. Essa interpretação tem suas dificuldades. Para Kant, Deus é uma “ideia de razão” e, como tal, para nós. Pensar Deus e especular sobre um além é, segundo Kant, inerente ao pensamento humano, uma vez que a razão, a capacidade especulativa do homem, transcende necessariamente as faculdades cognitivas de seu intelecto: somente o que aparece e, no modo do parece-me, é dado à experiência pode ser conhecido; mas os pensamentos também “são”, e algumas coisas-pensamento, a que Kant chama “ideias”, embora nunca dadas à experiência e portanto incognoscíveis, tais como Deus, a LIBERDADE e a imortalidade, são para nós, no sentido enfático de que a razão não pode se impedir de pensá-las e que elas são de grande interesse para os homens e para a vida do espírito. Talvez seja, pois, aconselhável examinar em que medida a noção de uma “coisa-em-si” que não aparece está dada na própria compreensão do mundo como um mundo de aparências, independentemente das necessidades e dos pressupostos de um ser pensante e da vida do espírito. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]
A fonte da verdade matemática é o cérebro humano; e o poder cerebral não é menos natural nem está menos equipado para nos guiar em um mundo que aparece do que o estão nossos sentidos vinculados ao senso comum e à extensão daquilo que Kant denominou intelecto. A melhor prova disso pode estar no fato bastante misterioso de que o raciocínio matemático — a mais pura atividade de nosso cérebro e, à primeira vista, em função da abstração que faz de todas as qualidades dadas aos nossos sentidos, a mais distanciada do mero raciocínio do senso comum — possa assumir um papel tão desmesuradamente liberador na exploração científica do universo. O intelecto, o órgão do conhecimento e da cognição, ainda pertence a este mundo; nas palavras de Duns Scotus, ele está sob o domínio da natureza, cadit sub natura, e carrega consigo todas as necessidades a que está sujeito um ser vivo dotado de órgãos sensoriais e poder cerebral. O oposto de necessidade não é contingência ou acidente, mas LIBERDADE. Tudo o que aparece aos olhos humanos, tudo que ocorre ao espírito humano, tudo o que acontece de pior ou de melhor aos mortais é “contingente”, inclusive sua própria existência. Todos sabemos que: Unpredictably, decades ago, You arrived among that unending cascade of creatures spewed from Nature’s maw. A random event, says Science. O que não nos impede de responder com o poeta: Random my bottom! A true miracle, say I, for who is not certain that he was meant to be? [“Décadas atrás, subitamente você chegou/ em meio à infinita cascata de criaturas vomitadas/ das entranhas da Natureza. Um evento aleatório, diz a Ciência.” O que não nos impede de responder com o poeta: “Aleatório uma ova! Um verdadeiro milagre, digo eu,/ pois quem duvida de que ele estava destinado a ser?”. W. H. Auden, “Talking to Myself”, Collected Poems, Nova York, 1976, p. 653 (tradução livre).] Mas esse estar “destinado a ser” não é uma verdade; é uma proposição altamente significativa. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]
A famosa distinção kantiana entre Vernunft e Verstand, entre a faculdade do pensamento especulativo e a capacidade de conhecer que surge da experiência sensorial — em que “todo pensamento é apenas um meio para alcançar a intuição” (“Quaisquer que sejam as maneiras e os meios pelos quais um conhecimento esteja relacionado com objetos, a intuição é o meio através do qual o conhecimento está em relação imediata com os objetos, e para o qual todo pensamento, como um meio, se dirige”) [Critique of Pure Reason, A19, B33] —, tem consequências de alcance muito mais amplo e por vezes são distintas das consequências por ele reconhecidas. [Que eu conheça, a única interpretação de Kant que poderia ser citada em apoio à minha própria compreensão da distinção kantiana entre razão e intelecto é a excelente análise de Crítica da razão pura feita por Eric Weil: “Penser et Connaître, la Foi et la Chose-en-soi”, in Problèmes Kantiens, 2ª ed., Paris, 1970. Segundo Weil, é inevitável “d’affirmer que Kant, qui dénie à la raison pure la possibilité de connaître et de développer une science, lui reconnaît, en revanche, celle d’acquérir un savoir qui, au lieu de connaître, pense” (p. 23). Deve-se admitir, entretanto, que as conclusões de Weil permanecem próximo da compreensão que Kant tinha de si mesmo. Weil está interessado principalmente na interconexão entre as razões Pura e Prática; desse modo afirma que “le fondement dernier de la philosophie kantienne doit être cherché dans sa theórie de l’homme, dans l’anthropologie philosophique, non dans une ‘théorie de la connaissance’ […]” (p. 33). Por outro lado, minhas principais reservas em relação à filosofia de Kant dizem respeito precisamente à sua filosofia moral, ou seja, à Crítica da razão prática, embora eu concorde, naturalmente, que aqueles que leram a Crítica da razão pura como uma espécie de epistemologia parecem ignorar completamente os capítulos finais do livro (p. 34). Os quatro ensaios do livro de Weil, de longe os mais importantes artigos da literatura sobre Kant nos últimos anos, estão baseados na descoberta simples, mas crucial, de que “l’opposition connaître […] et penser est fondamentale pour la compréhension de la pensée kantienne” (p.112, n. 2).] (Discutindo Platão, Kant certa vez observou que “não é nada incomum, quando se comparam os pensamentos expressos por um autor com o seu assunto […], descobrir que compreendemos melhor esse autor do que ele próprio compreendeu a si mesmo. À medida que o autor não determinou suficientemente seu conceito, pode ser que, algumas vezes, ele tenha falado ou até pensado em sentido contrário à sua intenção” [Critique of Pure Reason, A314]. Isso, naturalmente, é aplicável à própria obra de Kant.) Embora tenha insistido na incapacidade da razão para atingir conhecimento, particularmente em relação a Deus, à LIBERDADE e à imortalidade — para ele os mais elevados objetos do pensamento —, não pôde romper completamente com a convicção de que o propósito final do pensamento, assim como do conhecimento, é a verdade e a cognição; é assim que ele utiliza ao longo de suas Críticas o termo Vernunfterkentnis, “conhecimento derivado da razão pura” [Ibidem, B868], uma noção que, para ele, deve ter sido uma contradição em termos. Kant nunca teve completa consciência de haver liberado a razão e o pensamento, de haver justificado essa faculdade e sua atividade, mesmo quando elas não se podem gabar de ter produzido quaisquer “resultados” positivos. Como vimos, ele afirmou ter “achado necessário negar o conhecimento […] para abrir espaço para a fé” [Ibidem, Bxxx]; mas o que ele de fato “negou” foi o conhecimento das coisas incognoscíveis; com isso, abriu espaço para o pensamento, não para a fé. Acreditava ter lançado as fundações de uma “metafísica sistemática” futura como um “legado para a posteridade” [Ibidem]; e é verdade que, sem a liberação do pensamento especulativo realizada por Kant, o surgimento do idealismo alemão e de seus sistemas metafísicos dificilmente teria sido possível. Mas a nova leva de filósofos — Fichte, Schelling, Hegel — não teria agradado Kant. Liberados por ele do velho dogmatismo escolástico e de seus exercícios estéreis, e encorajados a cultivar o pensamento especulativo, eles seguiram, na verdade, o exemplo de Descartes: saíram em busca de certeza, apagaram novamente a linha demarcatória entre pensamento e conhecimento e acreditaram honestamente que os resultados de suas especulações tinham o mesmo tipo de validade que os resultados dos processos cognitivos. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]
Talvez seja por essa mesma razão que Kant equaciona o que aqui chamamos de significado com propósito e até com intenção (Zweck e Absicht): a “mais elevada unidade formal, a que repousa unicamente sobre conceitos da razão, é a unidade das coisas com um propósito. O interesse especulativo da razão torna necessário encarar toda a ordem do mundo como se ela tivesse se originado na [intenção] de uma razão suprema”. [Ibidem, B714] Consequentemente, a razão persegue fins específicos e possui intenções específicas quando se serve de suas ideias; é a necessidade da razão humana e seu interesse por Deus, pela LIBERDADE e pela imortalidade que fazem os homens pensar. Não obstante, algumas páginas depois, Kant irá admitir que o “interesse meramente especulativo da razão” com relação aos três objetos principais do pensamento — “a LIBERDADE da vontade, a imortalidade da alma e a existência de Deus” — “é muito pequeno; e apenas por causa dele dificilmente nos daríamos ao trabalho das investigações transcendentais […], já que quaisquer que fossem as descobertas sobre esses temas, não seria possível que delas extraíssemos alguma utilidade, algum uso in concreto”. [Ibidem, B826] Mas não precisamos ir buscar pequenas contradições na obra desse grande pensador. Bem no meio das passagens anteriormente citadas está a sentença que apresenta o maior contraste possível com relação à própria equação que ele faz entre razão e finalidade: “A razão pura não se ocupa de nada a não ser de si mesma. Ela não pode ter qualquer outra vocação.” [Ibidem, B708] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]
Mas o problema está em que não podemos encontrar tal localidade incontestável quando nos perguntamos onde estamos quando pensamos ou quando exercemos a vontade; cercados, por assim dizer, por coisas que não são mais ou que ainda não existem; ou, finalmente, por coisas-pensamento usadas cotidianamente, tais como justiça, LIBERDADE, coragem, e que no entanto se encontram totalmente fora da experiência sensível. É bem verdade que o ego volitivo encontrou cedo uma residência, uma região que era propriamente sua; tão logo essa faculdade foi descoberta, nos primeiros séculos da Era Cristã, ela foi localizada em nosso interior; e caso alguém se pusesse a escrever a história da interioridade em termos de uma vida interna, esse alguém logo perceberia que essa história coincide com a história da Vontade. Mas a interioridade, como já indicamos, tem seus próprios problemas, mesmo quando concordamos que a alma e o espírito não são a mesma coisa. Além disso, a peculiar natureza reflexiva da vontade, às vezes identificada com o coração e quase sempre considerada o órgão do nosso eu mais profundo, tornou essa região ainda mais difícil de ser isolada. Quanto ao pensamento, a questão de saber onde estamos quando pensamos parece ter sido levantada apenas por Platão no Sofista [Sophist, 254]; lá, depois de ter determinado o lugar do sofista, ele promete determinar também o lugar do próprio filósofo — o topos noetos mencionado nos primeiros diálogos [Republic, 517b, e Phaedrus, 247c] —, mas jamais cumpriu a promessa. Pode ser que simplesmente tenha fracassado na tarefa de completar a trilogia do Sofista-Político-Filósofo; ou que tenha chegado a acreditar que a resposta estivesse dada implicitamente no Sofista, em que retrata o sofista como estando “em casa na escuridão do Não-ser”, o que “o torna tão difícil de ser percebido”, “ao passo que o filósofo […] é difícil de ser visto, porque sua região é tão luminosa; pois o olho da multidão não pode manter o olhar fixo no divino” [Sophist, 254a-b]. Essa resposta podia de fato ser esperada por parte do autor da República e da alegoria da Caverna. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 11]
Jonas enumera todas as vantagens da visão como metáfora-guia e como modelo para o espírito pensante. Há, em primeiro lugar, o fato indiscutível de que nenhum outro sentido estabelece distância tão segura entre sujeito e objeto; a distância é a condição mais básica para o funcionamento da visão. “O ganho é o conceito de objetividade, da coisa como ela é em si, diferentemente da coisa como ela me afeta; dessa distinção surge toda a ideia de theoria e de verdade teórica.” Além disso, a visão nos fornece um “múltiplo contemporâneo”, enquanto todos os outros sentidos, especialmente a audição, “constroem suas ‘unidades de percepção de um múltiplo’ a partir de uma sequência temporal de sensações”. A visão permite “LIBERDADE de escolha […], que depende […] função […] do fato de que, vendo, ainda não estou capturado pelo objeto visto […]. [O objeto visto] deixa-me estar”, assim como eu o deixo estar, enquanto os outros sentidos me afetam diretamente. Isso vale especialmente para a audição, a única concorrente possível para a visão em termos de primazia, mas que se vê desqualificada pelo fato de que “invade um sujeito passivo”. Na audição, aquele que percebe está à mercê de algo ou de alguém. (A propósito, essa pode ser a razão pela qual a língua alemã tenha feito derivar uma enorme série de palavras indicadoras da posição de não-liberdade do verbo hören, ouvir: gehorchen, hörig, gehören, obedecer, ser cativo, pertencer.) O mais importante em nosso contexto é o fato, trazido à tona por Jonas, de que a visão necessariamente “introduz o observador”; e para o observador, ao contrário do ouvinte, o “presente [não é] a experiência pontual do agora que passa”, mas é transformado em uma “dimensão dentro da qual as coisas podem ser observadas […] como uma permanência do mesmo”. “Somente a visão fornece a base sensível na qual o espírito pode conceber a ideia do eterno, aquilo que jamais se modifica e está sempre presente.” [The Phenomenon of Life, pp. 136-147, Cf. Von der Mythologie, pp. 138-152] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]
Embora houvesse desaparecido o poderoso incentivo para o filosofar, os temas da metafísica permanecem os mesmos e continuaram a prejulgar, ao longo dos séculos, quais as coisas que valem a pena ser pensadas, quais não. O que para Platão era evidente — que o conhecimento puro diz respeito às coisas que “são sempre as mesmas, sem mudança nem mistura, ou, pelo menos, as que mais se aproximam delas” [Philebus, 59b, c] —, permaneceu sendo, com múltiplas variantes, a pressuposição principal da filosofia até os últimos estágios da Era Moderna. Por definição, estavam excluídos todos os assuntos relativos aos negócios humanos, porque, contingentes, podiam sempre ser diferentes do que realmente são. Desse modo, o próprio Hegel, sob a influência da Revolução Francesa — na qual, segundo ele, princípios eternos como LIBERDADE e justiça foram realizados —, incluiu a história em seu campo de investigação. Mas só pôde fazer isso supondo que não apenas as revoluções celestes — além das simples coisas do pensamento, números e coisas afins —, mas também o desenrolar dos negócios humanos na Terra seguiam as leis férreas da necessidade, as leis da encarnação do Espírito Absoluto. Daí por diante, o objetivo do filosofar não era a imortalidade, mas a necessidade: “A contemplação filosófica não tem outro propósito senão o de eliminar o acidental.” [“Philosophie der Weltgeschichte”, Hegel Studienausgabe, vol. I, p. 291] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 14]
Ninguém, penso eu, contestará a sério que minha escolha seja historicamente justificável. O mais difícil de justificar talvez seja a transformação da figura histórica em um modelo, pois não há dúvida de que alguma transformação se faz necessária, quando a figura em questão deve desempenhar a função que lhe designamos. Étienne Gilson, em seu grande livro sobre Dante, escreveu: na Divina comédia, “um personagem […] conserva […] tanto de sua realidade histórica quanto a função representativa que Dante lhe atribui e que dele exige”. [Dante and Philosophy, trad. David Moore, Harper Torchbooks, Nova York, Evanston, Londres, 1963, p. 267.] É fácil conceder esse tipo de LIBERDADE aos poetas e chamá-lo de licença poética — mas não é tão fácil concedê-la quando não-poetas aventuram-se a dela se servir. Com ou sem justificativas, no entanto, é precisamente o que fazemos quando construímos “tipos ideais” — não a partir do nada, como nas alegorias e abstrações personificadas, tão caras aos maus poetas e a alguns eruditos, mas a partir da multidão dos seres vivos passados ou presentes que parecem ter um significado representativo. E Gilson ao menos indica a verdadeira justificativa desse método (ou técnica) quando discute o papel representativo que Dante atribui a Tomás de Aquino: o Tomás real, aponta Gilson, não teria feito o que Dante o fez fazer — o elogio de Siger de Brabante. Mas a única razão pela qual o verdadeiro Tomás teria se recusado a fazer esse elogio seria uma certa fraqueza humana, um defeito de caráter, como diria Gilson, “a parte de sua constituição que ele teria que ter deixado na porta do Paraíso para poder entrar” [Ibidem, p. 273]. Há vários traços no Sócrates de Xenofonte, cuja credibilidade histórica está acima de dúvidas, que Sócrates teria que deixar na porta do Paraíso. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 17]
