Gadamer (VM): ocasionalidade

Se partirmos do fato de que a obra de arte não pode ser compreendida do ponto de vista da consciência estética, muitos fenômenos, que assumem uma posição marginal para a mais recente estética, perdem o seu caráter problemático, e até se deslocam para o centro de um questionamento “estético”, que não se reduz através de uma forma artificial. O que estou querendo dizer são fenômenos como o portrait, a poesia em homenagem a, ou mesmo a alusão feita na comédia contemporânea. Os conceitos estéticos portrait, em homenagem a e alusão são, eles próprios, naturalmente, formados pela própria consciência estética. O que há de comum nesses fenômenos apresenta-se, para a consciência estética, no caráter da ocasionalidade, que tais formas de arte por si mesmas reivindicam. Ocasionalidade quer dizer que o significado continua se determinando, quanto ao conteúdo, a partir da ocasião em que ele é pensado, de maneira que ele contém mais do que sem essa ocasião. Assim, o portrait contém uma relação com o representado, para a qual não temos de deslocá-lo primeiro, mas que é intensionado expressamente na própria representação, caracterizando-o como portrait. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Vamos analisar primeiramente o que, apesar de sua indizibilidade, é dito. Aqui emerge o imenso âmbito daquilo que em todo discurso é ocasional e ajuda a constituir o sentido do discurso. Ocasionalidade significa a dependência da ocasião, da circunstância e situação, em que se usa a expressão. A análise hermenêutica pode demonstrar que essa dependência da ocasião não é ela mesma ocasional, mesmo nas expressões ditas ocasionais, como por (179) exemplo “aqui” ou “isto”. Em sua peculiaridade semântica, essas expressões não possuem evidentemente nenhum conteúdo fixo, assinalável, sendo usadas como formas vazias passíveis de serem por conteúdos variáveis. A análise hermenêutica, porém, pode demonstrar que essa ocasião constitui a própria essência do dizer. Pois em sua estrutura de linguagem e em sua lógica, nenhum enunciado possui apenas um sentido unívoco, mas sim um sentido motivado. O que lhe dá sentido é uma pergunta a ele subjacente. A função hermenêutica da pergunta repercute no sentido do enunciado, o de ser uma resposta. Não me refiro aqui à hermenêutica da pergunta que ainda está para ser estudada. Há muitos tipos de perguntas e todos sabemos que a pergunta não precisa ter características sintáticas para mostrar plenamente seu sentido interrogativo. Refiro-me ao tom interrogativo que pode conferir um caráter interrogativo a uma frase formulada sintaticamente como um enunciado afirmativo. Um bom exemplo é a inversão desse fato, ou seja, quando uma frase que tem caráter de pergunta mostra seu caráter de enunciado. Chamamos esse fato de pergunta retórica. A chamada pergunta retórica é pergunta apenas na forma, sendo na realidade uma afirmação. Analisando como o caráter interrogativo torna-se afirmativo e confirmativo, mostra-se que a pergunta retórica é afirmativa por já pressupor a resposta. Pela pergunta, ela já antecipa a resposta comum. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

O que aqui continua sendo decisivo é que essa ocasionalidade referida está incluída na exigência da própria obra e que, por exemplo, não é imposta a ela, como necessidade, primeiramente por seus intérpretes. É justamente por isso que tais formas de arte, como o portrait, nas quais isso já está fixado, não encontram um lugar certo na estética fundamentada sobre o conceito de vivência. Um portrait, p. ex., contém em seu próprio conteúdo de imagem a relação para com a imagem originária. Com isso não se pensa apenas que o quadro foi pintado realmente segundo esta imagem originária, mas que intenciona a esta. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

