(…) Qual é, então, a faculdade originária que desdobra o horizonte ontológico que torna possível toda a manifestação ôntica, que forma, como diz Heidegger, o campo da nossa “abertura” ao ente enquanto tal?
Para descobrir este fundamento primário, temos de nos elevar a partir das condições a priori de todo o conhecimento, entrando na interação das faculdades que o põem em jogo. Kant distingue três faculdades do conhecimento: 1. a intuição, que recebe o ente através dos sentidos como matéria impressional sujeita às formas a priori do espaço e do tempo; 2. a imaginação, que produz a primeira síntese desta diversidade através de esquemas unificadores; 3. o entendimento, que pensa esta unidade através de categorias. Neste processo de geração do objeto enquanto tal do conhecimento humano — o fenómeno, a representação — a intuição, na sua receptividade essencial, é privilegiada, porque faz o encontro do sujeito conhecedor com um ente que não é ele. É antes de mais em relação à intuição, “o ato primário de se representar a si mesmo”, diz Heidegger, que se coloca o problema fundamental do conhecimento humano e da sua finitude, que é o problema da possibilidade de a razão humana se abrir a um ente que não criou, que se lhe oferece, que lhe é dado. Ora, diz-nos o filósofo, este ente não pode ser recebido por nós através dos sentidos, nem representado pela imaginação, nem pensado pelo entendimento, se não for primeiro compreendido como ente numa pré-compreensão do seu ser que precede o jogo destas três faculdades. A constituição do objeto por estas faculdades pressupõe a sua própria possibilidade, o ato de o projetar como tal. “Um ser finito conhecedor só é capaz de se relacionar com um ente que não é ele próprio, nem criou, se este ente, já presente, se puder oferecer a si próprio para ser encontrado. Mas, para que este último possa ser encontrado como o ente que é, é necessário que já tenha sido reconhecido como ente, isto é, na sua estrutura de ser. Isto implica que o conhecimento ontológico, que neste caso é sempre pré-ontológico, condiciona a possibilidade de um ser finito ob-jetar, em geral, algum ente. Todo o ser finito precisa desta faculdade fundamental que consiste em voltar-se para… deixar-se objetar (entgegenstehenlassen)” 1. As condições a priori de todo o conhecimento objetivo, tal como são determinadas por Kant — as formas da intuição, os esquemas da imaginação, as categorias do entendimento — remetem para uma condição última, que torna possível a projeção do objeto enquanto tal, isto é, do ente em sua oposição ao sujeito — que torna possível esta própria oposição, isto é, a transcendência do ente. Para Kant, as diversas faculdades que determinam o conhecimento objetivo pressupõem uma faculdade mais originária que é preciso desvendar e que desdobra o horizonte da objetividade, o campo da transcendência: “o domínio da abertura, dentro do qual algo poderá (…) corresponder à razão finita” 2. Esta faculdade originária, essência da subjetividade transcendental, deve ser uma faculdade de transcendência, ou melhor, a própria faculdade de transcendência. No entanto, ela só pode ser um fundamento autêntico se produzir transcendência na sua fenomenalidade, se manifestar a transcendência como essência de toda a fenomenalidade. Ora, apenas uma das três faculdades distinguidas por Kant é capaz de realizar essa manifestação, de constituir, como diz Heidegger, a visão do horizonte da objetividade, a condição de todo o ver — é a imaginação transcendental. “A imaginação forma antecipadamente, antes da experiência do ser, a visão do horizonte da objetividade” 3. Qual é o órgão desta visão, o órgão que permite à imaginação transcendental manifestar a objetividade ou, como diz Heidegger, “tornar o horizonte sensível”? É o esquematismo, a transposição sensível das unidades formadas pelo entendimento, isto é, dos conceitos puros. O esquematismo é aqui entendido no seu significado ontológico, na sua própria possibilidade, na medida em que torna essa transposição possível através da projeção sensível do horizonte de objetividade pressuposto por qualquer formação de unidades, ou seja, por qualquer conhecimento objetivo. “A transposição sensível pura realiza-se como “esquematismo”. A imaginação pura, ao formar o esquema, fornece antecipadamente a ‘visão’ (‘imagem’) do horizonte de transcendência” 4.
O esquematismo, potência específica da imaginação transcendental, adquire aqui um estatuto ontológico na medida em que se aplica ao mundo das representações no seu conjunto e constitui a sua raiz. É o próprio princípio do horizonte da objetividade onde se formam as unidades da diversidade intuitiva, as representações e os conceitos. A imaginação deixa de ser uma faculdade particular da mente humana; ela representa o seu poder principial. O que a imaginação transcendental realiza é o ver originário na sua efetividade fenomenológica: ela “torna visível o fundamento da possibilidade da transcendência” 5.
Mas qual é o conteúdo fenomenológico desse “ver” originário? Os esquemas medeiam para a compreensão os dados da intuição, isto é, a pura sucessão dos agoras em que os entes se oferecem a nós, a forma pura de todos os objetos dos sentidos, ou seja, o tempo. A efetividade fenomenológica da transcendência que se realiza na imaginação transcendental não é outra coisa senão o tempo e a sua intuição pura ou, como o diz Kant citado por Heidegger, “a imagem pura de todos os objetos dos sentidos” 6. Para Heidegger, é na imaginação transcendental, o poder da transcendência, que esta “imagem” se realiza, que a forma pura do tempo que determina a intuição de todos os objetos possíveis se fenomenaliza para constituir o fundamento efetivo de todo o conhecimento objetivo. “A ob-jetivação do que se oferece como objeto, e do que se lhe opõe, é realizada na transcendência pelo conhecimento ontológico que, enquanto intuição esquemática, torna a priori apreensível e, portanto, recepcionável a afinidade transcendental da unidade-regra sob a imagem do tempo” 7. O que a imaginação e a sua “intuição esquematizante” revelam, assim, é a fenomenalidade originária, o tempo como fundamento ontológico, “a imagem pura e universal” 8. O que elas manifestam é, nessa “imagem pura e universal” que é o tempo, a própria essência da transcendência e, consequentemente, o seu próprio fundamento. “Só este enraizamento no tempo faz da imaginação transcendental a raiz da transcendência. O tempo originário torna possível a imaginação transcendental, que em si mesma é essencialmente receptividade espontânea e espontaneidade receptiva” 9. “A formação da visão na forma pura (Bild) do tempo própria da imaginação transcendental não é apenas anterior a esta ou àquela experiência do ser, ela precede desde logo e em qualquer momento qualquer experiência possível do mesmo” 3.