Mas esta última tentativa de defender a atividade de pensar da acusação que lhe dirigem de não ser prática nem útil não funciona. A decisão a que chega a vontade não poderá jamais ser derivada da mecânica do desejo ou das deliberações do intelecto que podem vir a precedê-la. Ou bem a vontade é um órgão da livre espontaneidade que interrompe cada cadeia causal da motivação que a prende, ou bem ela nada mais é que uma ilusão. Em relação ao desejo, por um lado, e à razão, por outro, a vontade age como “uma espécie de coup d’état”, como disse Bergson, e isso obviamente significa que “os atos livres são excepcionais”: “embora sejamos livres sempre que queiramos voltar a nós mesmos, raramente acontece de querermos isso” (grifos nossos). [Time and Free Will (1910), trad. F. L. Pogson, Harper Torchbooks, Nova York, Evanston, 1960, pp. 158, 167, 240.] Em outras palavras, é impossível lidar com a atividade volitiva sem tocar no problema da LIBERDADE. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 21]
O segundo volume de A vida do espírito será dedicado à faculdade da Vontade e, por conseguinte, ao problema da LIBERDADE, o qual, como disse Bergson, “foi para os modernos o que os paradoxos dos Eleatas foram para os antigos”. Os fenômenos com os quais temos de lidar estão em grande parte encobertos por uma camada de argumentos que não são de modo algum arbitrários e que, por isso, não devem ser desprezados, mas que acabam se desvinculando das experiências reais do ego volitivo, favorecendo doutrinas e teorias não necessariamente interessadas em “salvar os fenômenos”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer Introdução]
Embora o espírito que pensa e o que quer seja sempre o mesmo, e o mesmo eu una corpo, alma e espírito, está longe de ser óbvio que a avaliação do ego pensante seja confiável, permanecendo imparcial e “objetiva” quando se trata de outras atividades do espírito. Pois é verdade que aqui a noção de uma vontade livre não só serve como um postulado necessário em toda ética e em todo sistema de leis, mas é também um “dado imediato da consciência” (nas palavras de Bergson) — tanto quanto o eu-penso de Kant ou o cogito em Descartes, cuja existência quase nunca foi questionada pela filosofia tradicional. Para antecipar: o que levantou nos filósofos a desconfiança dessa faculdade foi a conexão inevitável com a LIBERDADE: “Se devo necessariamente querer, por que então preciso falar da vontade?”, no dizer de Agostinho. A pedra de toque de um ato livre é sempre nossa consciência de que poderíamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos — algo que absolutamente não se aplica a simples desejos ou apetites, em que as necessidades corporais, as necessidades do processo vital ou a simples força de querer algo que está à mão podem sobrepor-se a quaisquer considerações, seja da Vontade, seja da Razão. A Vontade, ao que parece, tem uma LIBERDADE infinitamente maior do que o pensamento, que mesmo em sua forma mais livre, mais especulativa, não pode escapar ao princípio de não contradição. Esse fato inquestionável jamais foi tido somente como uma bênção. Os pensadores muitas vezes consideraram-no uma maldição. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer Introdução]
As faculdades humanas não são, ao contrário das condições e circunstâncias da vida humana, contemporâneas ao aparecimento do homem na Terra? Se não fosse esse o caso, como poderíamos chegar a compreender a literatura e o pensamento de tempos passados? Há, decerto, uma “história das ideias”, e seria bem fácil traçar a história da ideia de LIBERDADE: como deixou de ser uma palavra indicativa de um status político — aquele do cidadão livre e não o do escravo — e de uma circunstância física factual — aquela de um homem saudável, cujo corpo não estivesse paralisado e fosse capaz de obedecer ao espírito — e passou a ser uma palavra indicativa de uma disposição interior através da qual um homem podia sentir-se livre quando era, na verdade, um escravo, ou quando não era capaz de mover seus membros. As ideias são artefatos do espírito, e sua história pressupõe a identidade imutável do homem, o artífice. Voltaremos mais adiante a esse problema. De qualquer forma, o fato é que, antes do surgimento do cristianismo, jamais encontramos qualquer noção de uma faculdade do espírito correspondente à “ideia” de LIBERDADE, assim como a faculdade do Intelecto correspondia à verdade, e a faculdade da Razão, a coisas que estão além do conhecimento humano ou, como dissemos aqui, ao Significado. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer Introdução]
A visão de que tudo o que é real deve ser precedido de uma potencialidade como uma de suas causas nega implicitamente o futuro como um tempo verbal autêntico: o futuro nada mais é que uma consequência do passado, e a diferença entre as coisas naturais e as feitas pelos homens reside simplesmente na distinção entre aquelas cujas potencialidades necessariamente transformam-se em atualidades e aquelas que podem ou não se atualizar. Nessas circunstâncias, qualquer ideia da Vontade como órgão para o futuro, do mesmo modo que a memória é um órgão para o passado, era completamente supérflua; Aristóteles não precisava ter consciência da existência da Vontade; os gregos “sequer têm uma palavra para” o que consideramos a “fonte principal da ação”. (Thelein significa “estar pronto, estar preparado para algo”; boulesthai é “ver algo como [mais] desejável”, e a própria palavra nova inventada por Aristóteles, que se aproxima mais do que essas da nossa ideia de algum estado espiritual que tenha que preceder a ação, é pro-airesis, a “escolha” entre duas possibilidades, ou melhor, a preferência que me faz escolher uma ação em vez de outra.) [Bruno Snell, The Discovery of the Mind, Nova York, Evanston, 1960, pp. 182-183] Autores que conhecem bem a literatura grega sempre souberam desta lacuna. Assim, Gilson aponta o fato notório de “que Aristóteles não fala de LIBERDADE nem de vontade livre [Distinções importantes que Arendt fará adiante impedem a tradução do original free will por “livre-arbítrio” aqui. (N. T.)], […] o próprio termo falta;” [The Spirit of Medieval Philosophy, Nova York, 1940, p. 307] e já em Hobbes, temos este ponto bastante explícito. [“Tem sido uma questão de debate entre os velhos filósofos, muito antes da encarnação de nosso Salvador, se tudo o que ocorre vem da necessidade, ou se algumas coisas vêm do acaso […]. Mas o terceiro modo de fazer as coisas acontecer […], isto é, a vontade livre, é algo que nunca foi mencionado por eles nem pelos cristãos no início do Cristianismo […]. Mas há algum tempo os doutores da Igreja Romana extraíram deste domínio da vontade de Deus a vontade do homem; e trouxeram a doutrina em que […] a vontade [do homem] é livre e determinada pelo próprio poder da vontade.” “The Question Concerning Liberty, Necessity and Chance”, English Work, Londres, 1841, vol. V, p. 1.] A lacuna fica ainda um tanto difícil de identificar, pois é claro que a língua grega conhece a diferença entre atos intencionais e não intencionais, entre o voluntário (hekón) e o involuntário (akón), isto é, em termos legais, entre assassinato e homicídio culposo; e Aristóteles tem o cuidado de observar que só os atos voluntários estão sujeitos à acusação ou à exaltação [Ver Nicomachean Ethics, Livro V, cap. 8]. Mas o que ele entende por voluntário significa somente que o ato não foi casual, mas sim desempenhado por um agente em plena posse de sua força espiritual e física — “a fonte do movimento estava no agente” [Ibidem, Livro III, 1110 a 17] — e a distinção engloba apenas danos cometidos por ignorância ou infortúnio. Um ato no qual estou sob a ameaça de violência, mas a que não sou forçado fisicamente — como no caso em que dou meu dinheiro com minhas próprias mãos ao homem que me ameaça com uma arma —, seria qualificado como voluntário. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]
É de alguma importância notar que essa curiosa lacuna na filosofia grega — “o fato de que Platão e Aristóteles nunca tenham mencionado [volições] em suas frequentes e elaboradas discussões sobre a natureza da alma e das origens da conduta” [Gilbert Ryle, The Concept of Mind, Nova York, 1949, p. 65] e, portanto, de que não é possível “sustentar a sério que o problema da LIBERDADE tenha algum dia se tornado objeto de debate na filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles” [Henry Herbert Williams, artigo sobre a Vontade in Encyclopaedia Britannica, 11ª edição] — está em perfeita harmonia com o conceito de tempo vigente na Antiguidade, que identificava a temporalidade com os movimentos circulares dos corpos celestiais e com a não menos cíclica natureza da vida na Terra: a recorrente transformação de dia e noite, verão e inverno, a renovação constante de espécies animais através do nascimento e da morte. Quando Aristóteles sustenta que “vir-a-ser” necessariamente implica a preexistência de algo que é “em potência, mas não em ato” [De Generatione, Livro I, cap. 3, 317b16-18], ele está aplicando ao campo dos assuntos humanos o movimento cíclico que afeta tudo o que vive — em que de fato todo fim é um começo, e todo começo, um fim, de maneira que “o vir-a-ser continue, embora as coisas estejam constantemente sendo destruídas”. [Ibidem, 318a25-27 e 319a23-29; The Basic Works of Aristotle, Richard McKeon, Nova York, 1941, p. 483.] Isso a ponto de poder dizer que não só eventos, mas até mesmo opiniões (doxai), “ocorrendo entre os homens, repetem-se não só uma ou poucas vezes, mas com infinita frequência” [Meteorologica, 339b27]. Essa estranha visão dos assuntos humanos não era específica da especulação filosófica. A pretensão que Tucídides tinha de deixar para a posteridade um ktéma es aei — um paradigma eternamente útil para o modo de investigação do futuro através de um conhecimento claro do maior evento já conhecido na história — baseava-se implicitamente na mesma convicção de um movimento recorrente dos assuntos humanos. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]
A relutância em reconhecer a Vontade como uma faculdade do espírito distinta, autônoma, esmoreceu finalmente durante os longos séculos da filosofia cristã, que iremos examinar adiante em mais detalhe. Por maior que fosse a dívida desta filosofia para com a filosofia grega, em especial para com Aristóteles, ela estava fadada a abandonar o conceito cíclico de tempo da Antiguidade e sua noção de eterna recorrência. A história que começa com a expulsão de Adão do paraíso e termina com a morte e ressurreição de Cristo é uma história com acontecimentos únicos, que não se podem repetir: “Cristo um dia morreu por nossos pecados; e, levantando-se dos mortos, Ele não mais morreu.” [Ibidem, cap. 13] A sequência da história pressupõe um conceito retilíneo de tempo; tem um início definido, um ponto decisivo — o ano Um de nosso calendário [Nosso atual calendário, que toma o nascimento de Cristo como o ponto decisivo a partir do qual contamos o tempo para a frente e para trás, foi introduzido no final do século XVIII. Os manuais alegam que a reforma era necessária por razões acadêmicas, para facilitar a datação dos eventos da Antiguidade sem precisar fazer referência ao emaranhado de diferentes contagens de tempo. Hegel, ao que eu saiba o único filósofo a ponderar sobre a mudança abrupta e notável, viu nela um claro sinal de cronologia verdadeiramente cristã, uma vez que o nascimento de Cristo tornava-se então o ponto decisivo da história do mundo. Parece mais significativo que, no novo esquema, possamos contar o tempo para a frente e para trás, de modo que o passado estenda-se para um infinito passado e que o futuro, do mesmo modo, estenda-se para um futuro infinito. A dupla infinitude elimina todas as noções de começo e de tempo, estabelecendo a humanidade, por assim dizer, em uma realidade potencialmente sempiterna na Terra. Nem é preciso acrescentar que nada poderia ser mais estranho ao pensamento cristão do que uma imortalidade terrena da humanidade e de seu mundo.] — e um fim definido. E foi uma história da máxima importância para os cristãos, embora mal tenha tocado no curso de acontecimentos seculares: ainda se podia esperar que impérios surgissem e caíssem, como no passado. Além do mais, a vida após a morte do cristão era decidida enquanto ele ainda era um “peregrino na terra”; ele mesmo tinha um futuro além do fim determinado e necessário de sua vida — e foi em uma ligação estreita com a preparação para a vida futura que a Vontade e sua LIBERDADE necessária foram, em toda a sua complexidade, descobertas primeiramente por Paulo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]
Uma das dificuldades de nosso tópico, portanto, é que os problemas com os quais estamos lidando têm sua “origem histórica” na teologia, mais do que em uma tradição contínua de pensamento filosófico. [Ver o artigo sobre a Vontade na Encyclopedia Britannica, mencionado anteriormente na nota 16.] Pois quaisquer que sejam os méritos dos pressupostos pós-antigos sobre a localização da LIBERDADE humana no “eu-quero”, claro está que no esquema do pensamento pré-cristão a LIBERDADE localizava-se no “eu-posso”; LIBERDADE era um estado objetivo do corpo, não um dado da consciência ou do espírito. LIBERDADE significava poder fazer o que se quer, sem ser forçado pela ordem de um senhor, nem por uma necessidade física que exigisse o trabalho em troca de dinheiro com que suster o corpo, nem por algum defeito somático, tal como má saúde ou paralisia de um dos membros. Segundo a etimologia grega, isto é, segundo a autointerpretação grega, a raiz da palavra LIBERDADE, eleutheria, é eleuthein hopós eró, ir conforme eu queira; [Ver Dieter Nestle, Eleutheria. Teil I: Studien zum Wesen der Freiheit bei den Griechen und im Neuen Testament. Tübingen, 1967, pp. 6 e ss. Parece digno de nota que a etimologia moderna se incline a derivar a palavra eleutheria de uma raiz indo-germânica significando Volk ou Stamm, que tem como resultado apresentar aqueles que pertencem à mesma unidade étnica como sendo reconhecidos “livres” por seus companheiros de etnia. Este exemplo de erudição não soa desconfortavelmente próximo das noções de cultura alemã dos anos 1930, que vinham à tona, na época, pela primeira vez?] e não resta dúvida de que a LIBERDADE básica era entendida como LIBERDADE de movimento. Uma pessoa era livre se pudesse locomover-se como quisesse; o “eu-posso”, não o “eu-quero”, era o critério. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]
No contexto dessas considerações preliminares podemos nos permitir saltar as complexidades da Era Medieval e tentar uma rápida olhada no próximo ponto crítico importante em nossa história intelectual, o surgimento da Era Moderna. Aqui é de esperar que haja um interesse ainda mais forte do que no período medieval em um órgão espiritual próprio para o futuro, uma vez que o conceito principal e completamente novo da Era Moderna — a noção de Progresso como força que governa a história humana — colocou uma ênfase sem precedentes no futuro. Ainda assim, as especulações medievais sobre o assunto ainda exerciam grande influência pelo menos durante os séculos XVI e XVII. E era tão forte a suspeita em relação à faculdade da Vontade, tão aguda a relutância em conceder aos seres humanos, desprotegidos por qualquer Providência ou orientação divina, um poder absoluto sobre seus próprios destinos, oprimindo-os, assim, com uma responsabilidade formidável por coisas cuja própria existência dependeria só deles, tão grande, nas palavras de Kant, era o embaraço da “razão especulativa ao lidar com a questão da LIBERDADE da vontade […], [a saber], com um poder de começar espontaneamente uma série de coisas sucessivas ou estados” [Critique of Pure Reason, B476. Para esta e outras citações, ver a tradução de Norman Kemp Smith, Immanuel Kant’s Critique of Pure Reason. Nova York, 1963, em que a autora frequentemente se baseou.] — distinto da faculdade de escolha entre dois ou mais objetos dados (o liberum arbitrium, no sentido estrito) —, que foi somente na última fase da Era Moderna que a Vontade começou a substituir a Razão como a mais alta faculdade do espírito. Isso coincidiu com a última era de autêntico pensamento metafísico; na virada do século XIX, ainda no estilo da metafísica que começou com o equacionamento de Parmênides entre Ser e Pensar (to gar auto esti noein te kai einai), de repente, logo depois de Kant, passou a ser comum equacionar Querer e Ser. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 2]