A diferença entre modelo e portrait torna evidente o que significa aqui a ocasionalidade. A ocasionalidade, no sentido pensado aqui, reside inequivocamente na própria reivindicação de sentido de uma obra, diferenciando-se com relação a tudo que pode ser observado nela e pode ser concluído dela, contra a reivindicação da obra. Um portrait quer ser entendido como portrait, mesmo quando a relação com o quadro original fica quase sufocada pelo próprio conteúdo da imagem do quadro. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Por mais fluida e muitas vezes discutível que possa ser a fronteira que separa, dessa maneira, uma alusão tida como ocasional do conteúdo temporal-documentário restante de uma obra, trata-se, não obstante, de uma questão fundamental saber se nos subordinamos à reivindicação do sentido, que uma obra coloca, ou nela vemos meramente um documento histórico, que procuramos inquirir. O historiador irá procurar por toda parte, mesmo contra o sentido de reivindicação de uma obra, todas as relações que possam lhe transmitir algo do passado. Ao mesmo tempo, ele irá detectar por toda parte nas obras de arte os modelos, ou seja, sairá ao encalço das relações temporais que se encontram entretecidas nas obras de arte, mesmo que permaneçam irreconhecíveis para o observador contemporâneo e não dêem a conhecer o sentido do conjunto. A ocasionalidade, no sentido a que aqui se alude, não vem a ser isso, mas tão-somente quando na reivindicação do sentido de uma obra, ela mesma se observa que ela faz referência a um determinado quadro original. Não fica então ao bel-prazer do observador que uma obra tenha ou não um tal momento ocasional. Um portrait é um portrait e não se torna tal somente através daqueles para aqueles que nele reconhecem o retrato. Embora a referência ao quadro original resida na própria obra, ainda assim será correto denominá-lo ocasional. Pois o portrait não diz, ele próprio, quem é o representado, mas apenas que é um determinado indivíduo (e não um tipo). Só se pode “reconhecer” quem seja ele, quando o representado é uma pessoa conhecida, e somente se pode saber é se alguma plaqueta indicativa ou a existência paralela de uma informação o disser a alguém. Em todo caso, há no próprio quadro uma indicação indissociada, mas fundamentalmente dissociável, que faz parte de seu significado. Essa ocasionalidade pertence ao conteúdo central do significado do “quadro”, independentemente de sua dissolução. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

