Aliás, a gente não consegue apreender corretamente a essência da própria memória, caso nela não vejamos nada mais do que uma disposição ou uma capacidade genérica. Reter, esquecer e voltar a lembrar pertencem à constituição histórica do homem e formam mesmo uma parte de sua história e de sua formação. Quem exercita sua memória como uma mera capacidade — e toda a técnica da memória é tal exercício — não a terá ainda como o que é o seu mais próprio. A memória tem de ser formada. Pois a memória não é memória como tal e para tudo. Para algumas coisas temos memória, para outras não, e algumas coisas queremos guardar na memória, outras banir. Estaria na hora de libertar o fenômeno da memória de seu nivelamento capacitivo que a psicologia lhe impôs e de reconhecê-lo como um traço essencial do ser limitado-histórico do homem. À postura de reter e de lembrar pertence — de um modo que por muito tempo não foi suficientemente levado em consideração — o esquecimento e que é não somente uma perda e uma carência, mas, como acentua sobretudo F. Nietzsche, uma condição de vida do espírito. Somente através do esquecimento é que o espírito recebe a possibilidade de uma total renovação, a capacidade de ver tudo com os olhos recém-abertos, de maneira que o que é velho e familiar se funde com as novidades que se vêem em uma unidade de várias estratificações. “Reter” é, pois, ambíguo. Contém, como memória (mneme) a conexão com a lembrança (anamnesis). O mesmo vale também para o conceito do “tato”, que Helmholtz utiliza. Sob tato, entendemos uma determinada sensibilidade e capacidade sensível para situações e postar-se nelas, para as quais não possuímos nenhum saber baseado em princípios universais. Por isso, a não-expressividade e a incapacidade de expressar pertencem essencialmente ao tato. A gente pode dizer alguma coisa com tato. Mas isso sempre irá significar que, com tato, contornamos algo e não o dizemos, e que não temos tato para exprimir o que só se consegue contornar. No entanto, não quer dizer: desviar a vista, mas manter ao alcance da vista, de forma que não se esbarre, mas passe ao largo. Por essa razão é que o tato ajuda a manter distância. Evita o impacto, a proximidade demasiada e o ferimento da esfera íntima da pessoa. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O modelo original da argumentação vazia é a pergunta sofística de como se pode perguntar algo que não se conhece. Essa objeção sofística formulada por Platão no Menon, não é superada, neste caso, por uma refutação argumentativamente superior, coisa digna de nota, mas é superada pelo apelo ao mito da preexistência da alma. É um apelo bastante irônico, pois o mito da preexistência e da anamnesis, destinado a resolver o enigma do perguntar e do buscar, não coloca em jogo, na realidade, uma certeza do conhecimento, e que se impõe face à vacuidade das argumentações formais. De outra parte, é uma caracterização clara da debilidade que Platão reconhece no logos o fato de que a crítica à argumentação sofística é fundamentada por ele, não lógica mas míticamente. Tal como a opinião verdadeira é um favor e um dom divino, a busca e o conhecimento do logos verdadeiro não é uma autopossessão do espírito. Mais tarde reconheceremos que a legitimação mítica que Platão dá, aqui, à dialética socrática possui um significado fundamental. Se o sofisma ficasse sem refutação — e argumentativamente não é refutável — esse argumento levaria à resignação. É o argumento da “razão preguiçosa” e possui um alcance verdadeiramente simbólico, na medida em que a reflexão vazia conduz, apesar de sua aparência triunfal, ao descrédito de qualquer reflexão. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Eu mesmo preciso afirmar, contra Heidegger, que não há uma linguagem da metafísica. Já expus esse ponto de vista na publicação em homenagem a Löwith. Existem apenas conceitos da metafísica, cujo conteúdo ganha determinação no emprego das palavras, como ocorre com todas as palavras. Tanto os conceitos, onde se movimenta o pensamento, quanto as palavras do uso cotidiano de nossa linguagem não estão dominados por uma regra rígida, com uma posição prefixada. A linguagem da filosofia, mesmo [12] sobrecarregada pelo peso da tradição, como é o caso da metafísica aristotélica traduzida para o latim, busca, sobretudo e sempre de novo, tornar fluentes as produções de linguagem. Pode até trazer para o latim e renovar antigas direções semânticas, capacidade que de há muito admiro no gênio de Nicolau de Cusa. Essa reformulação não precisa necessariamente ser feita pelo método e no estilo da dialética de Hegel ou no modelo agressivo e veemente da linguagem de Heidegger. Os conceitos que emprego em meu contexto definem-se de maneira nova pelo seu uso. Também não se trata dos conceitos da metafísica aristotélica clássica, como foram redescobertos pela ontologia de Heidegger. Pertencem muito mais à tradição platônica. Expressões como mimesis, methexis, participação, anamnesis, emanação, que uso com algumas pequenas modificações — como por exemplo no caso de re-presentação (Repräsentation — são conceitos cunhados por Platão. Em Aristóteles, eles desempenham algum papel apenas no nível da crítica, não fazendo parte do acervo conceitual da metafísica, no que se refere à configuração escolástica fundada por Aristóteles. Remeto novamente para a meu tratado acadêmico sobre a ideia do bem, onde, pelo contrário, procuro demonstrar que o próprio Aristóteles era mais platônico do que se costuma admitir, e que o projeto aristotélico da ontoteologia é apenas uma das perspectivas que Aristóteles extraiu de sua física e que se encontram reunidas nos livros da metafísica. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