Assim, Schiller declarou que “não há outro poder no homem a não ser a sua Vontade”, e que a Vontade, como “o fundamento da realidade, tem poder sobre a Razão e a Sensualidade”, cuja oposição — a oposição de duas necessidades, Verdade e Paixão — provê a origem da LIBERDADE [Uber die ästhetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen, 1795, 19ª carta]. Assim, Schopenhauer concluiu que a coisa-em-si kantiana, o Ser por trás das aparências, a “natureza mais interna” do mundo, seu “cerne”, do qual “o mundo objetivo […] [é] simplesmente o lado de fora”, é a Vontade [The World as Will and Idea (1818), traduzido por R. B. Haldane e J. Kemp. vol. I, pp. 39 e 129. Citado aqui da introdução de Konstantin Kolenda ao Essay on the freedom of the Will, de Arthur Schopenhauer, Library of Liberal Arts. Indianápolis, Nova York, 1960, p. viii.], enquanto Schelling, em um nível muito mais alto de especulação, declarou apoditicamente: “Na instância final e mais alta, não há outro Ser além da Vontade.” [Of Human Freedom (1809), traduzido por James Gutmann, Chicago, 1936, p. 24] Esse desenvolvimento, contudo, alcançou o ápice com a filosofia da história de Hegel (a qual, por esta razão, prefiro tratar em separado) e chegou a um final surpreendentemente rápido no fim do mesmo século. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 2]
A filosofia de Nietzsche, centrada na Vontade de Potência, parece, à primeira vista, constituir o clímax da ascendência da Vontade na reflexão teórica. Penso que essa interpretação de Nietzsche é um equívoco, em parte causado pelas circunstâncias bastante infelizes que cercaram as primeiras edições não críticas de suas publicações póstumas. Devemos a Nietzsche muitos insights decisivos a respeito da natureza da faculdade da Vontade e do ego volitivo, aos quais voltaremos mais tarde; em seus trabalhos, contudo, a maior parte das passagens sobre a Vontade dá testemunho de uma declarada hostilidade em relação à “teoria da ‘LIBERDADE da Vontade’, refutada centenas de vezes, [teoria que] deve sua permanência” precisamente ao fato de ser “refutável”: “Sempre aparece alguém que se sente forte o suficiente para refutá-la uma vez mais.” [Beyond Good and Evil (1885), traduzido por Marianne Cowan, Chicago, 1955, seção 18.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 2]
Para Jaspers, a LIBERDADE humana é assegurada por não termos a verdade; a verdade compele, e o homem pode ser livre somente porque não sabe a resposta para as perguntas finais: “Preciso querer porque não sei. O Ser que é inacessível ao conhecimento pode ser revelado somente à minha volição. Não-saber é a raiz de ter que querer.” [Philosophy (1932), traduzido por E. B. Ashton. Chicago. 1970, vol. 2, p. 167.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 2]
É certo que, em sua filosofia inicial, Heidegger não compartilhou da crença moderna no Progresso; e que sua proposição “querer-não-querer” nada tem a ver com a superação nietzschiana da Vontade através de sua restrição ao querer que tudo que aconteça continue acontecendo repetidas vezes. Mas o famoso Kehre de Heidegger, a grande reviravolta em sua filosofia da fase final é, no entanto, algo semelhante à conversão de Nietzsche; em primeiro lugar, foi uma espécie de conversão, e, em segundo, teve a consequência idêntica de levá-lo de volta aos primeiros pensadores gregos. É como se, no final das contas, os pensadores da Era Moderna escapassem para uma “terra do pensamento” (Kant) [Nota da editora: fomos incapazes de encontrar esta referência.] na qual as suas próprias preocupações especificamente modernas — com o futuro, com a Vontade como seu órgão espiritual para o futuro e com a LIBERDADE como um problema — não existissem; na qual, em outras palavras, não houvesse qualquer noção de uma faculdade do espírito que pudesse corresponder à LIBERDADE do mesmo modo que a faculdade do pensamento correspondeu à verdade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 2]
Hobbes e Espinosa admitem a existência da Vontade como uma faculdade sentida subjetivamente, negando somente sua LIBERDADE: “Reconheço essa LIBERDADE de que posso fazer se quiser; mas tomo como um discurso absurdo dizer que posso querer se quiser.” Pois a LIBERDADE significa, a rigor, a ausência de […] impedimentos externos para o movimento […]. Mas quando esse impedimento do movimento está na constituição da coisa em si, não costumamos dizer dela que quer a LIBERDADE, mas sim que quer o poder de mover-se; como no caso de uma pedra imóvel ou de um homem que está preso à cama por enfermidade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3]
Tais reflexões estão em perfeita harmonia com a posição grega a esse respeito. O que já não se alinha com a filosofia clássica é a conclusão de Hobbes de que: “LIBERDADE e necessidade são congruentes: como no caso da água, que tem não só a LIBERDADE, mas também uma necessidade de descer pelo canal. Assim como ocorre nas ações que os homens realizam voluntariamente: porque essas ações procedem de sua vontade, elas procedem da LIBERDADE; ainda assim, porque todo ato da vontade do homem […] procede de alguma causa e esta de uma outra causa, em uma cadeia contínua, […] [todo ato da vontade do homem] procede da necessidade. De modo que, para aquele que pudesse enxergar a conexão dessas causas, ficaria evidente a necessidade de todas as ações voluntárias do homem.” [Leviathan, editado por Michael Oakeshott, Oxford, 1948, cap. 21.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3]
Tanto em Hobbes quanto em Espinosa, a negação da Vontade está muito bem fundada em suas respectivas filosofias. Mas encontramos praticamente o mesmo argumento em Schopenhauer, cuja filosofia geral era quase o oposto, e para quem a consciência ou a subjetividade eram a própria essência do Ser: como Hobbes, ele não nega a Vontade, mas nega que a Vontade seja livre: há um sentimento ilusório de LIBERDADE quando tenho a experiência da volição; quando delibero sobre o que farei em seguida e, depois de rejeitar várias possibilidades, chego finalmente a alguma decisão determinada, isto é feito “com uma vontade tão livre […] quanto a da água se dissesse para si mesma: ‘posso fazer grandes ondas […]. Posso descer montanha abaixo […]. Posso cair espumando e jorrando […]. Posso erguer-me livremente como uma corrente de água no ar (… numa fonte) […], mas não estou fazendo nada disso agora, e, por vontade própria, permaneço água quieta e clara no lago espelhado’” [Essay on the Freedom of the Will, p. 43]. Esse tipo de argumento está melhor resumido por John Stuart Mill no trecho já citado: “Nossa consciência interna nos diz que temos um poder sobre o qual toda a experiência externa da raça humana nos diz que jamais utilizamos” (grifo nosso). [An Examination of Sir William Hamilton’s Philosophy (1867), cap. XXVI, citado de Free Will, editado por Sidney Morgenbesser e James Walsh, Englewood, Cliffs, 1962, p. 59.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3]
O fato perturbador de que, entre os filósofos, até mesmo os chamados voluntaristas — aqueles inteiramente convencidos, como Hobbes, do poder da vontade — pudessem resvalar tão facilmente para a dúvida quanto à própria existência da faculdade de querer pode ser de certa forma esclarecido examinando-se a segunda de nossas dificuldades sempre recorrentes. O que despertou a desconfiança dos filósofos foi precisamente a conexão inevitável com a LIBERDADE. Repetindo: a noção de uma vontade não-livre é uma contradição em termos: “Se devo necessariamente querer, por que então preciso falar da vontade? […] Nossa vontade não seria vontade se não estivesse em nosso poder. Por estar em nosso poder, é livre.” [Agostinho, On Free Choice of the Will (De Libero Arbitrio), Livro III, seção 3] Para citar Descartes, que se pode contar entre os voluntaristas: “Ninguém, levando em consideração somente a si mesmo, deixa de experimentar o fato de que querer e ter LIBERDADE são a mesma coisa.” [Em resposta à Objeção XII à Primeira Meditação: “Que a LIBERDADE da vontade foi pressuposta sem prova.” Ver The Philosophical Works of Descartes, trad. Elizabeth Haldane e G. T. Ross, Cambridge, 1970, vol. II, pp. 74-75.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3]
Como já disse mais de uma vez, a pedra de toque de um ato livre — desde a decisão de sair da cama de manhã ou de dar um passeio à tarde até as mais altas resoluções com as quais nos comprometemos para o futuro — é que sempre sabemos que poderíamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos. A Vontade, ao que parece, é caracterizada por uma LIBERDADE infinitamente maior que o pensamento, e — para repetir mais uma vez — este fato inquestionável jamais foi tido somente como uma bênção. Assim, ouvimos de Descartes: “Sou consciente de uma vontade tão vasta que não se pode submeter a limites […]. É somente a vontade livre […] que encontro tão grande em mim que não consigo conceber qualquer outra ideia como maior do que ela; é […] essa vontade que me faz saber que […] trago comigo a imagem e semelhança de Deus”, e acrescenta imediatamente que essa experiência “consiste unicamente no fato de que […] agimos de tal modo que não estamos minimamente conscientes de que qualquer força externa [nos] limite a capacidadede escolher o que vamos ou o que não vamos fazer”. [Meditação IV, in ibidem, 1972, vol. I, pp. 174-175. Tradução da autora.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3]
Falando assim, Descartes deixa uma porta bem aberta, por um lado, para as dúvidas de seus sucessores, e, por outro, para as tentativas contemporâneas “de fazer com que os desígnios [de Deus] se harmonizem com a LIBERDADE de nossa vontade” [Principles of Philosophy, in ibidem, pt. 1, prin. XL, p. 235]. O próprio Descartes, pouco disposto a “envolver-se nas grandes dificuldades [que resultariam] se nos comprometêssemos a conciliar previdência e onipotência de Deus com LIBERDADE humana”, apela explicitamente para as benéficas limitações de “nosso pensamento, [o qual] é finito” e, portanto, sujeito a certas regras, como, por exemplo, o axioma da não-contradição e as convincentes “necessidades” da verdade autoevidente. [Ibidem, prin. XLI, p. 235] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3]
E é precisamente a LIBERDADE “sem lei” de que a vontade parece gozar que fez com que até mesmo Kant falasse ocasionalmente de LIBERDADE como mais que “uma simples entidade do pensamento, um fantasma do cérebro” [Critique of Pure Reason, B751]. Outros, como Schopenhauer, acharam mais fácil conciliar LIBERDADE e Necessidade, escapando assim do dilema inerente ao simples fato de que o homem é ao mesmo tempo um ser que pensa e que quer — uma coincidência carregada das mais sérias consequências —, declarando simplesmente: “O homem faz o tempo todo somente o que quer e ainda assim o faz necessariamente. Mas isso é porque ele […]é o que quer […]. Subjetivamente […] todos sentem que fazem sempre apenas aquilo que querem. Mas isso significaria simplesmente que sua atividade é uma pura expressão de seu próprio ser. Todo ser natural, mesmo o mais inferior, sentiria o mesmo, se pudesse sentir.” [Op. cit., pp. 98-99] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3]
É óbvio que a progressiva secularização, ou melhor, descristianização do mundo moderno, ligada, como estava, a uma ênfase inteiramente nova no futuro, no progresso e, portanto, nas coisas que não são nem necessárias nem eternas, acabaria por expor os pensadores à contingência de todas as coisas humanas de uma maneira mais radical e impiedosa do que nunca. O que, desde o fim da Antiguidade, fora o “problema da LIBERDADE” agora estava incorporado, por assim dizer, ao acaso da história — “cheia de som e de fúria”, “uma história narrada por um idiota […] significando nada” — a que correspondia o caráter fortuito das decisões pessoais que se originam em uma vontade livre que não foi guiada nem pela razão nem pelo desejo. Esse velho problema, reaparecendo na roupagem de uma nova era, a Era do Progresso — que só agora, em nosso próprio tempo, está alcançando o fim (à medida que o Progresso aproxima-se rapidamente dos limites dados pela condição humana na Terra) —, encontrou sua pseudossolução na filosofia da história do século XIX, cujo maior representante produziu uma teoria engenhosa de uma Razão e de um Significado escondidos no curso dos acontecimentos do mundo, guiando as vontades dos homens em toda sua contingência na direção de um objetivo final que eles jamais pretenderam alcançar. Uma vez que se complete esta história — e Hegel parece ter acreditado que o início do fim da história era contemporâneo à Revolução Francesa —, o olhar retrospectivo do filósofo, pelo puro esforço do ego pensante, pode internalizar e relembrar (ex-innern) a falta de sentido e a necessidade do movimento que se desenrola, de modo que possa novamente lidar com o que é e não pode não-ser. Afinal, em outras palavras, o processo do pensamento mais uma vez coincide com o autêntico Ser: o pensamento depurou a realidade daquilo que é meramente acidental. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3]
Se reconsideramos as objeções propostas pelos filósofos contra a Vontade — contra a existência da faculdade, contra a noção de LIBERDADE humana nela implícita e contra a contingência que adere a uma vontade livre, isto é, a um ato que por definição pode-se deixar de realizar —, torna-se óbvio que elas se aplicam muito menos ao que a tradição conhece como liberum arbitrium, a LIBERDADE de escolha entre dois ou mais objetos desejados ou entre dois modos de conduta, do que à Vontade como um órgão para o futuro, idêntica ao poder de começar algo novo. O liberum arbitrium decide entre coisas igualmente possíveis e dadas a nós, por assim dizer, em statu nascendi, como simples potencialidades; enquanto o poder de começar algo realmente novo não poderia propriamente ser precedido por qualquer potencialidade, que figuraria, nesse caso, como uma das causas do ato realizado. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]
Visto desse ângulo, que é o ângulo do ego volitivo, não é a LIBERDADE, mas a necessidade que parece ser uma ilusão da consciência. O insight de Bergson me parece ao mesmo tempo elementar e altamente significativo; mas não será também significativo o fato de essa observação, apesar de sua plausibilidade simples, nunca ter tido qualquer importância nas intermináveis discussões sobre necessidade versus LIBERDADE? Ao que eu saiba, o ponto foi levantado somente uma vez antes de Bergson. Trata-se de Duns Scotus, o solitário defensor da primazia da Vontade sobre o Intelecto e — mais que isso — do fator contingência em tudo o que é. Se há algo como uma filosofia cristã, então Duns Scotus teria de ser reconhecido não só como “o mais importante pensador da Idade Média cristã” [Assim escreveu Wilhelm Windelband em seu famoso History of Philosophy (1982), Nova York, 1960, p. 314. Ele também chama Duns Scotus de “o maior dos escolásticos” (p. 425)], mas talvez também como o único que não buscou um meio-termo entre a fé cristã e a filosofia grega, e que ousou, portanto, tornar um símbolo dos “verdadeiros cristãos [dizer] que Deus age contingentemente”. “Aqueles que negam que algum ser é contingente”, disse Scotus, “deveriam ser expostos a tormentos, até reconhecer que é possível para eles não ser atormentados.” [John Duns Scotus, Philosophical Writings: A Selection. Trad. Allan Wolter, Library of Liberal Arts, Indianápolis, Nova York, 1962, pp. 84 e 10] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]
Se a contingência — que, para a filosofia clássica, era o máximo da falta de sentido — irrompeu como realidade nos primeiros séculos da Era Cristã por causa da doutrina bíblica — que “opunha a contingência à necessidade, a particularidade à universalidade, a vontade ao intelecto”, assegurando assim “um lugar para ‘o contingente’ dentro da filosofia contra a tendenciosidade original desta última” [Hans Jonas, op. cit., p. 29] —, ou se as abaladoras experiências políticas dos primeiros séculos daquela Era deixaram à mostra os truísmos e as plausibilidades do pensamento antigo, essa é uma questão que pode ficar em aberto. Não restam dúvidas, porém, de que a inclinação original contra a contingência, a particularidade e a Vontade — e a predominância correspondente da necessidade, da universalidade e do Intelecto — sobreviveu profundamente ao desafio até a Era Moderna. A filosofia religiosa e medieval, bem como a secular e moderna, encontraram diversas maneiras de assimilar a Vontade, o órgão da LIBERDADE e do futuro, à ordem mais antiga das coisas. Pois, como quer que enxerguemos esses assuntos, factualmente Bergson está bastante certo quando diz: A maioria dos filósofos […] é incapaz […] de conceber a novidade radical e a imprevisibilidade […]. Mesmo os poucos que acreditaram no liberum arbitrium, reduziram-no a uma simples “escolha” entre duas ou mais opções, como se estas opções fossem “possibilidades” […] e a Vontade ficou restrita a realizar uma delas. Logo, eles ainda aceitavam […] que tudo é dado. Parecem nunca ter tido a menor noção de uma atividade inteiramente nova […]. E esse tipo de atividade é, afinal, a ação livre. [Op. cit., p. 10] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]