O que importa reconhecer é que aquilo que chamamos de ocasionalidade não representa, de forma alguma, uma redução da exigência artística e da univocidade artística de tais obras. Pois, o que se apresenta à subjetividade estética como “irrupção do tempo no jogo” e que na era da arte vivencial apareceu como uma redução do significado estético de uma obra. É, na verdade, apenas o reflexo subjetivo daquela relação ontológica que elaboramos acima. Uma obra de arte pertence tão estreitamente àquilo com o qual tem relação, que enriquece o ser daquele outro como que através de um novo acontecimento do ser. No quadro, ser-fixado; na poesia, ser-tratado; ser meta de uma alusão, do ponto de vista do palco, isso tudo não são efemeridades, que permanecem distanciadas do ser, mas representações desse próprio ser. O que dissemos de modo geral acima sobre a valência de ser do quadro inclui também esse momento ocasional. Assim, apresenta-se o momento da ocasionalidade, que vem ao encontro nos fenômenos citados, como um caso de exceção de uma relação geral, que convém ao ser da obra de arte: a fim de experimentar a continuidade da determinação de seu significado a partir da “ocasião” de seu vir à representação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Mas, basicamente, também as formas de arte especificamente ocasionais, p. ex., a parabase na comédia antiga ou a caricatura na luta política, que tomaram por alvo uma “ocasião” plenamente determinada — e, finalmente, também o portrait — são formulações da ocasionalidade geral, que faz jus à obra de arte através do fato de que se determina novamente de ocasião em ocasião. Mesmo a determinação única à qual, nesse sentido restrito, se preenche um momento ocasional na obra de arte, ganha no ser da obra de arte uma participação na universalidade, que a torna capaz de uma nova realização — de maneira que a singularidade de sua relação de ocasião torna-se indissociável, mas a relação na própria obra, tornada portrait, torna-se independente da singularidade de sua relação com o quadro original e, mesmo assim, contém-no em si mesmo, ao superá-lo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Para começar, já teremos uma diferença interessante, caso minha impressão esteja correta, no fato de que Schleiermacher não fale tanto da incompreensão como de mal-entendido. O que ele tem em vista já não é mais a situação pedagógica da interpretação, que procura ajudar a compreensão do outro, do aluno. Ao contrário, nele a interpretação e a compreensão se interpretam tão intimamente como a palavra exterior e interior, e todos os problemas da interpretação são, na realidade, problemas da compreensão. Trata-se apenas da subtilitas intelligendi, não da subtilitas explicando (para não falar da applicatio). Mas, Schleiermacher faz, sobretudo, uma diferenciação expressa entre a praxis mais laxista da hermenêutica, segundo a qual a compreensão se realiza por si mesma, e a praxis mais estrita que parte da idéia de que o mal-entendido se produz por si mesmo. Sobre essa diferença fundamentou seu desempenho próprio: desenvolver, em lugar de uma “agregação de observações”, uma verdadeira doutrina da arte do compreender. E isso significa algo fundamentalmente novo. A dificuldade de compreensão e do mal-entendido já não são levados em conta somente como momentos ocasionais, mas como momentos integradores que se procura desconectar previamente. Schleiermacher chega inclusive a definir que: “a hermenêutica é a arte de evitar o mal-entendido”. Para além da ocasionalidade pedagógica da prática da interpretação, a hermenêutica se eleva à autonomia deum método, pois “o mal-entendido se produz por (189) si mesmo, e a compreensão é algo que temos de querer e de procurar em cada ponto”. Evitar o mal-entendido — “Todas as tarefas estão contidas nesta expressão negativa”. Sua resolução positiva está, para Schleiermacher, num cânon de regras gramaticais e psicológicas de interpretação, que se afastam por completo de qualquer liame dogmático de conteúdo, inclusive na consciência do intérprete. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Não obstante, existe outra dialética da palavra, que dispõe a cada uma das palavras uma dimensão interna de multiplicação: Cada palavra irrompe de um centro e tem relação com um todo, e só é palavra em virtude disso. Cada palavra faz ressoar o conjunto da língua a que pertence, e deixa aparecer o conjunto da acepção do mundo que lhe subjaz. Por isso, cada palavra, como acontecer de seu momento, faz que aí esteja também o não dito, ao qual se refere, respondendo e indicando. A ocasionalidade do falar humano não é uma imperfeição eventual de sua capacidade expressiva, mas, antes, expressão lógica da virtualidade viva do falar que, sem poder dizê-lo inteiramente, põe em jogo todo um conjunto de sentido. Todo falar humano é finito no sentido de que, nele, jaz uma infinitude de sentido a ser desenvolvida e interpretada. Por isso também o fenômeno hermenêutico deve ser esclarecido a partir dessa constituição fundamentalmente finita do ser, que desde o seu fundamento está construída linguisticamente. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A configuração mais formal em que o dito se mostra no não-dito é pois a referência à pergunta. Deve-se perguntar se essa forma de implicação abrange todas as outras, se existem outras formas de implicação. Será que vale, por exemplo, também para todo o âmbito de enunciados, que em sentido estrito não são enunciados porque sua intenção própria e fundamental não é a informação e nem a comunicação de um certo estado de coisas, os enunciados portanto que possuem um outro sentido funcional? Refiro-me a fenômenos da linguagem como a maldição ou a bênção, o anúncio redentor de uma tradição religiosa, uma ordem ou um lamento. São todos modos de falar que revelam seu sentido próprio no fato de não poderem ser repetidos, no fato de que a sua assinatura, isto é, sua transformação num enunciado informativo, do tipo: “Digo que te amaldiçoo”, não apenas modifica totalmente o sentido do enunciado, no caso, a maldição, como a destrói inteiramente. A pergunta é a seguinte: Será que também nesse caso a frase é uma resposta a uma pergunta motivada? Será compreensível apenas desse modo? Certamente que o sentido de todas essas formas de enunciado, da maldição à bênção, só pode ser preenchido quando recebe de um contexto de ação sua determinação de sentido. Uma vez que a circunstância do seu dito pede para ser elaborada na compreensão, não é possível negar que também essas formas de enunciado possuem o caráter de ocasionalidade. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

