nossa tradução
Apresentar o pensamento da ética em Heidegger envolve uma dificuldade tríplice, cujos termos inevitavelmente precisam ser definidos, pelo menos em breve. Primeiro de tudo, o envolvimento nazista de Heidegger, depois seu silêncio quase completo sobre os campos de concentração, marcaram sua memória (mesmo fora de qualquer julgamento político adequado) com uma mancha moral que muitos consideraram invalidar qualquer proposição ética de sua parte, se não de todo do seu pensamento. Não é nosso objetivo analisar essas informações (além disso, o caso já foi bem investigado por alguns trabalhos importantes; para constar: Bourdieu, Habermas, Faye, Poggeler, Lacoue-Labarthe, Derrida, Granel, Parfait, Janicaud, Wolin, Sluga, etc.). Nos limitaremos a postular o seguinte: é correto inferir do erro moral um certo estilo ou certa conduta intelectual profissional (em toda a obra), mas é errado traçar essa inferência quando o que está em questão é a lógica pela qual um pensamento procurou analisar o que constitui o homem como aquele através do qual o “Ser” tem como “senso” original (ou ethos) a escolha e a conduta da existência. O fato de este pensamento não ser igual à dignidade (Würde) que ele tomou como tema deve dar origem a novas reflexões. Mas isso só é possível se considerarmos o pensamento de Heidegger como seu ponto de partida (sem esquecer de perguntar a si mesmo qual era a expectativa ética precisa à qual o engajamento político procurou responder).
Além da consideração anterior, alguns pensaram ser possível negar que exista alguma dimensão ética no pensamento de Heidegger, baseando sua alegação em sua própria objeção à ética como uma “disciplina”, na correspondente ausência de uma “filosofia moral” em seu trabalho, e em sua recusa de qualquer interpretação moral da analítica de Dasein. Neste sentido, para que este capítulo tenha mínima relevância, seria necessário começar demonstrando a falsidade desse argumento e reconstruindo a possibilidade de uma abordagem ética de Heidegger. Não apenas aqui não há espaço para esta tarefa, mas também pode ser considerado desnecessário. Somente aqueles que leram Heidegger cegamente, ou não conseguiram pensar nele como um estranho a preocupações éticas. Além disso, já existem trabalhos suficientes para refutar esse preconceito. Será suficiente, então, explicar o seguinte (que o resto complementará): não há “moralidade” em Heidegger se o que isso significa é um conjunto de princípios e objetivos de conduta, fixados por autoridade ou por escolha, coletivo ou individual. Mas nenhuma filosofia fornece ou é por si só uma “moralidade” nesse sentido. A filosofia não se encarrega de prescrever normas ou valores: deve pensar a essência ou o sentido do que faz a ação [l’agir] como tal, em outras palavras, do que coloca a ação na posição de ter que escolher normas ou valores. Talvez, aliás, esse próprio entendimento da filosofia já seja de origem heideggeriana, ou pelo menos para nós, hoje, é necessariamente heideggeriano na modalidade. Isso não impediria alguém de mostrar como é apropriado Spinoza, Kant, Hegel ou Husserl, ou de mostrar como, sem dúvida por razões históricas específicas, isso concorda com os contemporâneos de Heidegger (cada um bem diferente dos outros), Bergson , Wittgenstein ou Levinas, o que equivale a dizer que, em termos gerais, haveria um argumento para mostrar como, com Heidegger e com o período de Heidegger, a filosofia se entendeu (mais uma vez) como “ética”, digamos, por conta de rapidez, e não como “conhecimento”, pressupondo, em particular, uma distinção entre “ética” e “moralidade”, que toda a nossa era atual herdou (mesmo que às vezes confundidamente). Mas esse não é o nosso objetivo aqui: precisamos simplesmente esboçar uma explicação interna do próprio Heidegger, esforçando-se para ser o mais rigorosamente fiel possível, evitando a piedade.
A terceira dificuldade conflita com o exposto acima. Se a ética constitui, paradoxalmente, de pronto um tema discreto e não obstrusivo na obra de Heidegger e uma preocupação constante, uma orientação de seu pensamento, seria necessário realizar um exame geral desse pensamento. De fato, teremos que mostrar até que ponto o “pensamento de Ser” – que é, afinal, o principal e até exclusivo título desse pensamento – não passa de um pensamento daquilo que Heidegger chamou de “ética original” e que é isso o tempo todo, em todos os seus desenvolvimentos. Em particular, não seria difícil mostrar que a celebrada “virada” (o Kehre), caracterizada de maneira mais sucinta como uma “passagem de ontologia a ontologia” (nos termos do Beiträge), basicamente corresponde a uma acentuação, um reforço ou uma “dobrar” do motivo ético. E isso, pode-se supor, não estava totalmente relacionado a uma reflexão silenciosamente tensa e perturbada pela aberração nacional-socialista. Portanto, é tão excluído de jure isolar uma “filosofia moral” heideggeriana quanto de fato, devido à economia de um dicionário, cobrir todo a obra de Heidegger. Então, nos limitaremos a explicar a intenção básica do texto em que o motivo da “ética original” é trazido à luz, ou seja, a “Carta do Humanismo”. Ligados a isso, estarão alguns lembretes essenciais sobre o que abriu o caminho para esse motivo em Ser e Tempo e Kant e o Problema da Metafísica. Quanto ao resto, as sugestões terão que ser suficientes (“o resto” seria acima de tudo: (1) o pensamento da liberdade como uma “fundação não baseada”; (2) o pensamento da linguagem e da poesia como um verdadeiro ethos; (3) o pensamento da “técnica” como um recuo dos fundamentos morais e a entrega de uma demanda ética diferente).