Até mesmo hoje em dia, quando ouvimos uma discussão entre dois filósofos em que um deles defende o determinismo, e o outro, a LIBERDADE, “será sempre o determinista que parecerá estar com a razão […]. [Os ouvintes] sempre concordarão que ele é simples, claro e verdadeiro”. [Ibidem, p. 33] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]
Do ponto de vista teórico, o problema sempre foi que a vontade livre — quer concebida como LIBERDADE de escolha, quer como LIBERDADE de começar algo novo — parece ser absolutamente incompatível não só com a divina Providência, mas também com a lei da causalidade; a LIBERDADE da Vontade pode ser pressuposta pela força, ou melhor, pela fraqueza da experiência interior, mas não pode ser provada. A não plausibilidade do pressuposto ou Postulado da LIBERDADE deve-se às nossas experiências externas no mundo das aparências, onde, na verdade, a despeito do que disse Kant, raramente começamos uma nova série. Mesmo Bergson, cuja filosofia inteira baseia-se na convicção de que “cada um de nós tem o conhecimento imediato […] de sua espontaneidade livre” [Time and Free Will: An essay on the immediate data of consciousness (1889), trad. F. L. Pogson, Harper Torchbooks, Nova York, 1960, p. 142], admite que, “embora sejamos livres quando queremos nos voltar para nós mesmos, raramente queremos fazer isto”. E: “Os atos livres são excepcionais.” [Ibidem, pp. 240 e 167] (Os hábitos tomam conta da maioria dos nossos atos, do mesmo modo como os preconceitos são responsáveis pela maioria de nossos juízos cotidianos.) [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]
O primeiro que se recusou consciente e deliberadamente a tratar da não plausibilidade da vontade livre foi Descartes: “Seria absurdo duvidar daquilo que experimentamos e percebemos interiormente como existente em nós, só porque não compreendemos uma coisa que sabemos ser, pela própria natureza, incompreensível.” [Principles of Philosophy, prin. XLI, in The Philosophical Works of Descartes, op. cit., p. 235] Pois “essas coisas são tais que cada um deve experimentá-las em si mesmo, em vez de persuadir-se delas pelo raciocínio; mas vós […] pareceis não cuidar e não notar a maneira como o espírito age no interior de si mesmo. Não sejais, então, livres, se essa LIBERDADE não vos apraz” (grifos nossos) [Resposta a Objeções à Meditação V, op. cit., p. 225]. Pode ser tentador, aqui, retorquir que o Cogito cartesiano certamente nada mais é do que “uma ação do espírito no interior de si mesmo”; mas jamais ocorreu a Descartes ou àqueles que levantaram objeções à sua filosofia falar de pensamento ou de cogitare como algo que é pressuposto sem uma prova, como um mero dado da consciência. O que então concede ao cogito me cogitare ascendência sobre o “volo me velle” — mesmo em Descartes, que era um “voluntarista’’? Será que “aprazia” menos aos pensadores profissionais, ao basearem suas especulações na experiência do ego pensante, a LIBERDADE do que a necessidade? Essa suspeita parece inevitável quando consideramos a estranha reunião de teorias conhecidas, teorias que tentam negar completamente a experiência da LIBERDADE “dentro de nós”, ou enfraquecer a LIBERDADE, conciliando-a com a necessidade através de especulações dialéticas que são inteiramente “especulativas”, já que não podem apelar para qualquer experiência. A suspeita é reforçada quando se considera quão estreita é a ligação entre todas as teorias da vontade livre e o problema do mal. Desse modo, Agostinho inicia seu tratado De libero arbitrio voluntatis (O livre-arbítrio da vontade) com a seguinte questão: “Diga-me, por favor, se não é Deus o autor do mal?” Trata-se de uma questão primeiramente proposta em toda a sua complexidade por Paulo (na Epístola aos romanos) e em seguida generalizada para “qual é a causa do mal?”, com muitas variações que envolvem a existência tanto do dano físico causado pela natureza destrutiva quanto da maldade deliberada produzida pelo homem. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]
Todo esse problema atormentou os filósofos; e suas tentativas de resolvê-lo nunca tiveram muito sucesso; via de regra, seus argumentos fogem ao assunto em sua gritante simplicidade. Ou nega-se que o mal é verdadeiramente real (ele existe apenas como modalidade deficiente do bem), ou se descarta o mal, com a explicação de que é uma espécie de ilusão de ótica (o problema está em nosso intelecto limitado, que falha em encaixar um particular de forma adequada em um todo que o justificaria) — tudo isso se assumirmos sem discussão a hipótese de que “somente o todo é na verdade real” (“nur das Ganze hat eigentliche Wirklichkeit”), nas palavras de Hegel. O mal, não sendo, nisso, diferente da LIBERDADE, parece pertencer àquelas “coisas sobre as quais até os homens mais cultos e inventivos não podem saber quase nada” [Duns Scotus, op. cit., p. 171]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]
À medida que o eu se identifica com o ego volitivo — e veremos que esta identificação é proposta por alguns dos voluntaristas que derivam o principium individuationis da faculdade da vontade —, ele existe em uma “transformação contínua de [seu próprio] futuro em um Agora; e para de ser no dia em que não há mais futuro, quando não há mais nada por vir [le jour où il n’y a plus d’avenir, où rien n’est plus à venir], quando tudo chegou e tudo está ‘realizado’” [Koyré, op. cit., p. 177]. Vista da perspectiva da Vontade, a velhice consiste no encolhimento da dimensão de futuro; e a morte do homem significa menos o seu desaparecimento do mundo das aparências do que sua perda final de um futuro. Essa perda, no entanto, coincide com a realização máxima da vida do indivíduo, que, em seu fim, tendo escapado à mudança incessante do tempo e à incerteza de seu próprio futuro, se abre para a “tranquilidade do passado”, e, deste modo, para o exame, para a reflexão e para o olhar retrospectivo do ego pensante em sua busca de significado. Assim, do ponto de vista do ego pensante, a velhice, nas palavras de Heidegger, é o tempo da meditação, ou, nas palavras de Sófocles, é o tempo de “paz e LIBERDADE” [Platão, Republic, 329b-c] — libertação do estado de sujeição não só às paixões do corpo como também à paixão devoradora que o espírito impõe à alma, à paixão da vontade chamada “ambição”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
Tal reconciliação está no centro de todo o sistema hegeliano. Se fosse possível entender a História do Mundo — e não somente as histórias de épocas e nações particulares — como uma única sucessão de acontecimentos cujo resultado final seria o momento em que “o Reino Espiritual […] se manifestasse externamente”, fosse “corporificado” na “vida secular” [The Philosophy of History, p. 442], então o curso da história não seria mais acidental, e o campo dos assuntos humanos não estaria mais destituído de significado. A Revolução Francesa provara que a “verdade em sua forma viva podia mostrar-se nos assuntos do mundo” [Ibidem, p. 446]. Então, se poderia considerar cada momento na sequência histórica do mundo um “era para ser”, e atribuir à filosofia a tarefa de “compreender este plano” desde o seu início, de sua “fonte oculta” ou “princípio nascente […] no útero do tempo”, até sua “existência fenomênica presente” [Ibidem, pp. 30 e 36]. Hegel identifica esse “Reino Espiritual” com o “Reino da Vontade” [Ibidem, p. 442] porque as vontades dos homens são necessárias para trazer à tona o campo espiritual; e por esta razão afirma que “a LIBERDADE da Vontade per se [isto é, a LIBERDADE que a Vontade necessariamente quer] […] é ela mesma absoluta […], é […] aquilo por meio de que o Homem se torna Homem, e é, portanto, o princípio fundamental do Espírito” [Ibidem, p. 443. Tradução da autora]. Na verdade, a única segurança — se é que se trata de uma segurança — de que o objetivo final do desenvolvimento do Espírito do Mundo nos assuntos mundanos deve ser a LIBERDADE está implícita na LIBERDADE que está implícita na Vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
A investigação da história de uma faculdade pode facilmente ser confundida com um esforço para acompanhar a história de uma ideia — como se nós, aqui, por exemplo, estivéssemos interessados na história da LIBERDADE, ou confundíssemos a Vontade com uma mera “ideia”, que poderia, então, ser tomada como um “conceito artificial” (Ryle), inventado para resolver problemas artificiais [Concept of Mind, pp. 62 e ss]. As ideias são coisas-pensamento, artefatos do espírito que pressupõem a identidade de um artífice; e supor que exista uma história das faculdades do espírito distintas dos produtos do espírito parece o mesmo que supor que o corpo humano, que é um corpo que fabrica e usa ferramentas — sendo a ferramenta primordial a mão humana —, está tão sujeito a mudanças produzidas pela invenção de novas ferramentas e utensílios quanto o ambiente que nossas mãos não param de remodelar. Sabemos que não é esse o caso. Poderia ser diferente com nossas faculdades do espírito? Poderia o espírito adquirir novas faculdades no curso da história? [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 7]
É tentadora a conclusão de que a proairesis, a faculdade da escolha, é a precursora da Vontade. Ela abre um primeiro espaço, pequeno e bastante restrito, para o espírito humano, que, sem ela, estava entregue a duas forças poderosas: por um lado, a força da autoevidência, em relação à qual não somos livres para concordar ou discordar, e, por outro, a força das paixões e dos apetites, na qual é como se a natureza nos dominasse, a menos que a razão nos “obrigasse” a dela nos afastar. Mas o espaço deixado para a LIBERDADE é bastante pequeno. Deliberamos somente sobre os meios para alcançar um fim que tomamos como certo, que não podemos escolher. Ninguém escolhe felicidade ou saúde como seu objetivo, embora possamos pensar sobre essas duas coisas; os fins são inerentes à natureza humana e são os mesmos para todos [Ibidem, 1226b10]. Quanto aos meios, “ora temos de descobrir quais são, ora como devem ser utilizados, ora por meio de quem eles podem ser adquiridos” [Ibidem, 1226b11-12. Cf. Nicomachean Ethics, 1112b11-18]. Consequentemente, os meios, e não somente os fins, são dados; e nossa livre escolha consiste apenas em uma seleção “racional” entre eles; proairesis é o árbitro entre as diversas possibilidades. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 7]
O liberum arbitrium não é nem espontâneo nem autônomo; encontramos os últimos vestígios de um árbitro entre razão e desejo ainda em Kant, cuja “boa vontade” acaba por ver-se em um estranho impasse: ou é “boa sem restrições”, caso em que goza de completa autonomia mas não tem escolha, ou recebe sua lei — o imperativo categórico — da “razão prática”, que diz à Vontade o que fazer e acrescenta: não faça de si mesmo uma exceção, obedeça ao axioma da não-contradição, que, desde Sócrates, governa o diálogo sem som do pensamento. A Vontade em Kant é na verdade “razão prática” [Para uma excelente discussão sobre Vontade e LIBERDADE em Kant, ver Lewis White Beck, A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason, Chicago, Londres, 1960, cap. XI.], muito no sentido do nous praktikos de Aristóteles; ela retira seu poder de imposição da coerção que a verdade autoevidente ou o raciocínio lógico exerce sobre o espírito. Essa é a razão pela qual Kant afirmou inúmeras vezes que todo “tu deves” [“Tu deves” traduz Thou-Shalt; a autora faz referência às palavras inglesas que introduzem os Dez Mandamentos. (N. T.)] que não vem de fora, mas surge no próprio espírito, implica um “tu podes”. O que está em jogo é claramente a convicção de que tudo o que depende de nós e diz respeito somente a nós mesmos está em nosso poder; é essa convicção que Aristóteles e Kant têm basicamente em comum, embora suas avaliações sobre a importância do campo dos assuntos humanos sejam bem diferentes. A LIBERDADE torna-se um problema, e a Vontade como faculdade autônoma é descoberta somente quando os homens começam a duvidar da coincidência entre o “tu-deves” e o “eu-posso”, quando surge a questão: As coisas que só a mim dizem respeito estão em meu poder? [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 7]
É verdade que Paulo não discute o tema em termos de duas vontades, mas em termos de duas leis — a lei do espírito, que o deixa desfrutar a lei de Deus “em seu eu mais íntimo”, e a lei de seus “membros”, que lhe diz para fazer o que, no seu eu mais íntimo, ele odeia. A própria lei é entendida como a voz de um senhor exigindo obediência; o “tu-deves” da lei exige e espera um ato voluntário de submissão, um “eu-quero” de assentimento. A Velha Lei dizia: não farás. A Nova Lei diz: não quererás. O que levou à descoberta da Vontade foi a experiência de um imperativo que exigia submissão voluntária. E era inerente a essa experiência o fato admirável de uma LIBERDADE que nenhum dos povos antigos — grego, romano ou hebreu — conhecera, ou seja, o fato de que há uma faculdade no homem em virtude da qual ele pode, independentemente de necessidade e coação, dizer “Sim” ou “Não”, concordar ou discordar daquilo que é dado factualmente, inclusive seu próprio eu e sua existência; e também que uma tal faculdade pode vir a determinar o que ele irá fazer. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]
Falei anteriormente da natureza reflexiva das atividades do espírito: o cogito me cogitare, o volo me velle (mesmo o juízo, a faculdade menos reflexiva das três, repercute, atua sobre si mesma). Veremos depois que essa reflexividade fica mais forte do que nunca no ego volitivo; a questão é que todo “eu-quero” surge de uma inclinação natural para a LIBERDADE, isto é, de uma reação natural dos homens livres quando subjugados. A vontade sempre se dirige a si mesma; quando a lei diz: “tu deves”, a vontade responde “tu deves querer o que diz a ordem” — e não a executar inadvertidamente. É então que tem início a disputa interna, pois a contravontade, despertada, tem semelhante poder de ordem. Logo, a razão pela qual “os que observam a Lei estão sob o peso da maldição” (Gálatas 3:10) não é somente o “eu-quero-e-não-posso”, mas é também o fato de que o “quero” é inevitavelmente rebatido por um “não-quero”, de modo que até mesmo quando a lei é obedecida e cumprida ainda reste uma resistência interna. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]
Como a maioria dos estoicos, Epiteto reconhecia que a vulnerabilidade do corpo impõe certos limites a essa LIBERDADE interior. Incapazes de negar que não são as simples aspirações ou os desejos que nos impedem de ser livres, mas “os grilhões a nós presos na forma de um corpo” [Ibidem, livro I, cap. ix], eles tinham que provar, portanto, que os grilhões não eram indestrutíveis. Uma resposta para a pergunta “O que nos impede de cometer o suicídio?” passa a ser um tópico necessário nos escritos dessa escola. Epiteto, de qualquer forma, parece claramente ter-se dado conta de que esse tipo de LIBERDADE interna ilimitada pressupõe, na verdade, que “é preciso lembrar e fixar a ideia de que a porta está aberta” [Ibidem, livro I, cap. xxv. Grifo nosso]. Para uma filosofia de total alienação do mundo, há muita verdade na frase extraordinária com que Camus começou seu primeiro livro: “Il n’y a qu’un problème philosophique vraiment sérieux: c’est le suicide.” [Le Mythe de Sisyphe, Paris, 1942] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]
A despeito disso, há, nessa empreitada lamentável, somente uma descoberta que nenhum argumento pode eliminar e que no mínimo explica por que o sentimento de onipotência, bem como o de LIBERDADE humana, puderam se originar das experiências do ego volitivo. Um assunto que abordamos marginalmente na discussão sobre Paulo, a saber, o de que toda obediência presume o poder de desobedecer, está bem no centro das considerações de Epiteto. O cerne da questão aí é o poder da Vontade para assentir ou dissentir, dizer Sim ou Não, pelo menos no que me diz respeito. Eis por que as coisas que, em sua existência pura — isto é, “impressões” de coisas exteriores —, dependem somente de mim estão também em meu poder; não só posso ter vontade de mudar o mundo (embora essa proposta seja de interesse duvidável para alguém totalmente alienado do mundo em que se encontra), como posso também negar realidade a tudo e qualquer coisa através de um “deixo-de-querer”. Esse poder deve ter tido algo de muito terrível, de realmente esmagador para o espírito humano, pois nunca houve um filósofo ou teólogo que, depois de ter prestado a devida atenção ao “Não” implícito em cada “Sim”, não tenha imediatamente exigido um consentimento enfático, aconselhando o homem, como fez Sêneca em frase citada com grande aprovação pelo Mestre Eckhart, a “aceitar todas as ocorrências como se ele mesmo as tivesse desejado e tivesse rogado por elas”. Certamente se enxergamos nesse acordo universal somente o último e mais profundo ressentimento do ego volitivo em relação à sua impotência existencial no mundo como ele é factualmente, veremos aqui também apenas mais um argumento para o caráter ilusório da faculdade, uma confirmação final de que ela é “um conceito artificial”. Ao homem, nesse caso, teria sido dada uma faculdade realmente “monstruosa” (Agostinho), compelida por sua natureza, a exigir um poder que é capaz de exercer somente na região dominada pela ilusão da mera fantasia — na interioridade de um espírito que conseguiu separar-se de toda aparência exterior em sua busca incansável pela tranquilidade absoluta. E como recompensa final e irônica para tanto esforço, terá obtido um relacionamento desconfortavelmente íntimo com o “depósito das dores e o tesouro dos males”, nas palavras de Demócrito, ou com o “abismo”, que, segundo Agostinho, se esconde “no coração bom e no coração mau”. [Frag 149. Enarrationes in Psalmos, Patrologiae Latina, J.-P. Migne, Paris, 185466, vol. 37, CXXXIV, 16] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]
Essa prova da LIBERDADE da Vontade se funda exclusivamente em uma força interior de afirmação ou de negação que nada tem a ver com qualquer posse ou potestas real — a faculdade necessária para executar os comandos da Vontade. A prova retira sua plausibilidade de uma comparação da vontade com a razão, por um lado, e com os desejos, por outro; e não é possível, para nenhum dos dois, dizer-se livre. (Vimos que Aristóteles introduziu sua proairesis para evitar o dilema de dizer que o “homem bom” obriga-se a desviar-se de seus apetites, ou que o “homem vil” obriga-se a desviar-se de sua razão.) Qualquer coisa que a razão me diga é forçosa no que diz respeito à razão. Posso ser capaz de dizer “Não” para uma verdade a mim revelada, mas não posso de modo algum fazê-lo em termos racionais. Os apetites surgem automaticamente em meu corpo, e meus desejos são despertados por objetos que estão fora de mim; posso dizer “Não” a eles, aconselhado pela razão ou pela lei de Deus, mas a razão em si não me leva à resistência. (Duns Scotus, muito influenciado por Agostinho, elabora mais tarde esse argumento. Sem dúvida o homem carnal, no sentido em que Paulo o entendia, não pode ser livre; mas o homem espiritual tampouco é livre. Qualquer poder que o intelecto possa ter sobre o espírito será um poder de forçar; o que o intelecto jamais pode provar ao espírito é que este não deve simplesmente sujeitar-se a ele, mas deve também querer fazê-lo.) [Ver Étienne Gilson, Jean Duns Scot: introduction à ses positions fondamentales, Paris, 1952, p. 657.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Na refutação de Agostinho ao estoicismo, podemos ver uma transformação e uma solidificação semelhantes, ocasionadas por meio de pensamento conceitual. O verdadeiramente escandaloso na doutrina não era que o homem pudesse querer dizer “Não” à realidade, mas que esse “Não” fosse insuficiente; diziam ao homem que para ele encontrar a tranquilidade, deveria treinar sua vontade a dizer “Sim” e a “deixar sua vontade ser a de que os eventos aconteçam como acontecem”. Agostinho entende que esta submissão voluntária pressupõe uma limitação rigorosa da própria capacidade da vontade. Embora, em sua visão, a todo velle corresponda um nolle, a LIBERDADE da faculdade é limitada porque nenhum ser criado pode querer contra a criação, pois isso seria — mesmo no caso do suicídio — um querer dirigido não só contra uma contravontade, mas também contra o próprio sujeito que quer e que não-quer. A vontade, a faculdade de um ser vivo, não pode dizer: “preferiria não ser” ou “preferiria o nada per se”. Quem disser “preferiria não existir a ser infeliz” não merece crédito, já que, enquanto está dizendo isso, ainda está vivo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Eis aqui um primeiro indício de certas consequências que muito mais tarde Duns Scotus viria a extrair do voluntarismo agostiniano: a redenção da vontade não pode ser espiritual nem tampouco advém de intervenção divina; a redenção vem do ato que — com frequência na forma de um “coup d’état”, na expressão feliz de Bergson — interrompe o conflito entre o velle e o nolle. E o preço da redenção é, como veremos, a LIBERDADE. Assim como expressou Duns Scotus (seguindo o resumo de um comentador moderno), “é possível para mim estar escrevendo neste momento, assim como me é possível não estar a escrever”. Ainda sou completamente livre e pago por essa LIBERDADE pelo fato curioso de que a Vontade sempre quer e não-quer ao mesmo tempo: a atividade do espírito, no caso da vontade, não exclui o seu oposto. “Ainda assim, meu ato de escrever exclui o seu oposto. Por um ato de vontade, posso me determinar a escrever, e, por outro, posso decidir não escrever, mas minha ação em relação às duas coisas não pode ser simultânea.” [Efrem Bettoni, Duns Scotus: The Basic Principles of his Philosophy, trad. Bernardine Bonansea, Washington, 1961, p. 158. Grifo nosso.] Em outras palavras, a Vontade é redimida, cessando de querer e começando a agir, e a interrupção não pode se originar de um ato de querer-não-querer, pois isso já seria uma nova volição. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Até aqui deixamos de lado todas as questões estritamente teológicas e, junto com elas, o maior problema que a vontade livre apresenta para toda a filosofia estritamente cristã. Nos primeiros séculos depois de Cristo, a existência do Universo podia ser explicada como emanação, o fluxo de forças divinas e antidivinas, sem necessidade da pessoa de um Deus por trás de tudo. Ou, seguindo a tradição hebraica, podia ser explicada como criação, tendo a figura de um Deus como seu autor. O autor divino criou o mundo por Sua própria vontade livre, e criou-o do nada. E criou o homem à Sua imagem, isto é, dotou-o também de uma vontade livre. A partir daí, as teorias da emanação corresponderam às teorias fatalistas ou deterministas da necessidade; as teorias da criação tinham que lidar teologicamente com a Vontade Livre de Deus, que foi Quem decidiu criar o mundo, e conciliar esta LIBERDADE com a LIBERDADE da criatura, o homem. Porque Deus é onipotente (Ele pode sobrepor-se à vontade do homem) e tem conhecimento prévio, a LIBERDADE humana parece ficar duplamente neutralizada. O argumento padrão, então, é o seguinte: Deus apenas prevê; Ele não compele. Encontra-se o argumento também em Agostinho, mas ele propõe, no mínimo, uma linha de pensamento muito diferente. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Nesse aspecto, ele foi a imagem de um Deus-Criador; mas uma vez que era temporal, e não eterno, a capacidade foi completamente dirigida para o futuro. (Sempre que Agostinho fala dos três tempos verbais, enfatiza a primazia do futuro — de modo semelhante a Hegel, como vimos. O primado da Vontade entre as faculdades do espírito exige a primazia do futuro nas especulações sobre o tempo.) Todo homem, sendo criado no singular, é um novo começo em virtude de ter nascido; se Agostinho tivesse levado essas especulações às suas consequências, teria definido os homens não à maneira dos gregos, como mortais, mas como “natais”, e teria definido a LIBERDADE da Vontade não como o liberum arbitrium, a escolha livre entre querer e não querer, mas como a LIBERDADE sobre a qual fala Kant na Crítica da razão pura. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
A “faculdade [do homem] de começar espontaneamente uma série no tempo”, a qual, “ao ocorrer no mundo, pode ter um primeiro começo apenas relativo”, e que, ainda assim, “é um começo absolutamente primeiro, não no tempo, mas na causalidade”, deve ser novamente invocada. “Se, por exemplo, levanto-me agora da cadeira em completa LIBERDADE […] uma nova série, com todas as suas consequências naturais in infinitum, tem seu começo absoluto neste acontecimento.” [B478] A distinção entre um começo “absoluto” e um “relativo” aponta para o mesmo fenômeno que enxergamos na distinção que Agostinho fez entre o principium do Céu e da Terra e o initium do Homem. E se Kant tivesse conhecido a filosofia da natalidade de Agostinho provavelmente teria concordado que a LIBERDADE da espontaneidade relativamente absoluta não é mais embaraçosa para a razão humana do que o fato de os homens nascerem — continuamente recém-chegados a um mundo que os precede no tempo. A LIBERDADE de espontaneidade é parte inseparável da condição humana. Seu órgão espiritual é a Vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Com a Vontade é diferente. A Vontade pode achar difícil não aceitar o que a razão dita, mas a coisa não é impossível, assim como não é impossível para a Vontade resistir aos apetites naturais fortes: “Difficile est, voluntatem non inclinari ad id, quod est dictatum a ratione practica ultimatim, non tamen est, impossibile, sicut voluntas naturaliter inclinatur, sibi dismissa, ad condelectandum appetitui sensitivo, non tamem impossibile, ut frequenter resistat, ut patet in virtuosis et sanctis.” [Citado de Vogt, op. cit., p. 34] É a possibilidade de resistência às necessidade do desejo, por um lado, e aos ditames do intelecto e da razão, por outro, que constituem a LIBERDADE humana. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
É esse o teste pelo qual a LIBERDADE é demonstrada, e nem o desejo nem o intelecto podem equiparar-se a ela: um objeto apresentado ao desejo pode apenas atrair ou repelir, e uma questão apresentada ao intelecto pode apenas ser negada ou afirmada. Mas a qualidade básica de nossa vontade é que podemos querer ou não-querer o objeto apresentado pela razão ou pelo desejo: “In potestate voluntatis nostrae est habere nolle et velle, quae sunt contraria, respectu unius obiecti” (“Está em poder de nossa vontade querer e não-querer, que são contrários, com relação ao mesmo objeto”) [Citado de Kahl, op. cit., pp. 86-87]. Ao dizer isso, Scotus não está negando, é claro, que duas volições sucessivas são necessárias para querer e não querer o mesmo objeto; mas sustenta, sim, que o ego volitivo, ao realizar uma delas, sabe ser livre para realizar também o seu contrário: “A característica essencial de nossos atos volitivos é […] o poder de escolher entre coisas opostas e de revogar a escolha, uma vez que tenha sido feita (grifos nossos) [Bettoni, Duns Scotus, p. 76]. É precisamente desta LIBERDADE, que se manifesta apenas como atividade espiritual — o poder de revogar desaparece uma vez que se execute a volição —, que falamos anteriormente em termos de uma fragmentação da vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Além de ser aberta a contrários, a Vontade pode suspender-se, e enquanto tal suspensão só pode ser o resultado de outra volição — em contraste com o querer-não-querer nietzschiano e heideggeriano, que discutiremos mais adiante —, esta segunda volição, em que a “indiferença” é escolhida diretamente, é um testemunho importante da LIBERDADE humana, da habilidade que o espírito tem para evitar toda determinação coercitiva que venha de fora. É por sua LIBERDADE que o homem, embora parte inseparável do Ser criado, pode louvar a criação de Deus, pois se tal louvação viesse da razão não seria mais do que uma reação natural causada pela harmonia dada que temos com todas as outras partes do Universo. Mas ele pode, do mesmo modo, abster-se de tal louvação e até mesmo “odiar Deus e encontrar satisfação em semelhante ódio”, ou pode, pelo menos, recusar-se a amá-Lo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
A autonomia da Vontade — “nada além da vontade é a causa total da volição” (“nihil aliud a voluntate est causa totalis volitionis in voluntate”) [Citado de Vogt, op. cit., p. 31] — limita de forma decisiva o poder da razão, cujo ditame não é absoluto; mas não limita o poder da natureza, seja da natureza do homem interior, a que se dá o nome de “inclinações”, seja da natureza das circunstâncias exteriores. A vontade não é, de modo algum, onipotente em sua efetividade real: sua força consiste apenas em que ela não pode ser coagida a querer. Para ilustrar essa LIBERDADE do espírito, Scotus dá o exemplo de “um homem que se atira de um lugar alto” [Bonansea, op. cit., p. 94, nota 44]. Esse ato acaba com sua LIBERDADE, uma vez que agora ele necessariamente cai? Segundo Scotus, não. Enquanto o homem está caindo necessariamente, compelido pela lei da gravidade, permanece livre para continuar a “querer cair”, e pode também, é claro, mudar de ideia, caso em que seria incapaz de desfazer o que começara voluntariamente e em que se veria nas mãos da necessidade. Lembramos o exemplo de Espinosa, da pedra que rola, a qual, se fosse dotada de consciência, seria necessariamente vítima da ilusão de que havia ela mesma se atirado e de que, se estava agora rolando, era por sua própria vontade. Tais comparações são úteis para que possamos nos dar conta de até que ponto tais proposições e suas ilustrações, no disfarce de argumentos plausíveis, dependem de pressupostos preliminares sobre necessidade ou LIBERDADE como fatos autoevidentes. Para ficar com o presente exemplo: nenhuma lei da gravidade tem poder sobre a LIBERDADE assegurada na experiência interior; nenhuma experiência interior tem validade direta no mundo como ele é, real e necessariamente, conforme a experiência exterior e o raciocínio correto do intelecto. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Tal auxílio será tão bem-vindo quanto difícil de provar, pela razão, bastante boa, de que não será possível encontrar um nicho confortável para ele entre seus predecessores e sucessores na história das ideias. Não será suficiente evitar o clichê do “oponente sistemático de Tomás”, presente nos manuais; e, em sua insistência na Vontade como a faculdade mais nobre em comparação com o Intelecto, ele teve muitos predecessores dentre os escolásticos — o mais importante foi Petrus Johannis Olivi [Ver Stadter, op. cit., especialmente a seção sobre Petrus Johannes Olivi, pp. 144-167]. Tampouco será suficiente esclarecer e mostrar com detalhes a influência sem dúvida grande que teve sobre Leibniz e Descartes, muito embora ainda seja verdade, como disse Windelband há mais de setenta anos, que os laços destes com “o maior dos escolásticos […] não tenham, infelizmente, encontrado a consideração e o tratamento que merecem” [Ver Bettoni, Duns Scotus, p. 193, nota]. Certamente a presença íntima da herança agostiniana em seu trabalho é patente demais para não ser notada — não há quem leia Agostinho com maior afinidade e com compreensão mais profunda —, e sua dívida com Aristóteles foi talvez ainda maior do que a que teve com Tomás. A grande verdade, no entanto, é que, quanto à quintessência de seu pensamento — a contingência, o preço pago de bom grado pela LIBERDADE —, ele não teve predecessores ou sucessores. Tampouco quanto a seu método: uma elaboração cuidadosa do experimentum suitatis de Olivi em experimentos de pensamento, que foram estruturados como o teste final do exame crítico do espírito no curso das ações efetuadas consigo e dentro de si mesmo (experimur in nobis, experientia interna [Tais frases ocorrem vez por outra. Para uma discussão deste tipo de “introspecção”, ver Béraud de Saint-Maurice, “The Contemporary Significance of Duns Scotus’ Philosophy”, in Ryan e Bonansea, op. cit., p. 354, e Ephrem Longpré, “The Psychology of Duns Scotus and its Modernity”, in The Franciscan Educational Conference, vol. XII, 1931.]). [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Comecemos pela Contingência como o preço a ser pago pela LIBERDADE. Scotus é o único pensador para quem a palavra “contingente” não tem conotação depreciativa: “Repito que a contingência não é simples privação ou defeito do Ser, como a deformidade […] que é o pecado. Em vez disso, a contingência é um modo positivo de Ser, assim como a necessidade é outro modo.” [Citado de Hyman e Walsh, op. cit., p. 597] Essa posição parece inevitável para ele, uma questão de integridade intelectual quando há intenção de se salvar a LIBERDADE. A primazia do Intelecto sobre a Vontade deve ser rejeitada “porque ela não pode salvar a LIBERDADE de forma alguma” — “quia hoc nullo modo salvat libertatem” [Bonansea, op. cit., p. 109, nota 90]. Para ele, a principal distinção entre cristãos e pagãos reside na noção bíblica da origem do Universo: o Universo do Gênese não veio a ser através da emanação de forças necessárias predeterminadas, de modo que sua existência fosse também necessária, mas foi criado ex nihilo por decisão do Deus-Criador, o Qual, temos que supor, era completamente livre para criar um mundo diferente, em que nem as nossas verdades matemáticas nem nossos preceitos morais fossem válidos. Daí segue-se que tudo o que é poderia não ter sido — a não ser o próprio Deus. Sua existência é necessária da perspectiva de um mundo não necessário, mas não é necessária no sentido de que sempre houve uma necessidade que O coagisse ou inspirasse em Sua criação; tal necessidade, atuando sobre Ele, estaria em clara contradição com a onipotência de Deus, bem como com Sua supremacia. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