A partir desse contexto, fica claro que um enunciado jamais tem seu pleno conteúdo de sentido a partir de si mesmo. Na lógica, essa questão ficou conhecida como o problema da ocasionalidade. A característica especial das chamadas expressões “ocasionais”, recorrentes em todos os idiomas, é não conterem seu pleno sentido em si mesmas, como ocorre com outras expressões. Quando digo, por exemplo, “aqui”, essa palavra não é compreensível para todos pelo simples fato de ser pronunciada ou escrita. É preciso saber onde ocorreu ou onde ocorre. Para sua própria significação, a palavra “aqui” deve ser complementada pela ocasião, a occasio, em que foi pronunciada. A análise lógico-fenomenológica interessou-se de modo especial por expressões desse gênero, porque se pode demonstrar que esses significados incluem a situação e a ocasião em seu próprio conteúdo significativo. O problema específico das assim chamadas expressões “ocasionais” em muitos aspectos ainda carece de exploração. Foi o que fez Hans Lipps em suas Untersuchungen zur hermeneutischen Logik (Investigações sobre a lógica hermenêutica). Algo similar ocorre na moderna filosofia analítica inglesa, como nos chamados “austinianos”, os seguidores de (196) Austin. Austin expôs um importante questionamento do seguinte modo: “How to do things with words” (Como fazer coisas com palavras?). São exemplos de modos de falar que na sua execução transcendem a si próprios, que se destacam e distanciam nitidamente do puro conceito de enunciado. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.

A ocasionalidade deve aparecer como um momento de sentido dentro da pretensão de sentido de uma obra e não como o rastro do ocasional, velado por trás das obras e que deve ser descoberto através de interpretação. Se fosse o caso desse último, significaria que só estaríamos em condições de compreender o sentido do todo através da reconstituição da situação originária como tal. Se a ocasionalidade representa um momento de sentido na pretensão da própria obra, então o caminho para o entendimento do conteúdo de sentido da obra é ao mesmo tempo uma oportunidade para que o historiador experimente algo da situação originária, para onde aponta a própria obra. Nesse sentido, nossas considerações fundamentais sobre o modo de ser do ser estético estabeleceram uma nova legitimação para o conceito de ocasionalidade, que ultrapassa todas as formas específicas de legitimação. Assim, o jogo da arte não está elevado acima de tempo e espaço como afirma a consciência estética. Mesmo que reconheçamos o fundamental, não podemos falar de uma irrupção do tempo no jogo, como o fez recentemente Carl Schmitt, com relação ao drama de Hamlet. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO II

Decerto, o interesse do historiador é seguir e investigar, na formação do jogo da arte, os traços e as relações que o entrelaçam com sua época. Parece-me, no entanto, que Carl Schmitt menospreza a dificuldade dessa tarefa, legítima para o historiador. Ele crê poder reconhecer uma ruptura no jogo, através de cuja abertura transparece a realidade contemporânea, deixando entrever a função contemporânea da obra. Esse procedimento, porém, está cheio de ganchos metodológicos, como nos ensinou o exemplo da investigação de Platão. Mesmo que seja fundamentalmente correto desconectar os preconceitos de uma pura estética da vivência e inserir o jogo da arte e seu contexto histórico-temporal e político, parece-me errado encorajar alguém a ler o Hamlet como um romance policial. Creio que aqui não se dá uma irrupção do tempo no jogo, que seria reconhecível no jogo como uma ruptura. Para o próprio jogo não há contradição entre tempo e jogo, como admite Carl Schmitt. O jogo inclui e relaciona, ao contrário, o tempo junto com, e em seu jogo. Essa é a grande possibilidade da poesia, através da qual ela pertence a seu tempo e este a escuta. Nesse sentido geral, também o drama de Hamlet pode ser visto em sua atualidade política. Mas se, de sua leitura, deduzirmos que o poeta toma ocultamente partido a favor de Essex e Jakob, será difícil provar isso pela própria poesia. Mesmo que o poeta realmente estivesse entre os que tomam esse partido, o jogo produzido por sua poesia (380) deveria esconder de tal modo seu partidarismo, que mesmo a agudeza intelectual de Carl Schmitt fracassaria diante disso. O poeta que queira alcançar seu público deve levar em consideração que entre seu público encontra-se também o partido contrário. O que temos aqui, na verdade, é a irrupção do jogo no tempo. Ambíguo como é, o jogo só pode desencadear seu efeito imprevisível em jogando-se. Por sua própria essência, o jogo não pode ser um instrumento de fins mascarados, os quais teríamos de entrever para poder compreendê-lo de modo unívoco; enquanto jogo, permanece em uma ambigüidade insolúvel. A ocasionalidade presente nele não é uma referência preestabelecida, a única que poderia conferir significado a tudo. É, antes, a capacidade enunciativa da própria obra que consegue corresponder a cada ocasião. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO II