Isso virá a ser bastante palpável num segundo testemunho, em que Dilthey se refere à independência dos métodos das ciências do espírito e fundamenta-os levando em consideração o seu objeto. Uma tal referência soa, de início, bem aristotélica e poderia gerar uma genuína substituição do modelo das ciências da natureza. No entanto, no que diz respeito a essa independência dos métodos das ciências do espírito, Dilthey continua vinculando-a ao antigo “Natura parendo vincitur” de Bacon — um postulado que faz saltar aos olhos a herança clássico-romântica, que Dilthey queria administrar. Pode-se assim dizer que, mesmo Dilthey, cuja formação histórica forma sua superioridade em face do neokantianismo de sua época, apesar de seus esforços lógicos, no fundo não conseguiu ir além das simples constatações que Helmholtz fez. Pode até ser que Dilthey tenha batalhado muito a favor da independência teorético-cognitiva das ciências do espírito — o que se denomina método na ciência moderna é algo único e o mesmo por toda parte e só especialmente nas ciências da natureza cunha-se como modelar. Não existe nenhum método específico para as ciências do espírito. Mas certamente pode-se indagar, como Helmholtz, quanto significa aqui o método, e se as outras condições, sob as quais se encontram as ciências do espírito, não serão, para sua forma de trabalhar, quem sabe muito mais importantes do que a lógica indutiva. Helmholtz o havia indicado corretamente, quando ele, para satisfazer as exigências das ciências do espírito, salientou a memória e a autoridade e falou do tato psicológico, que aqui entraria no lugar do concluir (Schliessen) consiste esse tato? Como podemos adquiri-lo? Será que, ao cabo, o que há de científico nas ciências do espírito depende mais do tato do que de sua metodologia? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Isso se mostra também no uso da linguagem. A redução de Kant, do conceito de gênio ao artista, que tratamos acima, não conseguiu se impor. Ao contrário, no século XIX o conceito de gênio elevou-se a um conceito de valor universal e experimentou — em união com o conceito da criatividade — uma verdadeira apoteose. Era o conceito romântico-idealista da produção inconsciente, que suportou esse desenvolvimento e que alcançou uma enorme repercussão através de Schopenhauer e da filosofia do inconsciente. É verdade que mostramos que uma tal posição preferencial sistemática do conceito do gênio em contraste com o conceito do gosto respondia, de forma alguma, à estética kantiana. Porém a preocupação essencial de Kant veio a produzir uma fundamentação da estética que é autônoma e liberta do padrão do conceito, e de maneira alguma chegou a colocar a questão relativa à verdade no âmbito da arte, mas, fundamentou o julgamento estético sobre o a priori subjetivo do sentimento vital, a harmonia de nossa capacidade para “o conhecimento como tal”, que perfaz a essência comum do gosto e do gênio, anteposto ao irracionalismo e ao culto do gênio do século XIX. A doutrina de Kant sobre a “elevação do sentimento vital” no prazer estético promoveu o desenvolvimento do conceito “gênio” para um conceito de vida abrangente, principalmente depois que Fichte havia elevado o ponto de vista do gênio e a produção genial a um ponto de vista universal e transcendental. Assim aconteceu que o neokantianismo, na medida em que procurava derivar tudo que tivesse valor de objeto da subjetividade transcendental, terminou caracterizando o conceito de vivência como a genuína realidade do consciente. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