De qualquer forma, o preço da LIBERDADE da Vontade é ser livre frente a cada objeto; o homem pode “odiar a Deus e encontrar satisfação em tal ódio”, pois algum prazer (deletactio) acompanha cada volição [Bonansea, op. cit., p. 89]. A LIBERDADE da Vontade não consiste na seleção dos meios para um fim predeterminado — eudaimonia ou beatitudo ou bem-aventurança — precisamente porque esse fim já é dado pela natureza humana; consiste em afirmar ou negar ou odiar livremente o que quer que lhe apareça. É essa LIBERDADE da vontade de tomar uma posição espiritualmente que coloca o homem à parte do resto da criação; sem isso, ele seria um animal esclarecido (bonum animal), na melhor das hipóteses, ou, como dissera Olivi anteriormente, uma bestia intellectualis, uma besta intelectual [Stadter, op. cit., p. 193]. O milagre do espírito humano é que, através da Vontade, ele pode transcender tudo (“voluntas transcendit omne creatum”, como disse Olivi) [Ibidem], e este é o sinal de que o homem foi criado à imagem de Deus. A noção bíblica de que Deus mostrou a ele Sua preferência, concedendo-lhe domínio sobre todas as obras de Suas mãos (Salmo 8), apenas o tornaria a mais alta de todas as coisas criadas; não o colocaria absolutamente apartado delas. Quando o ego volitivo diz em sua mais alta manifestação “Amo: Volo ut sis”, “eu te amo, quero que sejas” — e não “quero ter-te” ou “quero mandar em ti” —, ele mostra-se capaz do mesmo amor com que Deus supostamente ama os homens, a quem criou somente porque queria que existissem e a quem Ele ama sem desejar. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
O que aparentemente ia contra a LIBERDADE da Vontade de querer ou não querer era a lei da causalidade, que Scotus também conhecia na versão aristotélica: uma cadeia causal que tornasse o movimento inteligível e levasse finalmente a uma fonte imóvel, de todo o movimento, “o motor imóvel”, uma causa que não é ela mesma causada. A força do argumento, ou melhor, sua força explanatória, está no pressuposto de que uma só causa é suficiente para explicar por que uma coisa deveria ser em vez de não-ser, isto é, para explicar o movimento e a mudança. Scotus questiona toda a noção de uma cadeia de causalidade que siga em uma linha contínua através de uma sucessão de causas suficientes e necessárias, e que tenha de chegar, no final, a uma Causa Primeira para evitar um regresso ao infinito. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Começa a discussão indagando “se o ato de vontade é causado na vontade pelo objeto que a move ou pelo movimento da vontade em si”, e rejeita a resposta de que a vontade é movida por um objeto exterior a ela, uma vez que isso não pode de maneira alguma salvar a LIBERDADE (“quia hoc nullo modo salvat libertatem”). Rejeita a resposta contrária — de que a vontade é onipotente —, porque ela não pode explicar todas as consequências que seguem uma volição (“quia tunc non possunt salvari omnes conditiones quae eonsequuntur actum volendi”). Assim, chega à sua “posição intermediária”, na verdade a única posição que salva ambos os fenômenos — a LIBERDADE e a necessidade. Apresentada desta forma, ela soa como um dos exercícios lógicos tão comuns na Escolástica, como um jogo um tanto vazio com conceitos abstratos. Entretanto Scotus vai, desde logo, mais além em sua investigação, e chega a uma teoria das “causas parciais […] [as quais] podem concorrer de igual para igual e independentemente umas das outras”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Tomando como seu maior exemplo a procriação, em que duas substâncias independentes, macho e fêmea, devem unir-se para gerar a criança, chega à teoria de que toda mudança se dá porque uma pluralidade de causas coincide, e a coincidência engendra a textura de realidade nos assuntos humanos. [Para a teoria das “causas concorrentes”, ver Bonansea, op. cit., pp. 109-110. As citações são basicamente de P. Ch. Balie, “Une question inédite de J. Duns Scots sur la volonté”, in Recherches de théologie ancienne et médiévale, vol. 3, 1931.] Assim, o cerne do problema não é simplesmente insistir na LIBERDADE original que Deus teve ao criar o mundo, e, portanto, na possibilidade de que Ele poderia ter criado um mundo totalmente diferente, mas sim mostrar que a mudança e o movimento como tais — aqueles fenômenos que originalmente, em Aristóteles, levaram à Lei da Causalidade, os aitiai, bem como os archai — são governados pela Contingência. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
A razão para essa mudança estranha de perspectiva, que está na raiz de muitos dos paradoxos ligados ao problema da LIBERDADE, é que não há substituto, real ou imaginário, para a existência como tal. Certamente o fluxo do tempo e da transformação pode dissolver os fatos e os eventos; mas cada uma dessas dissoluções, até mesmo a mudança mais radical, já pressupõe a realidade que a precedeu. Nas palavras de Scotus, “tudo o que é passado é absolutamente necessário” [Citado de Hoeres, op. cit., p. 111, que infelizmente não fornece qualquer original em latim para a frase: “Denn alles Vergangene ist schlechthin notwendig.”]. Tornou-se a condição necessária para a minha própria existência, e não posso, de forma espiritual ou de outra maneira qualquer, conceber minha própria não-existência, já que, sendo parte inseparável do Ser, sou incapaz de conceber o nada, do mesmo modo que concebo Deus como o Criador do Ser, mas não um Deus anterior ao creatio ex nihilo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Foi isso que fez John Stuart Mill afirmar que “nossa consciência interna nos diz que temos um poder [isto é, uma LIBERDADE] que toda a experiência externa da raça humana nos diz que jamais utilizamos”; ora, em que consiste essa “experiência externa da raça humana” senão nos registros dos historiadores, cujo olhar retrospectivo vê aquilo que foi — factum est — e que já se tornou, portanto, necessário? Nesse momento, a “experiência externa” suplanta as certezas da “consciência interna” sem, contudo, destruí-la; e o resultado é, para um espírito que tenta coordenar e manter em equilíbrio tanto a “consciência interna” quanto a “experiência externa”, como se a base da necessidade dependesse ela mesma de uma contingência. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Diz-se que Scotus admitiu de bom grado que “não há resposta real para a questão sobre o modo de conciliar a LIBERDADE e a necessidade” [Ver Bonansea, op. cit., p. 95]. Não estava a par da dialética hegeliana, na qual o processo da necessidade pode produzir a LIBERDADE. Mas, no seu modo de pensar, não era preciso haver tal conciliação, pois a LIBERDADE e a necessidade eram dimensões completamente diferentes do espírito; se é que havia conflito, ele corresponderia a um conflito intramuros, entre os egos pensante e volitivo, um conflito em que a vontade dirige o intelecto e faz com que o homem pergunte: “Por quê?” A razão para isso é simples: a Vontade, como Nietzsche descobriria mais tarde, é incapaz de “querer retroativamente”; logo, deixe-se para o intelecto a tarefa de descobrir o que deu errado. A questão “por quê?” — “qual é a causa”? — é sugerida pela vontade porque a vontade se experimenta como um agente causativo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Em outras palavras, o passado, justamente por ser o que é “absolutamente necessário”, está além do alcance da Vontade. Para Scotus, o problema apresentava-se de maneira mais simples: os opostos decisivos não são necessidade e LIBERDADE, mas sim LIBERDADE e natureza — a Vontade ut natura e a Vontade ut libera [Ver Vogt, op. cit., p. 29]. Assim como o Intelecto, a Vontade se inclina naturalmente para a necessidade, só que a Vontade, ao contrário do Intelecto, pode conseguir resistir à inclinação. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Intimamente ligada a essa doutrina da contingência está a solução, de simplicidade surpreendente, que Scotus dá ao velho problema da LIBERDADE, uma vez que o problema surge da própria faculdade da vontade. Discutimos com algum detalhe a curiosa fragmentação da vontade, o fato de que a divisão dois-em-um, característica de todos os processos do espírito e descoberta primeiramente — por Sócrates e Platão — no processo do pensamento, transforma-se em uma luta fatal entre o “eu-quero” e o “não-quero” (entre velle e nolle), que devem, ambos, estar presentes para assegurar a LIBERDADE: “Experitur enim qui vult se posse non velle.” “Aquele que experimenta uma volição tem também a experiência de ser capaz de não querer.” [Auer, op. cit., p. 152] Os escolásticos, seguindo a filosofia da Vontade de Paulo, o Apóstolo, e de Agostinho, concordavam que a graça divina era necessária para curar o infortúnio da Vontade. Scotus, talvez o mais pio dentre eles, discordava disso. Não é necessária qualquer intervenção divina para redimir o ego volitivo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Ela própria sabe muito bem como se curar das consequências do dom inestimável e, ainda assim, altamente questionável da LIBERDADE humana; questionável porque o fato de a vontade ser livre e de não ser determinada ou limitada por qualquer objeto dado, exterior ou interiormente, não significa que o homem como homem goze de LIBERDADE ilimitada. O modo normal que o homem tem de escapar à sua LIBERDADE é simplesmente agir conforme as proposições da vontade: “Por exemplo, é possível para mim estar escrevendo neste momento, assim como me é possível não estar escrevendo; ainda assim, meu ato de escrever exclui o seu oposto. Por um ato da vontade posso me determinar a escrever, e por outro ato posso decidir não escrever, mas não posso tomar uma atitude simultânea em relação às duas coisas.” [Bettoni, Duns Scotus, p. 158] Em outras palavras, a vontade humana é indeterminada, aberta a contrários e, portanto, fragmentada somente à medida que sua única atividade consiste em formar volições; no momento em que para de querer e começa a agir conforme uma das proposições da vontade, ela perde sua LIBERDADE — e o homem, o possuidor do ego volitivo, fica tão feliz com a perda quanto ficou o asno de Buridan quando resolveu o problema da escolha entre os dois montes de feno, decidindo seguir seu instinto: parar de escolher e começar a comer. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
A ideia de que poderia haver uma atividade que encontra seu repouso em si mesma é de uma originalidade tão surpreendente — e sem precedentes ou sucessores na história do pensamento ocidental — quanto a da preferência ontológica de Scotus pelo contingente em detrimento do necessário e pelo particular existente em detrimento do universal. Tentei mostrar que não encontramos em Scotus simples inversões conceituais, mas sim novos e genuínos insights que poderiam, todos provavelmente, ser explicados como as condições especulativas para uma filosofia da LIBERDADE. A meu ver, na história da filosofia, somente Kant pode se igualar a Duns Scotus em seu compromisso com a LIBERDADE. Não obstante, Kant não tinha o menor conhecimento de Scotus. Vou terminar, portanto, com uma estranha passagem de Kant na Crítica da razão pura, que lida no mínimo com o mesmo problema, sem contudo mencionar LIBERDADE ou Vontade: Há algo de muito estranho no fato de que, desde que supomos que algo existe, não mais possamos evitar a consequência de que alguma coisa existe necessariamente. […] Por outro lado, tomando o conceito de uma coisa, não importa qual, descubro que a existência desta coisa nunca pode ser representada por mim como absolutamente necessária, e que, sobre o que quer que possa existir, nada me impede de pensar em sua não-existência. Assim, se tenho que admitir algo necessário como uma condição para o que existe em geral, não posso pensar em qualquer coisa particular como necessária em si. Em outras palavras, nunca posso acabar o regresso às condições da existência, a não ser admitindo um ser necessário, e, ainda assim, jamais estou em posição de começar a partir dele. [E concluindo esta reflexão algumas páginas depois] […] não há nada que absolutamente force a razão a aceitar uma tal existência; ao contrário, pode-se sempre anulá-la em pensamento, sem contradição; a necessidade absoluta é uma necessidade encontrável somente no pensamento. [B643-b645, trad. Smith, pp. 515-516] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
O único grande pensador nesses séculos que seria verdadeiramente irrelevante em nosso contexto é Kant. Sua Vontade não é uma capacidade especial do espírito distinta do pensamento, mas sim razão prática, um Vernunftwille não muito diferente do nous praktikos de Aristóteles; a afirmação de que “a razão pura pode ser prática é a tese central da filosofia moral kantiana” [Lewis White Beck, op. cit., p. 41] está perfeitamente correta. A Vontade de Kant não é nem LIBERDADE de escolha (liberum arbitrium) nem é sua própria causa; para Kant, a espontaneidade pura, que ele chamou com frequência de “espontaneidade absoluta”, só existe em pensamento. A Vontade de Kant é encarregada pela razão de ser seu órgão executivo em todas as questões da conduta. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 13]
Provavelmente foi por pura coincidência que a geração amadurecida sob o impacto das revoluções do século XVIII tenha também tido o espírito formado pela liberação kantiana do pensamento, por sua resolução do antigo dilema entre o dogmatismo e o ceticismo, ao introduzir uma autocrítica da Razão. E como a revolução encorajou essa geração a transportar a noção de Progresso do avanço científico para o campo dos assuntos humanos e a compreendê-la como progresso da História, era mais do que natural que sua atenção se voltasse para a Vontade como fonte da ação e como o órgão do Futuro. O resultado foi que “a ideia de fazer da LIBERDADE a parte essencial da filosofia emancipou o espírito humano em todas as suas relações”, emancipou o ego pensante para a especulação livre nas cadeias de pensamento cujo fim último era “provar […] que não só o Ego é tudo, mas também, ao contrário, tudo é Ego” [Schelling, Of Human Freedom, p. 351]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 13]
Essa operação da vontade, existente apenas em nosso espírito, supera a dualidade espiritual do dois-em-um, que veio a tornar-se uma batalha entre um que comanda e um que supostamente deve obedecer, pela identificação do “Eu” como um todo com a parte que comanda, e antecipando que a outra, a parte que resiste, obedecerá e fará o que lhe disserem para fazer. “Aquilo que é chamado de ‘LIBERDADE da vontade’ é essencialmente uma superioridade passional em relação a alguém que deve obedecer. ‘Eu sou livre; ele deve obedecer’ — a consciência disso é a própria vontade.” [N° 19] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]