Presenting Heidegger’s thinking of ethics involves a threefold difficulty, the terms of which inevitably need setting out, at least in brief. First of all, Heidegger’s Nazi engagement, then his almost complete silence on the camps, marked his memory (even aside from any proper political judgment) with a moral taint that many have seen as invalidating any ethical proposition on his part, if not the whole of his thinking. It is not our purpose to analyze these particulars (and moreover the case has already been well investigated by some important works; for the record: Bourdieu, Habermas, Faye, Poggeler, Lacoue-Labarthe, Derrida, Granel, Parfait, Janicaud, Wolin, Sluga, etc.).1 We will confine ourselves to positing the following: it is right to infer from the moral error a certain style or a certain professional intellectual conduct (across the entire works), but it is wrong to draw such an inference when what is at issue is the logic by which a thinking sought to analyze what constitutes man as the one through whom “Being” has as its original “sense” (or ethos) the choice and conduct of existence. That this thinking was not equal to the dignity (Würde) that it thus took as its theme must give rise to further thinking. But that is possible only if one takes Heidegger’s thinking as one’s point of departure (not forgetting to ask oneself what the precise ethical expectation was to which the political engagement sought to respond).
Aside from the previous consideration, some have thought it possible to deny that there is any ethical dimension to Heidegger’s thinking, basing their claim on his own objection to ethics as a “discipline,” on the corresponding absence of a “moral philosophy” in his work, and on his refusal of any moral interpretation of the analytic of Dasein. On this score, for this chapter to have the least relevance, one would need to begin by demonstrating the falsity of this argument and by reconstructing the possibility of a properly ethical approach to Heidegger. Not only is there no space here for this task, but it can be considered quite unnecessary. Only those who have read Heidegger blindly, or not at all, have been able to think of him as a stranger to ethical preoccupations. Moreover, there are already enough works in existence to (66) refute this prejudice. It will suffice, then, to spell out the following (which the rest will complement): there is no “morality” in Heidegger if what is meant by that is a body of principles and aims for conduct, fixed by authority or by choice, whether collective or individual. But no philosophy either provides or is by itself a “morality” in this sense. Philosophy is not charged with prescribing norms or values: instead, it must think the essence or the sense of what makes action [l’agir] as such, in other words, of what puts action in the position of having to choose norms or values. Perhaps, incidentally, this understanding of philosophy is itself already Heideggerian in origin, or at least for us, today, it is necessarily Heideggerian in modality. That would not prevent one from showing how appropriate it is to Spinoza, Kant, Hegel, or Husserl, or from showing how, doubtless for specific historical reasons, it chimes in with those contemporaries of Heidegger (each quite different from the others), Bergson, Wittgenstein, or Levinas, which amounts to saying that, in general terms, there would be a case for showing how, with Heidegger and with Heidegger’s period, philosophy understood itself (once again) as “ethics,” let us say, for the sake of speed, rather than as “knowledge,” presupposing, in particular, a distinction between “ethics” and “morality,” which our whole present age has inherited (even if at times confusedly). But that is not our purpose here: we have simply to sketch out an internal explication of Heidegger himself, striving to be as strictly faithful as possible, while avoiding piety.
The third difficulty conflicts with the above. If ethics constitutes, paradoxically, at once a discreet, unobtrusive theme in Heidegger’s work and a constant preoccupation, an orientation of his thinking, then one would need to undertake a general examination of this thinking. In fact, we will have to show the extent to which the “thinking of Being”-which is, after all, the principal, even exclusive title of this thinking—is nothing other than a thinking ofwhat Heidegger called “original ethics,” and that it is this throughout, in all of its developments. In particular, it would not be difficult to show that the celebrated “turning” (the Kehre), characterized most succinctly as a “passage from ontology to ontology” (in the terms of the Beiträge), basically corresponds to an accentuation, a reinforcement or a “folding” of the ethical motif. And this, one can suppose, was not wholly unrelated to a reflection silently tensed and perturbed by the National Socialist aberration. It is, therefore, just as much ruled out de jure to isolate a Heideggerian “moral philosophy” as it is de facto, owing to the economy of a dictionary, to cover the whole of Heidegger’s work. So we will confine ourselves to explicating the basic intention of the text in which the motif of “original ethics” is brought to light, that is, the “Letter on Humanism.” Linked to this will be some essential reminders of what paved the way to this motif in Being and Time and Kant and the Problem of Metaphysics. As for the rest, suggestions will have to suffice (“the rest” would be above all: (I) the thinking of freedom as an “ungrounded foundation”; (2) the thinking of language and poetry as a true ethos; (3) the thinking of “technics” as a retreatfrom moral foundations and the delivery of a different ethical demand).