A consciência filosófica reúne no conceito “a natureza da coisa (Sache)” uma resistência, sentida a partir de diversas vertentes, contra o idealismo filosófico e especialmente contra a forma neokantiana, que revitalizou esse idealismo na segunda metade do século XIX. Essa continuação de Kant que a ele se refere para transformá-lo em expoente da fé no progresso e em orgulho da ciência de sua época, no fundo, não conseguiu empreender coisa alguma com o conceito de “coisa-em-si”. Apesar da refutação explícita do idealismo metafísico dos seguidores de Kant, não mais se observou o dualismo kantiano de coisa-em-si e fenômeno. Foi só pela reinterpretação do pensamento de Kant que se pôde adaptar o sentido literal de Kant às convicções próprias, tornadas óbvias, em consequência das quais o idealismo viria a significar a total determinação do objeto pelo conhecimento. Compreendeu-se, assim, a coisa-em-si como mera finalidade de uma tarefa progressiva e infinita de determinação. O próprio Husserl, que contrariamente ao neokantianismo partiu mais da experiência cotidiana do que do fato da ciência, procurou dar à teoria da coisa-em-si uma identidade fenomenológica, admitindo que os diversos matizes da coisa percebida formam o continuum de uma experiência. A teoria da coisa-em-si não pôde ser referida a outra coisa além dessa constante transferibilidade de um aspecto da coisa para os outros, que possibilita o contexto unitário de nossa experiência. Também Husserl, portanto, acabou compreendendo a ideia da coisa-em-si a partir da ideia do progresso de nosso conhecimento, o qual tem a sua demonstração última na investigação da ciência. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
No âmbito da filosofia moral, certamente não há nada parecido. Isto porque a partir de Rousseau e Kant não foi mais possível admitir uma perfectibilidade moral do gênero humano. No entanto, a crítica fenomenológica ao neokantianismo encontrou também aqui o seu êmulo, sobretudo no formalismo da filosofia moral de Kant. O ponto de partida assumido por Kant no fenômeno do dever e sua demonstração na incondicionalidade do imperativo categórico pareciam banir da filosofia moral todo conteúdo daquilo que ordena a lei moral. Por mais fraca que seja em seu aspecto negativo, a crítica de Max Scheler ao formalismo da ética kantiana demonstrou sua própria fecundidade pelo projeto de uma ética material dos valores. A crítica fenomenológica de Scheler ao conceito neokantiano de produção representou também um importante (70) estímulo, que levou especialmente Nicolai Hartmann a desviar-se do neokantianismo e dirigir-se à concepção de sua “metafísica do conhecimento”. O fato de o conhecimento não proporcionar nenhuma modificação no conhecido — e muito menos sua geração — , o fato de que tudo que é seja, independentemente de ser conhecido ou não, pareceu-lhe um argumento contra toda forma de idealismo transcendental e também contra a investigação husserliana da constituição. Positivamente, Nicolai Hartmann acreditava que no reconhecimento do ser-em-si do ente e em sua independência frente a toda subjetividade humana poderia traçar o caminho para uma nova ontologia. Dessa forma, chegou bem próximo do novo “realismo”, que começava a se impor com toda força na Inglaterra. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
Creio, porém, que esse desvio da reflexão filosófico-transcendental não passa de uma grande incompreensão de seu sentido consequente à decadência sofrida pelo conhecimento filosófico após a morte de Hegel. A recorrência desse desvio, mesmo no filosofar de nossos dias, tem sua razão de ser. Quando, por exemplo, se coloca em jogo a realidade ontológica superior da ordem criada por Deus, diante da qual nossa vontade pretensiosa se envergonha (Gerhard Krüger) ou a indiferença do mundo natural frente ao homem e sua história (Karl Löwith), pode-se compreender esse desvio polêmico como um apelo à natureza da coisa. Parece-me, no entanto, que um tal apelo à natureza da coisa encontra seus limites na pressuposição que domina de forma inquestionada todas essas tentativas de restabelecimento do ser-em-si da coisa. Trata-se da pressuposição de que a subjetividade humana é uma vontade que tem validade inquestionável mesmo lá onde o ser-em-si se opõe à determinação da vontade do ser humano, mostrando-se como seu limite. Isso significa propriamente que os críticos do subjetivismo moderno não estão verdadeiramente livres daquilo que criticam, nada mais fazendo do que articular a oposição pelo outro lado. Contrapõem a unilateralidade do neokantianismo, que assume como fio condutor o progresso da cultura científica, à unilateralidade de uma metafísica do ser-em-si, que também compartilha com seus adversários o predomínio da determinação da vontade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