Não esperaríamos que Nietzsche acreditasse na graça divina como o poder de cura da dualidade da Vontade. O inesperado na descrição acima é que ele tenha detectado na “consciência” da luta uma espécie de truque do “Eu” que o capacita para escapar ao conflito identificando-se com a parte que comanda, e para fechar os olhos, por assim dizer, para os sentimentos desagradáveis e paralisantes de se estar sob coerção e, portanto, sempre prestes a resistir. Nietzsche com frequência denuncia esse sentimento de superioridade como uma ilusão, ainda que como uma ilusão saudável. Em outras passagens ele explica a “estranheza” do fenômeno como um todo chamando-o de uma “oscilação [da vontade] entre sim e não”, mas mantém-se preso ao sentimento da superioridade do “Eu”, identificando a oscilação com uma espécie de vaivém entre o prazer e a dor. O prazer, diferente neste e em outros aspectos do deletactio de Scotus, é claramente o júbilo antecipado do “eu-posso” inerente ao próprio ato de querer, independente da performance, do sentimento triunfante que todos conhecemos quando nos desempenhamos bem, independente de exaltação ou de plateia. Em Nietzsche, o que importa é que ele inclui os sentimentos negativos de servidão, de estar sob coação e de resistência ou ressentimento entre os obstáculos necessários sem os quais a Vontade nem sequer conheceria seu próprio poder. Somente ao vencer uma resistência interna é que a Vontade toma consciência de sua gênese: ela não brotou para adquirir poder; o poder é sua própria fonte. Novamente em Para além do bem e do mal: “‘LIBERDADE da vontade’ é a expressão para a condição prazerosa múltipla daquele que quer e que está no comando e simultaneamente se vê como o mesmo que executa o comando — desfrutando, enquanto tal, o triunfo sobre a resistência, mas de posse do juízo de que é sua própria vontade que está superando a resistência. Dessa maneira, aquele que quer acrescenta os sentimentos prazerosos da execução ao sentimento prazeroso que tem como Comandante.” [Ibidem, grifo nosso] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]
Em terceiro lugar, a Vontade — seja quando é vontade retroativa e percebe sua impotência, seja quando é vontade projetiva e percebe sua força — transcende a simples gratuidade [giveness] do mundo. Tal transcendência é espontânea e corresponde à avassaladora superabundância de Vida. O objetivo autêntico da Vontade é, portanto, a abundância: “Com as palavras ‘LIBERDADE da Vontade’ falamos desse sentimento de excesso de força”, e o sentimento é mais do que uma simples ilusão da consciência porque corresponde de fato à própria superabundância de vida. Seria portanto possível entender toda a Vida como Vontade-de-potência. “Somente onde há vida há também vontade: não vontade de vida mas […] vontade de potência.” [Thus Spoke Zarathustra, parte II, “On Self-Overcoming”, in The Portable Nietzsche, p. 227] Pois seria bem possível explicar a “alimentação” como a “consequência de apropriação insaciável de vontade de potência, [e] a ‘procriação’ [como] a desagregação que sobrevém quando as células dominantes são incapazes de organizar aquilo que foi apropriado” [The Will to Power, n° 660, p. 349]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]
Mas o fato é que Nietzsche, que conhecia e apreciava muito Epiteto, não parou na descoberta da onipotência espiritual da Vontade. Engajou-se em uma construção do mundo dado que fizesse sentido, que fosse uma morada adequada para uma criatura cuja “força da vontade é [grande o suficiente] para abrir mão do significado das coisas […] [que] consegue resistir vivendo em um mundo sem sentido” [The Will to Power, n° 585A, p. 318]. “Eterno Retorno” é o termo para esse pensamento final e redentor, à medida que proclama a “Inocência de todo Devir” (die Unschuld des Werdens) e, com isso, sua inerente falta de metas e de propósitos, sua LIBERDADE da culpa e da responsabilidade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]
À primeira vista, isso pode parecer mais uma versão, talvez um pouco mais sofisticada, da astúcia da razão de Hegel, do ardil da natureza de Kant, da mão invisível de Adam Smith ou da divina Providência, todas elas forças invisíveis que dirigem os altos e baixos dos assuntos humanos para um objetivo predeterminado: a LIBERDADE em Hegel, a paz eterna em Kant, a harmonia entre os interesses contraditórios de uma economia de mercado em Adam Smith, a salvação final na teologia cristã. A noção em si — a saber, a de que as ações dos homens são inexplicáveis em si mesmas e que só podem ser entendidas como obra de algum propósito oculto ou agente oculto — é muito mais velha. Já Platão pôde “imaginar que cada um de nós, criaturas vivas, é um fantoche feito pelos deuses, talvez como um brinquedo, talvez com algum propósito mais sério” e que aquilo que tomamos como causas, a busca do prazer e o afastamento da dor, não são mais do que “as cordas pelas quais somos postos para funcionar” [Laws, I, 644]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]
Podemos acrescentar a esses diferentes ecos de si mesmo as seguintes frases do ensaio sobre Anaximandro: ‘‘Todo pensador depende do chamado do Ser. A dimensão desta dependência determina a LIBERDADE de influências irrelevantes” [P. 623] — com o que Heidegger quer claramente falar dos acontecimentos cotidianos factuais causados por homens que erram. Quando juntamos essas correspondências, é como se estivéssemos lidando aqui com uma simples variação do ensinamento básico de Heidegger. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]
De todos os filósofos e teólogos que consultamos, só Duns Scotus, como vimos, estava pronto a pagar o preço da contingência pelo dom da LIBERDADE — o dom do espírito que temos para começar algo novo, algo que sabemos que poderia também não ser. Sem dúvida, a necessidade sempre “agradou” mais aos filósofos do que a LIBERDADE porque eles precisavam, para sua atividade, de um tranquilitas animae (Leibniz), uma paz de espírito que — com base na acquiescentia sibi, a concordância de si consigo mesmo — só poderia ser garantida efetivamente através de um assentimento do arranjo do mundo. O mesmo eu que a atividade pensante desconsidera em sua retirada do mundo das aparências é afirmado e assegurado pela reflexividade da Vontade. Assim como o pensamento prepara o eu para o papel de espectador, a Vontade dá a ele a forma de um “Eu duradouro” que orienta todos os atos de volição particulares. Ela cria o caráter do eu, e foi por essa razão que às vezes foi entendida como o principium individuationis, a fonte de identidade específica do indivíduo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
No entanto é precisamente essa individuação ocasionada pela Vontade que gera problemas novos e sérios para a noção de LIBERDADE. O indivíduo, amoldado pela Vontade e sabedor de que poderia ser diferente daquilo que é (o caráter, ao contrário da aparência ou dos talentos e habilidades corporais, não é inato dado ao eu), sempre tende a afirmar um “Eu-mesmo” contra um “Eles” indefinido — todos os outros que eu, como indivíduo, não sou. Nada pode ser, de fato, mais apavorante do que a noção de LIBERDADE solipsista — o “sentimento” de que o meu ficar de fora, isolado de todos os demais, deve-se à vontade livre, de que nada nem ninguém pode ser responsabilizado por isso a não ser eu mesmo. A Vontade, com seus projetos para o futuro, desafia a crença na necessidade, no assentimento do arranjo do mundo, a que chama de complacência. Ainda assim, não está claro para todos que o mundo não é e nunca foi o que deveria ser? E quem sabe ou jamais soube o que vem a ser este deveria? O deveria é utópico; não tem topos próprio ou um lugar no mundo. A confiança na necessidade, na convicção de que tudo é como “era para ser” não é infinitamente preferível à LIBERDADE comprada ao preço da contingência? Nessas circunstâncias, a LIBERDADE não parece um eufemismo para essa região incinerada, marcada pelo “desamparo com o qual [a existência humana, Dasein] foi abandonada a si mesma” (“die Verlassenheit in der Überlassenheit an es selbst”)? [Heidegger, Sein und Zeit, n° 57] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Essas dificuldades e ansiedades são causadas pela Vontade à medida que é uma faculdade do espírito, sendo portanto reflexiva, repercutindo sobre si mesma — vollo me velle, cogito me cogitare — ou, em termos heideggerianos, pelo fato de que, existencialmente falando, a existência humana foi “abandonada a si mesma”. Nada parecido perturba nosso intelecto, a capacidade que o espírito tem de cognição e sua confiança na verdade. As habilidades cognitivas, como nossos sentidos, não repercutem sobre si mesmas; são completamente intencionais, vale dizer, completamente absorvidas pelo objeto que se pretende alcançar. Logo, à primeira vista, é surpreendente encontrar uma tendência semelhante contra a LIBERDADE nos grandes cientistas do nosso século. Como se sabe, eles ficaram muito perturbados quando suas descobertas demonstráveis na astrofísica e também na física nuclear deram origem à suspeita de que vivemos em um universo que, nas palavras de Einstein, é governado por um Deus que “joga dados” com ele, ou à de que, como sugeriu Heisenberg, “aquilo que consideramos o mundo exterior [pode ser] nosso mundo interior virado pelo avesso” (Lewis Mumford). [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Tais noções não são nem ciência nem filosofia, mas sim ficção científica; estão muito difundidas e demonstram que as extravagâncias da especulação materialista em muito se igualam às loucuras da metafísica idealista. O denominador comum de todas essas falácias, materialistas ou idealistas — além do fato de originarem-se historicamente da noção de progresso e de sua companheira, a entidade indemonstrável chamada Humanidade —, é que elas preenchem a mesma função emocional. Nas palavras de Lewis Thomas, elas acabam com “toda a preciosa noção de um eu próprio — a antiga e maravilhosa ilha de um Eu, autônoma, voluntária, livre para iniciativas, independente e isolada”, que é “um mito” [Ibidem]. O nome próprio deste mito, do qual somos, de todos os lados, aconselhados a nos livrar, é LIBERDADE. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Aos pensadores profissionais, filósofos ou cientistas, não lhes “aprouve a LIBERDADE” e seu caráter inelutavelmente aleatório; não estiveram dispostos a pagar o preço da contingência pelo dom questionável da espontaneidade, pela capacidade de fazer o que se poderia também deixar de ter feito. Deixemos portanto esses pensadores profissionais de lado, e concentremos nossa atenção nos homens de ação, que devem ter um compromisso com a LIBERDADE pela própria natureza de sua atividade, que consiste em “mudar o mundo”, e não em interpretá-lo ou conhecê-lo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Em termos conceituais, passamos da noção de LIBERDADE filosófica [philosophical freedom] para a de LIBERDADE política [political liberty], uma diferença óbvia, da qual, ao que eu saiba, somente Montesquieu falou, e mesmo assim de passagem, quando utilizou a LIBERDADE filosófica como um pano de fundo no qual a LIBERDADE política pudesse ser delineada com mais nitidez. Em um capítulo intitulado “De la liberté du citoyen” (“Sobre a LIBERDADE do cidadão”), ele disse: “La liberté philosophique consiste dans l’exercice de sa volonté, ou du moins (s’il faut parler dans tous les systèmes) dans l’opinion où l’on est que l’on exerce sa volonté. La liberté politique consiste dans la sûreté ou du moins dans l’opinion que l’on a de la sûreté” — “A LIBERDADE filosófica consiste no exercício da vontade, ou, pelo menos (se temos de levar em conta todos os sistemas), na opinião de que exercemos nossa vontade. A LIBERDADE política consiste na segurança, ou pelo menos na opinião de que se tem segurança.” [Esprit des Lois, livro XII, cap. 2] A LIBERDADE política do cidadão é “aquela tranquilidade de espírito que vem da opinião de que todos têm segurança; e, para que se possa estar de posse dessa LIBERDADE, o governo deve ser tal que um cidadão não tenha medo do outro” [Ibidem, livro XI, cap. 6]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
A LIBERDADE filosófica, a LIBERDADE da vontade, é relevante somente para pessoas que vivem fora das comunidades políticas, como indivíduos solitários. As comunidades políticas, nas quais os homens se tornam cidadãos, são produzidas e preservadas por leis; e tais leis, feitas pelos homens, podem variar muito e podem dar forma a inúmeros tipos de governo, todos eles, de uma maneira ou de outra, tolhendo a vontade livre de seus cidadãos. Com exceção da tirania, no entanto, em que uma vontade arbitrária governa as vidas de todos, os governos abrem algum espaço de LIBERDADE para a ação, espaço que, na verdade, põe em movimento o corpo constituído de cidadãos. Os princípios que inspiram as ações dos cidadãos variam de acordo com as diferentes formas de governo, mas são todos, como Jefferson os designou corretamente, “princípios energéticos” [Citado da introdução de Franz Neumann a The Spirit of the Laws, de Montesquieu, trad. Thomas Nugent, Nova York, 1949, p. xl]; e a LIBERDADE política “ne peut consister qu’à pouvoir faire ce que l’on doit vouloir et à n’être point contraint de faire ce que l‘on ne doit pas vouloir” — “só pode consistir no poder de fazer aquilo que devemos querer e em não sermos forçados a fazer o que não devemos querer” [Esprit des Lois, livro XI, cap. 3]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
A ênfase aqui está claramente no Poder, no sentido do eu-posso; para Montesquieu, assim como para os antigos, era óbvio que não se poderia mais dizer que um agente era livre quando lhe faltasse a capacidade de fazer o que quisesse fazer, quer por circunstâncias exteriores, quer pelas interiores. Além disso, as Leis que segundo Montesquieu transformam indivíduos livres e sem lei em cidadãos não são os Dez Mandamentos de Deus, ou a voz da consciência, ou o lumen rationale da razão, iluminando igualmente todos os homens, mas sim rapports feitos pelos homens, “relações” que, envolvendo os assuntos inconstantes do homem mortal — diferentes da eternidade de Deus ou da imortalidade do cosmo —, devem estar “submetidas a todos os acidentes que podem acontecer e variar à proporção que a vontade do homem muda” [Ibidem, livro I, cap. I, livro XXVI, cap. 1 e 2]. Para Montesquieu, bem como para a Antiguidade pré-cristã e para os homens que, no final do século, fundaram a República norte-americana, as palavras “poder” e “LIBERDADE” eram praticamente sinônimas. A LIBERDADE de movimento, o poder de se movimentar sem o impedimento da doença ou de um senhor, foi originalmente a mais elementar de todas as liberdades, justamente o seu pré-requisito. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Assim, a LIBERDADE política distingue-se da LIBERDADE filosófica por ser claramente uma qualidade do eu-posso, e não do eu-quero. Uma vez que é possuída pelo cidadão, e não pelo homem em geral, só pode se manifestar em comunidades, onde o relacionamento dos muitos que vivem juntos é, tanto no falar quanto no agir, regulado por um grande número de rapports — leis, costumes, hábitos e similares. Em outras palavras, a LIBERDADE política só é possível na esfera da pluralidade humana e com a condição de que essa esfera não seja simplesmente uma extensão deste eu-e-eu-mesmo [I-and-myself] dual para um nós plural. A ação, em que um nós está sempre engajado em mudar nosso mundo comum, mantém a oposição mais aguda possível com a atividade solitária do pensamento, que funciona no diálogo de mim comigo mesmo. Em circunstâncias excepcionalmente propícias, esse diálogo pode, como vimos, estender-se a um outro, já que um amigo é, como disse Aristóteles, “um outro eu”. Jamais pode, porém, alcançar o nós, o verdadeiro plural da ação. (Um erro bastante frequente entre filósofos modernos que insistem na importância da comunicação como garantia da verdade — em especial Karl Jaspers e Martin Buber, com sua filosofia do Eu-Tu — é acreditar que a intimidade do diálogo, a “ação interna” na qual “apelo” a mim mesmo ou ao “outro eu”, o amigo em Aristóteles, o amado em Jaspers, o Tu em Buber, possa estender-se e tornar-se paradigmática para a esfera política.) [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Esse nós surge onde quer que haja homens vivendo juntos; sua forma primordial é a família, e pode constituir-se de diferentes modos, todos eles baseados, em última instância, em alguma forma de assentimento, do qual a modalidade mais natural é a obediência, assim como a modalidade mais natural e menos nociva de dissentimento é a desobediência. O assentimento implica o reconhecimento de que nenhum homem pode agir sozinho, de que os homens, querendo realizar algo no mundo, devem agir de comum acordo, o que seria trivial caso não houvesse sempre alguns membros da comunidade determinados a desrespeitar o acordo e a tentar, por arrogância ou desespero, agir sozinhos. São esses os tiranos ou criminosos, dependendo do objetivo final a que querem chegar; o que têm em comum e o que os isola do restante da comunidade é que acreditam no uso de instrumentos de violência como substitutos do poder. Esta é uma tática que só funciona para os objetivos de curto prazo dos criminosos, os quais, depois de completar seu crime, podem e têm que voltar a tomar parte na comunidade; o tirano, por outro lado, sempre um lobo na pele de um cordeiro, só pode resistir usurpando a posição justa da liderança, o que o torna dependente de auxiliares para levar adiante projetos da sua própria vontade. Ao contrário do poder que a vontade do espírito tem de afirmar ou negar, cuja garantia prática final é o suicídio, o poder político, mesmo quando os que apoiam o tirano admitem o terror — isto é, o uso de violência —, é sempre um poder limitado; e uma vez que poder e LIBERDADE na esfera da pluralidade humana são na verdade sinônimos, isso significa que também a LIBERDADE política é sempre LIBERDADE limitada. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