A guinada hermenêutica rumo à conversação, tema que eu próprio desenvolvi, vai na mesma direção e não se limita a ultrapassar a dialética do idealismo alemão na direção da dialética platônica, mas aponta o pressuposto da dialética que se esconde por detrás dessa versão socrático-dialogal: a anamnesis buscada e suscitada nos logoi. Essa reminiscência tomada do mito, mas pensada com plena racionalidade, não é só reminiscência da alma individual, mas é também sempre a do “espírito capaz de unir-nos”, a nós que “somos uma conversação”. Mas estar-em-conversação significa estar-além-de-si-mesmo, pensar com o outro e voltar sobre si mesmo como outro. Quando Heidegger deixa de pensar o conceito metafísico de essência como presença do presente e lê a palavra Wesen (essência) como verbo, como palavra temporal, “temporalmente”, passa a compreender o Wesen (essência) como Anwesen (estar presente, vigência), num sentido que parece corresponder à expressão comum Verwesen (“reger”, vigir, administrar). Mas isso significa que Heidegger, como faz em seu artigo sobre Anaximandro, submete a Weile (permanência) à experiência grega original do tempo. Desse modo, ao perguntar pelo ser, está perguntando pelas raízes da metafísica e seu horizonte. O próprio Heidegger lembra que a frase citada por Sartre “a essência da pre-sença é sua existência” é mal-entendida toda vez que se esquece que a palavra Wesen (essência) vem escrita entre aspas. Não se trata do conceito de Essenz (essência), que enquanto Wesen deve preceder a existência, o fato. Tampouco se trata da inversão sartreana dessa relação, como se a existência precedesse a Essenz (essência). A meu ver, porém, quando pergunta pelo sentido do ser, Heidegger tampouco pensa “sentido” na linha da metafísica e de seu conceito de essência. Pensa-o, antes, como sentido interrogativo que não espera uma determinada resposta, mas que sugere uma direção do perguntar. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Eu disse certa vez que “o sentido é sentido de direção”. E muitas vezes Heidegger utilizou-se de um arcaísmo ortográfico escrevendo a palavra Sein (ser) como Seyn para sublinhar seu caráter verbal. De modo parecido, deve-se ver minha tentativa de eliminar a herança da ontologia da substância, partindo da conversação e da linguagem comum, linguagem buscada e formada na conversação. Nessa linguagem o elemento determinante é a lógica de [370] pergunta e resposta. Ela abre uma dimensão de entendimento que transcende as expressões fixadas pela linguagem e, portanto, a síntese global no sentido da autocompreensão monológica da dialética. De certo, a dialética idealista não nega sua origem da estrutura fundamental especulativa da linguagem, como demonstrei na terceira parte de Verdade e método I. Mas, quando subordina a dialética a um conceito de ciência e de método, Hegel encobre na verdade sua procedência, sua origem na linguagem. A hermenêutica filosófica tem em mente assim a referência à unidade-dual especulativa que se desenrola entre o dito e o não dito, que na verdade precede a tensão dialética da contradição e sua superação num novo enunciado. Creio que a tentativa de converter em supersujeito o papel que eu reconheci na tradição, a saber, formular perguntas e projetar respostas, buscando reduzir, com isso, a experiência hermenêutica a uma parole vide, como fazem Manfred Frank e Forget, não passa de um erro grosseiro. Isso não encontra base alguma em Verdade e método. Em Verdade e método, tradição e diálogo não representam nenhum sujeito coletivo. Trata-se simplesmente de um coletivo para designar cada vez um texto concreto (no sentido mais amplo de texto, incluindo uma obra de pintura, um edifício e até mesmo um acontecimento natural). O diálogo socrático de cunho platônico é sem dúvida um gênero muito especial de conversação, conduzida por um interlocutor e seguida pelo outro, queira ou não. Mas ele serve de modelo para qualquer diálogo, porque nele não se refutam as palavras mas a alma do outro. O diálogo socrático não é nenhum jogo esotérico de disfarces para ocultar um saber mais fundamental. É a verdadeira realização da anamnesis, da recordação pensante, a única recordação possível para a alma decaída na finitude do corpóreo e que se realiza como conversação. O sentido da unidade especulativa que se realiza na virtualidade da palavra é justamente o fato de essa não ser uma palavra única nem um enunciado construído, mas ultrapassar tudo que é passível de ser enunciado. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.