Que a linguagem seja o centro pelo qual a consciência se conjuga com o ente, não é em si nenhuma novidade. Já Hegel havia caracterizado a linguagem como o centro da consciência, pelo qual o espírito subjetivo intermedeia-se com o ser dos objetos; posteriormente, Ernst Cassirer ampliou o estreito ponto de partida do neokantianismo, o fato da ciência, transformando-o numa filosofia das formas simbólicas, que não apenas abarca unitariamente as ciências da natureza e as ciências do espírito, mas que também deve dar uma fundamentação transcendental ao comportamento cultural humano como um todo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
Os exemplos aqui discutidos mostram a estreita relação existente entre o uso da linguagem e a formação conceitual. A história do conceito deve seguir um movimento de pensamento (99) que força a ultrapassar sempre o uso ordinário da linguagem e liberar a orientação semântica das palavras de seu emprego originário, ampliando ou restringindo, comparando ou distinguindo, como procedeu de modo sistemático Aristóteles no catálogo de conceitos do livro A da Metafísica. Também a formação de conceitos pode ter efeitos na vida da linguagem, como por exemplo o amplo uso da palavra substância para designar o espiritual, uso justificado por Hegel. Via de regra, porém, acontece o contrário, a amplitude do uso vivo da linguagem resiste à fixação terminológica dos filósofos. Em todo caso, há uma relação extremamente oscilante entre a cunhagem conceitual e o uso de linguagem. Mesmo aquele que fez as propostas terminológicas, no uso de fato da linguagem, acaba não as mantendo. Como já ressaltei certa vez, em seu próprio uso da linguagem, Aristóteles acaba não seguindo a diferenciação de phronesis e sophia, por ele encontrada na Ética a Nicômaco. Mesmo a famosa distinção kantiana de transcendente e transcendental não conseguiu direito de cidadania na vida da linguagem. Só a hybris de um Beckmesser conseguiu criticar, no meu tempo de juventude, na época do neokantianismo, uma expressão como “a música transcendental de Beethoven”, afirmando com escárnio: “O escritor nem sequer sabe a diferença entre transcendente e transcendental”. É claro que quem quiser compreender a filosofia kantiana deverá estar familiarizado com essa diferença. O uso da linguagem é no entanto soberano e não permite que lhe sejam dados esses preceitos artificiais. A soberania do uso da linguagem não exclui distinção entre o bom e o mau alemão (ou português) e até que se possa falar dos abusos da língua. Nesses casos, porém, a soberania do uso da linguagem mostra-se precisamente no fato de que, a nossos olhos, a crítica reprobativa feita muitas vezes na escola com relação ao uso errado da língua em suas regras gramaticais contém algo de inoperante. Mais do que qualquer outro, o ensino da língua costuma ser operante pelo exemplo e não através de correções pedantes. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
Para caracterizar a estrutura do processo hermenêutico lancei mão expressamente da análise aristotélica da phronesis. Com isso, estava avançando num caminho traçado por Heidegger já em seus primeiros anos de Freiburg, ao posicionar-se contra o neokantianismo e a filosofia dos valores (e em última instância também contra o próprio Husserl) e em favor de uma hermenêutica da facticidade. De certo, a base ontológica de Aristóteles tornou-se suspeita para ele já em seus primeiros ensaios. Essa base servira de suporte para o edifício de toda a filosofia moderna, especialmente para o conceito de subjetividade e de consciência e para as aporias do historicismo. Foi o que depois, em Ser e tempo, chamou-se de “ontologia do ser simplesmente dado” (“Ontologie des Vorhandenen “). Mas na filosofia de Aristóteles havia um ponto que na época representava para Heidegger muito mais que um mero contraste. Representava antes um aliado para suas próprias intenções filosóficas, a saber, a crítica aristotélica ao “eidos universal” de Platão e positivamente a demonstração da estrutura analógica do bem e de seu conhecimento, tarefa que se apresenta na situação da ação. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.