As duas lendas fundadoras da civilização ocidental, a romana e a hebraica (a despeito do Timeu de Platão, nada que se compare jamais aconteceu na Antiguidade grega), são totalmente diferentes, a não ser por terem ambas surgido em meio a um povo que pensava em seu passado como uma história cujo começo era conhecido e podia ser datado. Os judeus sabiam o ano da criação do mundo (e contam o tempo até hoje a partir desse ano); e os romanos, ao contrário dos gregos, que contavam o tempo de Olimpíada em Olimpíada, sabiam (ou acreditavam saber) o ano da fundação de Roma, contando o tempo a partir daí. Muito mais impressionante e carregado de consequências muito mais sérias para a nossa tradição e pensamento político é o fato assombroso de que ambas as lendas (em contradição nítida com os conhecidos princípios alegados como inspiração para a ação política em comunidades constituídas) sustentem que, no caso da fundação — o ato supremo pelo qual o “Nós” se constitui como uma entidade identificável —, o princípio inspirador para a ação seja o amor pela LIBERDADE, e isso tanto no sentido negativo de liberação da opressão quanto no positivo de estabelecimento da LIBERDADE como realidade estável e tangível. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Tanto a diferença quanto a conexão entre essas duas — a LIBERDADE que advém de ser liberado e a LIBERDADE que surge da espontaneidade de começar algo novo — são paradigmaticamente representadas nas duas lendas fundadoras que atuaram como guias para o pensamento político ocidental. Temos a narrativa bíblica do êxodo de tribos israelenses do Egito, que precedeu a lei mosaica constituidora do povo hebreu; e a narrativa de Virgílio sobre as andanças de Eneias, que levaram à fundação de Roma — “dum conderet urbem”, como Virgílio define o conteúdo de seu grande poema já nas primeiras linhas. Ambas as lendas começam com um ato de liberação, a fuga da opressão e da escravidão no Egito e a fuga da Troia em chamas (isto é, fuga da aniquilação); em ambos os casos, esse ato é narrado da perspectiva de uma nova LIBERDADE: conquista de uma nova “terra prometida”, que oferece mais que a luxúria do Egito, e a fundação de uma nova Cidade, que é preparada por uma guerra destinada a acabar com a guerra de Troia, de modo que a ordem dos acontecimentos, tal como exposta por Homero, pudesse ser revertida. A reversão que Virgílio fez de Homero é completa e deliberada. [Ver, por exemplo, R. W. B. Lewis, “Homer and Virgil — The Double Themes”, Furioso, primavera, 1950, p. 24; “As repetidas referências explícitas à Ilíada nesses livros [da Eneida] não aparecem como paralelos, mas como reversões.”] Dessa vez é Aquiles, na forma de Turno (“Também aqui podes dizer que um Príamo encontrou seu Aquiles”), quem foge e é morto por Heitor, na forma de Eneias; no centro, “a fonte de toda a desgraça” é de novo uma mulher, só que agora uma noiva (Lavínia), e não uma adúltera; e o fim da guerra não é o triunfo pela vitória e destruição total dos derrotados, mas sim um novo corpo político — “ambas as nações, invictas, entram em um acordo sob as mesmas leis para sempre”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Quando lemos essas lendas como narrativas, constatamos sem dúvida uma enorme diferença entre as andanças desesperadas e a esmo das tribos israelenses no deserto depois do êxodo e as aventuras maravilhosas e as coloridas histórias de Eneias e seus companheiros troianos; mas para os homens de ação de gerações posteriores, que reviraram os arquivos da Antiguidade em busca de paradigmas que guiassem suas próprias intenções, isso não era o que importava. O que importava era que havia um hiatus entre o desastre e a salvação, entre a liberação da velha ordem e a nova LIBERDADE, corporificada em uma novus ordo seclorum, uma “nova ordem das eras”, com cujo nascimento o mundo se modificara estruturalmente. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
O hiato legendário entre um não-mais e um ainda-não indicava claramente que a LIBERDADE não seria um resultado automático da liberação, que o fim do velho não é necessariamente o começo do novo, que a noção de um contínuo de tempo todo-poderoso é uma ilusão. Narrativas de um período transitório — da servidão à LIBERDADE, do desastre à salvação — tinham grande apelo, porque as lendas se concentravam principalmente nos feitos dos grandes líderes, pessoas de significação histórica mundial que apareciam no palco da história precisamente durante tais intervalos de tempo histórico. Todos aqueles que — pressionados por circunstâncias exteriores, ou motivados por linhas de pensamento radicalmente utópicas — não estavam satisfeitos em mudar o mundo através de uma reforma gradual de uma antiga ordem (esta rejeição do gradual foi precisamente o que transformou os homens de ação do século XVII, o primeiro século de uma elite intelectual completamente secularizada, nos homens das revoluções) estavam quase que logicamente forçados a aceitar a possibilidade de um hiatus no fluxo contínuo da sequência temporal. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
No caso da Revolução norte-americana, a antiga e lendária noção de um hiato temporal entre a velha ordem e a nova era parecia muito mais apropriada do que uma “revolução” no calendário para superar o abismo entre um contínuo de tempo de sucessão ordenada e o começo espontâneo de algo novo. De fato, seria tentador usar o surgimento dos Estados Unidos da América como exemplo histórico da verdade das velhas lendas, como uma verificação do dito de Locke — “no princípio todo o mundo era América”. O período colonial seria interpretado como o período de transição entre a servidão e a LIBERDADE — o hiato entre a partida da Inglaterra e do Velho Mundo e o estabelecimento da LIBERDADE no Novo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Os fundadores da República norte-americana estavam bem familiarizados com a Antiguidade romana e também com a bíblica, e podem ter retirado das velhas lendas a distinção decisiva entre a simples liberação e a verdadeira LIBERDADE; nunca utilizam, porém, o hiato como base possível para explicar o que estavam fazendo. Há uma razão simples e factual para isso: embora a terra fosse ser no final, para muitos, um lugar de “descanso” e um asilo para os exilados, eles próprios não haviam chegado lá como exilados, mas sim como colonizadores. Até o final, quando o conflito com a Inglaterra mostrou-se inevitável, não era problema para eles reconhecer a autoridade da metrópole. Orgulharam-se de ser indivíduos ingleses até que o momento de sua rebelião contra um governo injusto — “taxação sem representação” — os levou a uma “revolução” verdadeira, uma mudança na própria forma de governo e à constituição de uma República como único governo, o que agora era sentido por eles como a forma adequada para governar a terra dos homens livres. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Quando os homens de ação, homens que queriam mudar o mundo, conscientizaram-se de que tal mudança poderia realmente postular uma nova ordem das eras, o início de algo sem precedentes, começaram a vasculhar a história à procura de ajuda. Começaram a repensar coisas-pensamento tais como o Pentateuco e a Eneida, lendas fundadoras que pudessem dizer-lhes como resolver o problema do começo — um problema, porque a própria natureza do começo é trazer em si um elemento de completa arbitrariedade. Foi só então que eles se depararam com o abismo da LIBERDADE, sabendo que tudo o que se fizesse agora poderia também deixar de ser feito, e tendo também a crença clara e precisa de que uma vez que uma coisa é feita não pode ser desfeita, de que a memória humana, contando a história, sobrevive ao arrependimento e à destruição. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Isso aplica-se apenas ao campo das ações, ao “muitos-em-um dos seres humanos” [Tomei de empréstimo esse termo oportuno para comunidades do ensaio altamente instrutivo “The Character of the Modern European State”, in On Human Conduct, de Michael Oakeshott, Oxford, 1975, p. 199.], isto é, às comunidades em que o “Nós” é devidamente estabelecido para sua jornada através do tempo histórico. As lendas fundadoras, com seu hiato entre a liberação e a constituição da LIBERDADE, indicam o problema sem resolvê-lo. Apontam para o abismo do nada que se abre antes de qualquer ação que não pode ser explicada por uma cadeia segura de causa e efeito e que tampouco se explica pelas categorias aristotélicas de potência e ato. No contínuo de tempo normal, todo efeito transforma-se imediatamente em uma causa de futuras ocorrências; mas quando a cadeia causal é quebrada — o que ocorre depois que se alcança a liberação, já que a liberação, ainda que seja a conditio sine qua non da LIBERDADE, jamais é a conditio per quam que causa a LIBERDADE — não resta nada em que o “iniciante” possa se agarrar. O pensamento de um começo absoluto — creatio ex nihilo — elimina a sequência de temporalidade tanto quanto o pensamento de um fim absoluto, que agora se designa corretamente como “pensar o impensável”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Seja como for, sempre que homens de ação impulsionados pelo próprio momentum do processo de liberação começaram seriamente a se preparar para um começo inteiramente novo, a novus ordum seclorum, em vez de se voltarem para a Bíblia (“No princípio, Deus criou o Céu e a Terra”) eles vasculharam os arquivos da Antiguidade romana em busca da “prudência antiga” para guiá-los no estabelecimento de uma República, isto é, de um governo “de leis e não de homens” (Harrington). Eles não só precisavam familiarizar-se com uma nova forma de governo, como também com uma lição sobre a arte de fundação, sobre como superar as perplexidades inerentes a todo começo. Estavam bem conscientes, é claro, da espontaneidade desconcertante de um ato livre. Como sabiam, um ato somente pode ser chamado de livre se não for afetado ou causado por alguma coisa que o precede, exigindo, ainda assim, à medida que se transforma imediatamente em uma causa do que quer que venha a se seguir, uma justificativa que, se vier a ter êxito, terá que apresentar o ato como a continuação de uma série precedente, isto é, virá a negar a própria experiência de LIBERDADE e novidade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
É espantoso, além disso, que a noção do futuro — justamente um futuro prenhe da salvação final —, que traz de volta uma espécie de Idade do Ouro inicial, tenha se tornado popular em um tempo em que o Progresso tornara-se o conceito dominante na explicação do movimento da história. E o mais impressionante exemplo da persistência daquele sonho muito antigo é, obviamente, a fantasia marxista de um “reino de LIBERDADE” sem classes e sem guerras, tal como foi prefigurado no “comunismo original”, um reino que tem mais do que uma semelhança superficial com o reino original de Saturno sobre a Itália, quando nenhuma lei “acorrentava os [homens] à justiça”. Em sua forma original antiga, como o início da história, a Idade do Ouro é um pensamento melancólico. É como se, há milhares de anos, nossos ancestrais houvessem tido um pressentimento da descoberta eventual do princípio da entropia, que surgiria em um século XIX embriagado de progresso — uma descoberta que, se não tivesse sido questionada, teria destituído a ação de qualquer significado. [R. J. E. Clausius (1822-1888), físico e matemático alemão que enunciou a segunda lei da termodinâmica, introduziu o princípio da entropia (energia não disponível para trabalho útil em um sistema termodinâmico, representada pelo símbolo Ø): “Postulando que a entropia do universo está aumentando continuamente, ele previu que o universo se extinguiria pela ‘morte do calor’, quando tudo dentro dele chegasse à mesma temperatura.” Columbia Encyclopedia, 3ª ed. (Ed.).] O que fez na verdade o princípio da entropia desaparecer para os homens que realizaram as revoluções dos séculos XIX e XX foi não tanto a refutação “científica” de Engels, mas o retorno de Marx — e obviamente também o de Nietzsche — ao conceito cíclico de tempo, em que a inocência pré-histórica do começo finalmente reapareceria, tão triunfante quanto a segunda vinda de Jesus à Terra. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Mas isso não nos interessa aqui. Quando dirigimos nossa atenção para os homens de ação esperando encontrar neles uma noção de LIBERDADE purgada das perplexidades causadas nos espíritos humanos pela reflexividade das atividades do espírito — a inevitável repercussão do ego volitivo sobre si mesmo —, esperávamos mais do que finalmente alcançamos. O abismo de pura espontaneidade, que nas lendas fundadoras é superado pelo hiato entre liberação e constituição da LIBERDADE, foi coberto com o mecanismo típico da tradição ocidental (a única tradição em que a LIBERDADE sempre foi a raison d’être de toda política), através do qual compreendemos o novo como uma reafirmação melhorada do velho. A LIBERDADE só sobreviveu em sua integridade original na teoria política — isto é, na teoria concebida com a finalidade da ação política — apenas nas promessas utópicas e infundadas de um “reino de LIBERDADE” final que, na sua versão marxista, em todo caso, significaria de fato “o fim de todas as coisas”, uma paz eterna na qual todas as atividades especificamente humanas desapareceriam. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Estou bem consciente de que o argumento, mesmo na versão agostiniana, é um tanto opaco, e não nos parece dizer nada além de que estamos condenados a ser livres porque nascemos, não importando se apreciamos a LIBERDADE ou abominamos sua arbitrariedade, se ela nos “apraz” ou se preferimos escapar à sua terrível responsabilidade, elegendo alguma forma de fatalismo. Esse impasse, se é que é um impasse, só pode ser desfeito ou resolvido pelo apelo a uma outra faculdade do espírito, não menos misteriosa do que a faculdade de começar: a faculdade do Juízo, cuja análise poderia no mínimo nos dizer o que está em jogo em nossos prazeres e desprazeres. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Uma vez que Kant não escreveu sua filosofia política, a melhor maneira de descobrir o que ele pensava sobre este assunto é nos debruçarmos sobre a sua Crítica do juízo estético, em que, ao discutir a produção de obras de arte em suas relações com o gosto, que julga e decide sobre elas, ele se depara com um problema análogo, semelhante. Somos inclinados a pensar que, para julgar um espetáculo, deve-se ter, em primeiro lugar, o espetáculo; que o espectador é secundário em relação ao ator — sem levar em conta que ninguém em seu juízo perfeito poria em cartaz um espetáculo sem estar seguro de haver espectadores para assistir a ele. Kant está convencido de que o mundo sem o homem seria um deserto, e um mundo sem o homem significa: sem espectador. Na discussão do juízo estético, a distinção é que é necessário o gênio para a produção das obras de arte, enquanto para julgar e decidir se os objetos são belos ou não, não é preciso “nada além” (nós diríamos, mas não Kant) do gosto. “Para julgar objetos belos, o gosto é necessário […] para sua produção, o gênio é preciso.” O gênio, segundo Kant, é uma questão de imaginação produtiva e de originalidade; o gosto é uma… questão de juízo. Ele propõe a questão: qual das duas é a faculdade “mais nobre”, qual é a condição sine qua non “que devemos observar no julgar da arte como arte bela?” — e o faz pressupondo, é claro, que embora a maioria dos juízes da beleza não tenha a faculdade de imaginação produtiva que ele chama gênio, aos poucos dotados com o gênio não falta a faculdade do gosto. E a resposta é a seguinte: A abundância e a originalidade de ideias são menos necessárias à beleza do que o acordo entre a imaginação, em sua LIBERDADE, e a conformidade à lei do entendimento [que se chama gosto]. Pois toda a abundância das primeiras só produz […], na LIBERDADE sem lei, absurdos; por outro lado, o juízo é a faculdade pela qual elas são ajustadas ao entendimento. [Arendt, Vida do Espírito Apêndice O Julgar ]